sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Quando a história não une e divide


Tudo leva a crer que as comemorações dos 40 anos de independência de Cabo Verde vão continuar por mais alguns meses. Por resolução do governo publicado no BO de 19 de Agosto decidiu-se cativar mais 10 mil contos das verbas dos ministérios e outros serviços para cobrir despesas das comemorações no país e na diáspora. No texto desta resolução prevê­-se ainda a possibilidade de mobilizar fundos nas empresas públicas e na cooperação internacional para os mesmos fins.
As razões para se dar continuidade meses a fio às comemorações do dia da independência que é o 5 de Julho não são claras. À partida pode-se ver que dificilmente servem para renovar a unidade da nação como deve ser o seu propósito fundamental. O governo tem protagonismo excessivo na organização e financiamento das festividades e nas acções desenvolvidas tende-se a realçar o papel histórico do Paicv que é também o partido no governo. O facto de o país se encontrar em período pré-eleitoral não aju­da em nada. Pelo contrário, a percepção de que actos públicos do Estado podem ser aproveitados para se conseguir vantagem político-partidária deixa as suas marcas. A desconfiança dos cidadãos nestas matérias vê­-se confirmada quando, por exemplo, órgãos de comunicação social dão conta de que a ministra da Juventude e Emprego e também presidente do Paicv em visita ministerial a São Tomé e Príncipe aproveitou a oportu­nidade para pedir votos à comunidade cabo-verdiana para o seu partido nas próximas eleições; e ainda não começou a campanha.
Complicado nessas comemorações quase intermináveis é o facto de se ficar essencialmente pela exaltação de uma independência desconectada da liberdade individual e do pluralismo em flagrante contradição com os princípios e valores da Constituição de Cabo Verde e fora da tradição ci­vilizacional inaugurada com a declaração de independência dos Estados Unidos trezentos anos atrás. Uma consequência directa disso é deixar fora de qualquer reconhecimento as vítimas da independência sem liber­dade e os que ousaram resistir ao poder tirânico que se instalou nas ilhas durante os primeiros quinze anos. A reportagem desta semana sobre o 31 de Agosto de 1981 (pags.14-17) procura neste ano do quadragésimo ani­versário da independência preencher essa lacuna e relembrar o quanto custou a falta de liberdade.
A fixação em proclamados actos heróicos de alguns convenientemente seleccionados não permite que o país contemple o seu passado com o de­vido distanciamento e com a melhor compreensão dos factos. Muito me­nos o prepara para enfrentar os desafios do presente e do futuro próximo. Partidariza-se tudo e todas as razões são boas para se polarizar de forma antagónica a sociedade. Nos últimos dias até a chuva tem servido de arma de arremesso. Aparentemente uns seriam a favor da sua chegada e outros estariam a rezar e a usar provavelmente artimanhas pouco católicas para que ela não bafejasse as ilhas. O ridículo parece não ter limites. Com tais narrativas a circular, dificilmente se vai conseguir produzir o debate que o país precisa fazer para encontrar vias para sair da situação em que se encontra de crescimento raso e desemprego nos dois dígitos.
A decisão do governo em fazer do dia 12 de Setembro o dia do asso­ciativismo juvenil (BO 14 de Agosto) revela bem o apego oficial a uma historiografia própria do regime de partido único. Dá-se ao associativis­mo juvenil a mesma data de referência da Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC), a organização de massa dos jovens durante o regime de partido único. Sente-se nesta decisão do governo que não há uma preo­cupação em estabelecer uma relação do Estado com os jovens que seja completamente distinta, tanto em substância como na aparência, da re­lação que outrora existiu entre o partido, as organizações de massa e o Estado. Denúncias repetidas de manipulação política dos jovens feitas por estudiosos de movimentos juvenis particularmente em períodos elei­torais são reveladoras a esse respeito. Nisso mais uma vez Cabo Verde diferencia-se de experiências de países como Portugal, Itália e Alemanha que conheceram a indoutrinação política dos jovens num momento da sua história e que posteriormente desenvolveram sensibilidade especial perante qualquer tentativa de se voltar ao mesmo. Aqui a rejeição da po­litização dos jovens não existe apesar de vários artigos da Constituição se mostrarem contra a intromissão isolada e excessiva do Estado nos assun­tos da juventude.
Num outro registo, os últimos acontecimentos na Guiné-Bissau ilus­tram bem como supostas aderências à história levam à instabilidade e são obstáculo ao desenvolvimento. A demissão do governo com maioria parlamentar pelo presidente da república faz lembrar o quão ajustado foi a decisão em 1992 de dotar Cabo Verde de uma nova Constituição em vez de aceitar a proposta do PAICV em manter a Constituição de 1980 sal­picada de algumas normas permitindo eleições pluripartidárias. O semi­presidencialismo no texto constitucional de 1980 e revista em 1990 não vingou e Cabo Verde ganhou um regime parlamentar que possibilitou governos que duram uma legislatura enquanto a Guiné fazia o caminho inverso.
     Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 26 de Agosto de 2015

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

PIB por ilhas



Finalmente temos os valores do Produto Interno Bruto (PIB) no intervalo 2007 e 20012 apresentados por ilhas. Um dado adicional são os valores distintos do PIB para a Cidade da Praia e para o conjunto dos restantes concelhos da ilha de Santiago. Foi um grande trabalho do Instituto Nacional de Estatísticas que só peca pela sua demora. De facto, com os valores do PIB e de outros indicadores relevantes do ambiente socio-económico do país especificados por ilhas, por concelhos e até por cidades pode-se ter uma ideia muito mais clara do processo evolutivo de cada uma dessas entidades. 
A partir de agora passa-se a avaliar melhor o impacto dos investimentos públicos realizados, as consequências das opções feitas na atracção do investimento nacional e estrangeiro, o grau de eficácia das políticas de facilitação de negócios e os resultados das apostas no capital humano. O grau de centralização do país e o sucesso ou falhanço das políticas de descentralização vão-se revelar com maior clareza. Opções de regionalização terão outros elementos de referência, o debate será mais produtivo, porque mais sustentado em dados, e a procura de soluções para desenvolver as ilhas e combater as assimetrias caminhará por vias confirmadas ou não por dados regulares e muito específicos.
Numa primeira abordagem dos dados apresentados pelo INE na semana passada nota-se imediatamente o seguinte: o forte crescimento do PIB da Boa Vista, a grande concentração de recursos na Cidade da Praia (39% do PIB Nacional), a realidade crua do interior de Santiago com um rendimento per capita menos de metade da média nacional e a situação das ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Maio, Fogo e Brava praticamente estagnadas e a perder população. Também é visível que não obstante os volumosos investimentos no sector da agricultura e pecuária os dados do INE apontam para um impacto pouco significativo do sector primário nos anos 2007 e 2012. No período referido a contribuição para o Valor Acrescentado Bruto da ilha não acrescentou ao que já existia em mais do que 1% nas ilhas de Santo Antão, Maio e um pouco mais na Brava. No sentido oposto, em S. Nicolau, Santiago e Fogo a participação do sector primário no VAB da ilha respectiva caiu de 2007 a 2012 por valores também à volta do 1%.
De uma primeira leitura já fica a impressão o quão limitado tem sido o impacto dos grandes investimentos na agricultura e pecuária. De facto, houve grandes investimentos na mobilização de água e na criação de redes de estradas no interior das ilhas mas talvez não se deu a necessária atenção para fazer o resto indispensável para o sucesso das políticas e garantir o retorno ao investimento feito. O resultado viu-se na continuada vulnerabilidade da população rural agora demonstrada neste ano de seca. Sem amparo e sem “pé-de-meia” os homens e mulheres do campo são obrigados a matar os seus animais pra sobreviverem no dia de hoje. Aliena-se o futuro para sobreviver no presente.
A duplicação do PIB da Boa Vista em cinco anos, por outro lado, ajuda a conjecturar qual pode ser um futuro de crescimento rápido no país se for conseguido a proeza de alinhar certos factores-chave. Aparentemente aconteceu na Boa Vista o que alguns estudiosos da economia do crescimento sublinham: Boa Vista, a ilha era, um diamante por ser descoberto e lapidado. Ou seja, tinha riqueza natural e Cabo Verde apresenta algumas vantagens comparativas na atracção da procura turística da Europa devido designadamente à sua distância a poucas  horas de voo e a proximidade cultural. Daí a construção de uma infraestrutura, o Aeroporto Internacional da Boa Vista, que possibilitou acesso à riqueza natural e materializou a vantagem comparativa. Foi suficiente para desencadear a dinâmica. Pena que não foram tomadas em tempo certo as outras diligências internas como as de garantir segurança, planear respostas ao crescimento e às solicitações da ilha nos mais variados domínios e de tudo fazer para que os investimentos externos e o fluxo turístico tivessem o maior impacto possível na economia local e nacional. Por isso é que muito do que aí acontece resulta mais da pressão da procura do que de um esforço de diversificação e de sofisticação da oferta.
Por último, nesta primeira abordagem é de fazer notar a importância do sector secundário e o impacto que pode ter no crescimento do PIB no aumento do emprego e nas exportações. Em S.Vicente verifica-se o maior crescimento da contribuição do sector secundário para o VAB. Deve ter compensado em parte a quebra no sector dos serviços de 2007 a 2012 e faz relembrar o que historicamente se sabe: a importância da industrialização na elevação permanente de milhares e em certos casos de milhões de pessoa para fora da pobreza e para um nível de rendimento da classe média. O programa AGOA pela suas facilidades de acesso ao mercado norte-americano procura ajudar a trilhar o caminho da industrialização. Não devíamos estar a desperdiçar a oportunidade oferecida. O Lesotho com mais de 40 mil postos de trabalho criados por causa do AGOA devia servir-nos de exemplo.  
Vamos continuar a ler estes dados do INE, esperar por mais e procurar tirar ilações que melhor ajudam o país no seu todo e também todas as suas parcelas no caminho do desenvolvimento.
Editorial do jornal Expresso das ilhas de 12 de Agosto de 2015

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Efectividade comprometida



A intervenção de cerca de mais de vinte minutos da Dra. Janira Hopffer Almada durante o debate sobre o Estado da Nação despertou atenção pelo seu carácter anómalo. Não foi discurso da Ministra do Emprego e da Juventude. Pretendeu ser algo mais. Para qualquer observador a intenção era dar protagonismo à presidente do Paicv. Só que na Assembleia Nacional e no debate sobre o Estado da Nação o destaque é para a intervenção do primeiro-ministro cujo governo é politicamente responsável perante o Parlamento. O facto porém de o ter feito e também do que depois se seguiu de quase despedida do PM, em plena sessão parlamentar, e ainda a mais de sete meses do fim da legislatura, não abona muito a favor do “regular funcionamento das instituições” que todos esperam e desejam.
A público tem chegado por várias vias indícios de tensões nas relações entre a nova liderança do Paicv, o seu grupo parlamentar e o governo. Este jornal em editorial por várias chamou a atenção para a necessidade de clarificação dessas relações. O nosso sistema de governo tem um primeiro-ministro nomeado pelo presidente da república sob proposta do partido vencedor das eleições. O novo governo só assume plenas funções depois de o parlamento ter aprovado uma moção de confiança por maioria absoluta dos deputados. Se no decorrer da legislatura há uma mudança na liderança do partido que suporta o governo ou uma outra alteração nas condições iniciais do mandato, o mais normal é que se enverede por um processo de reconfirmação do governo e da sua relação com a sua base parlamentar. Assim evitam-se quaisquer dúvidas quanto à sua legitimidade e assegura-se o normal funcionamento das instituições. Ninguém terá dúvidas onde reside o poder.
Ao não proceder desta forma, o sistema político sujeita-se a “ruídos” que com o passar do tempo tendem a ficar piores. Em Março deste ano o país assistiu ao espectáculo do posicionamento público da nova líder do Paicv e dos seus próximos no partido contra posições do grupo parlamentar maioritário e do próprio primeiro-ministro mesmo depois de a lei sobre o estatuto dos titulares de cargos políticos ter sido aprovada por unanimidade na AN. A questão para o sistema político não são as diferenças de opinião e a falta de alinhamento pontual nas estruturas partidárias. De facto, o que perturba é a forma como foram arejadas publicamente com ganhos para o populismo e para as forças anti-partido e anti-pluralismo e com perda e humilhação para o parlamento cabo-verdiano. 
Mesmo depois de tudo o que se passou não houve preocupação de seguir os procedimentos previstos na Constituição para relegitimar o governo. Informalmente a presidente do Paicv reafirmou a sua confiança no Dr. José Maria Neves enquanto primeiro-ministro e o líder parlamentar no seu discursos do 5 de Julho reiterou também a confiança da maioria parlamentar no governo. É evidente que seguir simplesmente por essas vias não é suficiente. Se momentaneamente traz alguma acalmia no seio do  partido, a realidade é que o governo sem uma moção de confiança e sem o programa  actualizado não tem a energia, o foco e a coesão interna que os momentos difíceis do país exigem. Quase que fica em formato de “governo de gestão”, com uma agenda que mais parece ser uma agenda eleitoral e sempre sujeita a sobressaltos causados por quem anseia antes de tempo governar ou já mostrar peso político. É só ver o que se passa no INPS e na TACV. Ruídos persistem e notam-se disputas por protagonismos nos actos do Estado. A coroar, o insólito como foi descrito acima acontece no debate sobre o estado da Nação.
Depois da “dispidida” do PM, que governo vai se ter? Um governo mais engajado na campanha eleitoral e com mais protagonismo da futura candidata do partido ao cargo de PM? Um PM em “modo” de saída a par com ministros ansiosos por chegar ao fim do seu tempo no governo? E o país como fica nesta corrida disparada para o poder que está a acontecer antes do tempo?
Uma das particularidades da democracia é o mandato certo. A renovação do mandato acontece num momento pré-estabelecido e em que por um tempo limitado alternativas são apresentadas e as disputas eleitorais têm lugar. Com este sistema garante-se a possibilidade de alternância, mas evita-se que a sociedade esteja a todo o momento sob as tensões extremadas do período eleitoral. Há tempo para governar e há tempo para campanha. Cria-se uma disfunção grave quando em vez de governar, ou seja, de trabalhar para o bem comum, se envereda pela campanha em que os interesses partidários se sobrepõem e condicionam tudo o resto. Ter o governo quase um ano antes das eleições numa postura em que a agenda eleitoral parece prevalecer sobre tudo o resto não é bom nem para o país nem para a democracia. Ao Presidente da República cabe o papel de assegurar o regular funcionamento das instituições. Depois do advento do populismo e do afundamento do Parlamento não podemos ter governo a meio gás, com ministros sem alento e a funcionar como veículo de interesses eleitorais. 
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Agosto de 2015