sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Desarmar a população

A notícia dos 120 homicídios num ano trazida a público pelo Procurador Geral da República em Setembro último finalmente despertou a sociedade cabo-verdiana para os excessos de violência que ocorrem no país. A informação veio confirmar o sentimento generalizado de insegurança que se renova no dia-a-dia com os relatos de assaltos à mão armada, troca de tiros entre elementos de gangs e ajustes de contas que se saldam em mortes em vários pontos da capital. Piora a situação a percepção de que cada vez mais também a Polícia vem-se tornando o alvo de ataques. Neste panorama preocupante é notório o papel crescente das armas de fogo, seja das fabricadas localmente, as chamadas “boka bedju”, como das armas importadas. A questão na mente de todos é porque não se está a resolver definitiva e eficazmente a questão das armas de fogo nas mãos das pessoas. 
Dados da polícia apontam que nos últimos três anos, 2013, 2014 e 2015 houve respectivamente 21, 22 e 11 homicídios por armas de fogo e, no mesmo período, casos de ofensas corporais também com armas de fogo em número 131, 181 e 76. 80% a 90% dos casos de homicídio e ofensas corporais aconteceram na cidade da Praia, onde também na mesma percentagem se verificaram os casos de ataques a polícias com essas armas em número respectivamente de 17, 9 e 7 nos anos referidos. Curiosamente, em relação à posse ilegal de armas foram nos últimos três anos de 83, 79 e 62 e já não é a Praia onde há o maior número de casos mas sim em Santa Catarina, Santa Cruz e S. Filipe na ilha do Fogo.
Em 2013, o governo fez aprovar na Assembleia Nacional a lei de armas de pequeno calibre e lançou uma campanha de recolha voluntária que falhou. Segundo o actual Ministro da Interna, Paulo Rocha, em declarações à imprensa em Julho último, “a campanha não funcionou”. O problema teria sido de “comunicação”. Quando hoje se espera que a matéria seja retomada, constata-se, na declaração, da passada quinta-feira, dia 6 de Outubro, sobre “o conjunto de medidas de intervenção imediata para a contenção de insegurança” que a questão das armas nas mãos das pessoas não foi contemplada. Uma estranha omissão considerando que um estudo anterior da Afrosondagem datado de 2008 e citado por oficiais da PN situava o número de armas em circulação em Cabo Verde entre 6 mil e 8 mil e que também é hoje mais do que evidente o papel crescente das armas de fogo em homicídios e assaltos. Mesmo a medida que em 2010 o então governo terá idealizado para travar o “abastecimento de determinados tipos de munições” com o objectivo de  conter a produção de armas artesanais não terá resultado. Os “boka béju” continuam a aparecer em cenas de crimes violentos.
O pesquisador Júlio Jacob, autor do Mapa de Violência no Brasil, é peremptório em afirmar  que “não há estudo sério no mundo que não comprove a relação entre posse de arma de fogo e o número de assassinatos num país”. Este facto foi espectacularmente provado há duas décadas no Reino Unido e na Austrália. Na sequência de massacres de dezenas pessoas por atiradores armados, os governos desses países fizeram passar leis que praticamente proibiram as armas de fogo. As taxas de homicídio mas também de suicídio diminuíram consideravelmente com essas medidas de retirar à população o acesso a armas. O mesmo aconteceu no Brasil durante algum tempo depois da entrada em vigor do Estatuto de Desarmamento. Diminuíram casos de mortes por brigas conjugais, conflitos entre vizinhos e por acidentes na manipulação da arma.
Mas como o Brasil também demonstra – a violência voltou depois a aumentar - não se pode ficar só pelo desarmamento para manter baixo o nível de homicídios e de crimes em geral. Há que desenvolver outras políticas tanto no combate ao crime como na sua prevenção. Fundamentalmente há que reafirmar o contrato social e renovar a crença no destino comum com políticas de inclusão, com igualdade de oportunidades e com crescimento e emprego de qualidade. E tudo isso num ambiente em que a justiça funciona, vive-se em segurança e o Estado não é consumido pela corrupção que privilegia uns e trata desigualmente muitos outros.
Grandes desafios se colocam a Cabo Verde em termos de segurança. O índice Mo Ibrahim veio relembrar como a segurança é vital para o país assegurar a competitividade externa necessária ao desenvolvimento da sua economia, a começar pelo turismo. A degradação dos índices de crimes nos últimos anos deve ser um incentivo para se rever profundamente todo o sistema de Segurança. É evidente que com o que se tem, não se está a obter os resultados prometidos e que o país urgentemente precisa. E certamente que não é a despejar meios por cima de problemas que se vai resolvê-los. Foi tentado no passado e não resultou. Há que mudar. Desarmar efectivamente a população pode também ser parte de um bom começo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 776 de 12 de Outubro de 2016.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Abstenção conveniente

Jorge Carlos Fonseca ganhou as eleições presidenciais de 2 de Outubro com 74% dos votos validamente expressos tendo os outros candidatos Albertino Graça e Joaquim Monteiro recebido respectivamente 22,5% e 3,2% dos votos. A abstenção que acabou por atingir o seu maior valor de sempre com 63,4% dos eleitores não deixou de tirar algum lustre à vitória. Com base nesses números de abstenção, opiniões diversas procuraram questionar a legitimidade da eleição, a validade do sistema político e a representatividade do voto. Assumem que a abstenção sinaliza insatisfação dos eleitores com a política, com os políticos e com os partidos e precipitam-se na conclusão de que a democracia representativa está em crise.
É evidente que, vinda de muitos desses fazedores de opinião, a conclusão não é novidade. Estão sempre à espreita de oportunidade para repetir mais uma vez que “a democracia burguesa”, ou seja, a democracia representativa não serve ou tem muitos defeitos e que o melhor seria optar pela  democracia participativa e usar os mecanismos da democracia directa. Desta vez usam os números da abstenção superiores aos dos votantes para pôr em causa os resultados nas urnas. Sem nenhuma base de suporte, fazem da abstenção nas presidenciais uma vontade maioritária em conflito com o sistema político, algo que estranhamente não teria sido notado nas eleições legislativas e autárquicas, poucos meses antes. Muito pelo contrário, o nível de mobilização e participação da população e a tranquilidade ao longo de todo o processo eleitoral demonstraram que os cabo-verdianos reconhecem que o sistema tem alternativas de governação e tem mecanismos para passagem pacífica do poder de um partido para o outro.
Um facto inegável é que a abstenção na eleição presidencial de domingo passado ultrapassou a verificada em eleições passadas. Para se compreender se se trata de uma tendência no comportamento dos eleitores, ou de uma anomalia ou então de fenómeno induzido, há que dar à matéria o devido enquadramento. Aspectos a ter em consideração são, por exemplo, se a eleição presidencial é para o primeiro ou para o segundo mandato em que quase sempre se constata aumento da abstinência. Também se é uma eleição muita disputada não só em termos de número com também de qualidade dos candidatos envolvidos. Ainda, se há ou não grande envolvimento dos partidos na corrida ao voto pelo candidato apoiado. Para alguns observadores, este último facto pesou bastante na eleição de Marcelo Rebelo de Sousa para presidente de Portugal com os piores valores de abstenção de sempre numa primeira volta (51,6%).
Os valores da abstenção variam conforme os casos e conforme as eleições. Normalmente é  menor nas legislativas e aumenta um pouco nas autárquicas e depois cresce significativamente nas presidenciais. É um padrão de comportamento já observado nas eleições em Cabo Verde e também em países como Portugal com sistemas políticos similares. Neste aspecto, o que se passou este ano não tem nada de anormal. Outrossim, se se considerar que seria a mesma base eleitoral que deu vitória ao MpD nas legislativas (à volta de 122 mil) e que arrebatou a quase totalidade das câmaras (à volta de 97 mil votos), a apoiar a eleição de Jorge Carlos Fonseca, os cerca de 92 mil votos por ele obtidos não surpreendem porque caem dentro do que seria expectável numa eleição para um segundo mandato em que a disputa não foi tão qualificada nem a envolvência dos partidos foi intensa. A abstenção cresceu significativamente não com a erosão da sua base mas sim com a ausência de parte significativa da base eleitoral do PAICV que nas três eleições mostrou-se nos cerca de 84 mil votos nas legislativas, nos cerca de 66 mil votos nas autárquicas e, supõe-se, nos cerca de 28 mil votos do candidato presidencial Albertino Graça. Os faltosos provavelmente foram engrossar a abstenção ou por cálculo político ou porque lhes falhou a liderança do partido em apoiar abertamente um candidato ao cargo de presidente da república.
É a segunda vez na história da democracia cabo-verdiana que o PAICV se omite no apoio a um candidato presidencial. Aconteceu em 1996 obrigando o Dr. Mascarenhas Monteiro a concorrer sozinho e fazendo a abstenção disparar para 54,3%. Certamente que em qualquer dos casos houve cálculo político por detrás. Aparentemente neste caso com a pré-candidatura de José Maria Neves a não se concretizar e Cristina Fontes a escolher candidatar-se à Câmara da Praia quis-se deixar o “campo vazio” e evitar que alguém ficasse já em “pole position” para as presidenciais de 2021. Feliz ou infelizmente o campo acabou por não ficar vazio e Albertino Graça pôde atrair uns bons milhares de votos que de outra forma iriam para a abstenção, servindo aí eventualmente de arma de arremesso para deslegitimar a eleição do presidente e fragilizar o sistema político.
 A verdade é que a democracia em Cabo Verde é liberal e constitucional. Não há supostas maiorias na abstenção que invalidem ou deslegitimem actos eleitorais. Como dispõe a Constituição “a soberania pertence ao povo que a exerce pelas formas e nos termos previstos na Constituição”. Por isso mesmo é que se evita tirania de maioria ou hegemonia de um partido insistindo “no exercício do poder pelas formas e nos termos” e não hostilizando o PR que tem a função de fazer cumprir a Constituição. O actual sistema de governo já demonstrou garantir ao país estabilidade política e governativa, alternância política e ambiente necessário para o desenvolvimento. Há que o manter sem sobressaltos desavisados. Como diz o provérbio americano “se não está quebrado, não conserte”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 775 de 05 de Outubro de 2016.