segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Sem margem de erro

Sucedem-se as novidades sobre as perspectivas de financiamento da economia cabo-verdiana. Na semana do carnaval foi a assinatura do memorando com o Afreximbank a disponibilizar 500 milhões de dólares e a concretização de um acordo do mesmo banco em financiar a construção de um hotel em S. Vicente e possível envolvimento num outro empreendimento turístico na mesma ilha.
Do Banco Mundial veio a notícia do projecto de 15 milhões de dólares dirigido para as médias, pequenas e micro empresas envolvendo a criação de um fundo de garantia e outros mecanismos para ajudá-las a ultrapassar as dificuldades no acesso ao crédito junto das instituições financeiras. O primeiro-ministro em visita oficial à Hungria anunciou uma outra linha de crédito de 30 milhões de dólares que podia ser disponibilizada para empresas ligadas à agricultura. Estas e outras notícias do mesmo teor indiciam um ambiente renovado de oportunidades a que certamente não estará ausente a postura do governo abertamente favorável ao maior protagonismo do sector privado e mais disposto a alterações significativas no tecido económico do país como deixa entrever a pretensão oficial de privatizar mais de uma dezena de empresas públicas.
Cabo Verde cresceu 3,8% do PIB, em 2016, a partir de uma retoma que teria iniciado no último trimestre de 2015 e tudo aponta que o crescimento de 2017 ficará acima dos 4% do PIB. O FMI, no World Outlook, publicado em Outubro último, punha o crescimento de 2017 em 4% e prevê 4,3% para 2018. Para esses resultados terá contribuído fundamentalmente o sector externo da economia e, em particular, o turismo. Com a conjuntura internacional caracterizada por um renovado dinamismo em todas as grandes economias, em especial nos Estados Unidos, na União Europeia, na China e no Japão e também nos países emergentes como o Brasil e a Índia, as condições tendem a manter-se favoráveis a um incremento ainda maior do turismo e de fluxos externos em forma de investimentos estrangeiro e de remessas de emigrantes. O desafio maior será encontrar formas criativas e inovadoras de fazer articular a dinâmica induzida do exterior com capacidade nacional de produção de bens e serviços.
Conseguir financiamento para as empresas e para dar asas ao espírito empreendedor nacional tem sido apresentado como o principal constrangimento a ultrapassar. É essencial, mas não é suficiente. Primeiro, não deve ser confundido com a disponibilização de linhas de crédito. Vários momentos no passado recente mostram como é relativamente fácil para os governos conseguir dos bancos a promessa de criação de linhas de crédito. Mais difícil é ir da promessa à realidade do acesso ao crédito quando se tem em conta os requisitos exigidos. O projecto do Banco Mundial referido atrás visa contornar esses obstáculos, em particular, no que respeita à apresentação de garantias. Mas há outros impedimentos talvez mais importantes e que têm a ver com o ambiente de negócios. Ou seja, a dimensão do mercado, a rigidez laboral, os custos de factores como energia e água, os transportes inter-ilhas e a burocracia da administração pública.
As vulnerabilidades do país tornadas mais evidentes com a seca de 2017 mas que já se vinham revelando nos anos de crescimento raso e de aumento desabrido da dívida pública obrigam a que com urgência se trace um caminho que conduza a uma dinâmica económica muito superior ao que se tem agora. O governo prometeu 7% por cento e é o mínimo que o país precisa. Para isso, porém, mudanças muito profundas já teriam de estar a acontecer. A fundamental deveria ser na atitude. Em vez de as pessoas agirem da forma já esperada em ambiente de escassez de recursos, em que a tentação é cada um lutar pelo seu quinhão, num jogo de soma zero, tomando os outros como rivais ou mesmo inimigos, devia-se promover o espírito de cooperação e mostrar as vantagens de ordem e previsibilidade nas esferas económica, social e política. Teria que haver confiança na possibilidade de todos ganharem com a formalização da economia, com a criação de um ambiente salutar de concorrência e com a paz social que adviria da aceitação que níveis salariais devem acompanhar a produtividade da economia.
Infelizmente, não é o que acontece. Pelo contrário, greves ameaçam proliferar particularmente no sector público, tentativas de introduzir ordem e formalidade na economia e na sociedade são contrariadas pelo populismo e interesses corporativos em pontos-chave do país impedem eficiência e eficácia na prestação de serviços. No topo disto confundem-se as prioridades do país e esquece-se, na apresentação das propostas de regionalização, que a realidade da cultura centralista e administrativa burocrática existe tanto ao nível central como ao nível local. Não se pondera devidamente que pior do que ter um país voltado para o seu umbigo seria ter dez entidades a disputar recursos com a postura de quem pratica um jogo de soma zero.
Há uma conjuntura externa favorável que pode ajudar a potenciar os diferentes fluxos tanto de pessoas como de capitais, em forma de investimento directo e de financiamento da economia, que se dirigem para Cabo Verde. É uma janela que não permanecerá aberta sempre. Há pois que definir, articular e implementar políticas que permitam fazer o melhor uso das boas condições externas para organizar a economia nacional noutros moldes que reforcem a concorrência, contribuam para a competitividade externa do país e aumentem a produtividade. E isso deve ser feito com carácter de urgência e com um rigor pragmático de quem já devia saber que o país já perdeu muito tempo e que o caminho do desenvolvimento é estreito e que com os parcos recursos disponíveis não há muita margem de erros.



Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 847 de 21 de Fevereiro de 2018.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Segurança e confiança precisam-se

O desaparecimento de duas crianças nos primeiros dias de Fevereiro provocou uma comoção nacional com reacções preocupantes da sociedade e de entidades públicas que não deixaram ninguém tranquilo.
As autoridades mostraram-se sem qualquer pista do que terá acontecido com as crianças desaparecidas e não revelaram se para os três casos mais recentes de alegados sequestros fizeram qualquer avanço nas investigações. Perante as incertezas e a ausência de direcção clara da situação o pânico ameaçou generalizar-se abrindo caminho para teorias de conspiração e até para ataques de xenofobias. No ambiente de desconfiança criado de tudo se tem falado sobre as razões para o sequestro de pessoas designadamente tráfico de pessoas, tráfico de órgãos e cultos satânicos. O ataque a cidadãos chineses num bairro da capital ilustrou bem os extremos a que as pessoas podem chegar quando na falta de acção convincente saem à procura de bodes expiatórios e rapidamente os “descobrem” nos estrangeiros residentes no país. Dominados pela sensação de impotência alternam-se entre a ânsia de encontrar rapidamente um culpado e o desespero expresso nos pedidos de ajuda internacional sem primeiro se ter presente que tipo de colaboração é necessária nos casos em mãos.
O desaparecimento sem rastro de crianças parece mais um dos episódios trágicos que de tempos em tempos acontecem em Cabo Verde e que deixa o país e a sociedade em estado de choque sem capacidade de resposta e, pior ainda, sem a compreensão do que realmente se passou. Nos últimos tempos houve a tragédia com perdas de vida no naufrágio do navio Vicente, a evacuação de Chã das Caldeiras na sequência da erupção do Vulcão do Fogo e o massacre de militares e civis no Monte Tchota. Em todos eles foram evidentes falhas de organização e de liderança, falta de meios e a quase ausência de articulação e comunicação entre os serviços, as forças e os meios logísticos para se garantir um efectivo comando e controlo das situações criadas. Também viu-se que passado o choque inicial e as proclamações oficiais a prometer mudanças, a tendência é tudo ficar igual ao que estava e os problemas serem praticamente “varridos para debaixo do tapete”. Quando ressurgem é normalmente no âmbito das lutas políticas e eleitorais em que servem de arma de arremesso para, na prática, depois de ultrapassado o embate, serem relegados para o segundo ou terceiro plano.
Não espanta, pois, que mudando os tempos não se notam transformações significativas em certos sectores-chave como os de segurança. Pelo contrário, mantém-se a forte impressão que se continua com o mesmo sistema de forças, a mesma falta de coordenação, as mesmas deficiências em responder a situações de busca e salvamento e outras emergências próprias de um país arquipelágico. Por outro lado, a falta de alteração significativa na eficácia do sistema de segurança não obstante os muitos e valiosos meios que são injectados contrasta com o “vigor” reivindicativo que seus elementos recentemente demostraram na greve inédita da polícia. Tudo isso conjuga para passar à sociedade que não se estão a verificar os avanços esperados de liderança, de sofisticação dos métodos e de colaboração entre as forças, factos que não contribuem para a diminuição efectiva do sentimento de insegurança. Surgindo um problema como o de sequestro das crianças, não estranha que o pânico rapidamente se espalhe.
Sequestros indiciam um outro nível de criminalidade a despontar no país, especialmente em Santiago, Sal e Boa Vista e em casos que não poucas vezes ficam largos anos por resolver ou nunca chegam ao fim. Não havendo uma resposta firme que reponha a confiança nas instituições e na liderança, as pessoas acabam por se sentir impotentes e desemparadas perante crimes que as limitam nos seus movimentos, que as obriga a fortificar as suas casas e as constrange nas suas relações sociais. E nesse estado podem ficar propensas a actos de justiça privada, a sentimentos de xenofobia e a paranóias colectivas dirigidas contra indivíduos e grupos.
Já se vêem sinais do que pode vir mais à frente. Por isso é que urge que as autoridades ajam de forma a recuperar a confiança nas instituições e a restaurar o sentimento de comunidade para que o pior não aconteça. Nesse sentido também é fundamental que haja uma liderança forte, sustentada por uma visão e objectivos honestos, coerentes e realistas, que encaminhe a todos na consecução de um destino comum que todos querem seja próspero mas com liberdade e justiça.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 846 de 13 de Fevereiro de 2018.

Este país não tem emenda

Pelas notícias em circulação percebe-se que nas últimas semanas a atenção voltou a centrar-se na problemática da seca, na necessidade de salvamento do gado e de garantir rendimento de subsistência à população rural atingida pela calamidade. Em causa fundamentalmente está como fazer chegar às pessoas a ajuda internacional de cerca de 10 milhões de euros que foi mobilizada nos poucos meses que se seguiram à declaração da seca. E já é claro que a perspectiva de distribuição de recursos de tal monta provenientes da ajuda externa produziu um frenesim notório nas múltiplas intervenções públicas de actores políticos, de organizações sociais e de membros das diferentes comunidades.
Todos parecem posicionar-se nessa corrida aos recursos para tirar o maior proveito da situação e ter ganhos que podem ser políticos, de influência e ganhos materiais como intermediário ou recipiente. Mas como já se conhece de situações anteriores, nesses exercícios de distribuição da ajuda externa o mais normal é que quem menos beneficia sejam justamente os elementos da população alvo da solidariedade externa. A vulnerabilidade das populações rurais que persiste até hoje é prova disso assim como também é a notória prosperidade de uma elite à volta do Estado que durante décadas privilegiou o modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa. Calculam-se entre 30 a 45% os custos administrativos dos projectos destinados às populações vulneráveis e que em boa parte ficam nas estruturas centrais e suportam os estudos, as viagens e os custos com os quadros necessários à implementação dos mesmos projectos. Reconhece-se aí perfeitamente a figura do Estado no topo da cadeia alimentar.
De um certo ponto de vista até se pode arriscar a ideia de que “infortúnios” são bem-vindos. Justificam e facilitam enormemente a mobilização de fluxos de ajuda externa do qual ainda muito da economia nacional depende. É só ver como se acirram os apetites de uns e se levantam as expectativas de outros. Além de não encarados e resolvidos, os problemas de fundo e as vulnerabilidades vão-se mantendo ao longo dos anos para, em situações como, por exemplo, de uma de seca, se revelarem completamente para aparente espanto e alarme de toda a gente, a começar pelas autoridades. Infelizmente, a forma como se lida com a situação, com todos a quererem tirar vantagem imediata, faz crer que dificilmente soluções com vista a pôr fim às vulnerabilidades serão consideradas e implementadas. Com visões estáticas de desenvolvimento incluindo as de fixar a população no sítio onde estão, perpetua-se a vulnerabilidade das pessoas porque realmente não há economia que aí as sustente e permita que se tornem mais produtivas e contribuam para criação da riqueza nacional. No dia-a-dia vão-se beneficiando da ajuda estatal e da solidariedade familiar, em particular das remessas dos emigrantes, até que qualquer desvio climático ou desastre natural venha expor a fragilidade da sua existência no limite da subsistência.
As dificuldades evidentes do país em definitivamente “mudar de paradigma” e, para além de todo o discurso oficial, acreditar, de facto, que pode desenvolver-se e deixar de depender da ajuda externa, não se mostram fáceis de ultrapassar. Historicamente pode-se facilmente demonstrar que os momentos de prosperidade que as ilhas tiveram ao longo dos tempos sempre aconteceram com o impulso de uma ligação com o exterior. Começou com apoio à expansão europeia no Atlântico e o comércio na costa africana nos tempos áureos da Cidade Velha, passou por outros momentos entre os quais os anos de movimento de barcos na Baía do Porto Grande de S. Vicente e nos dias de hoje é cada vez mais o turismo. Várias centenas de milhares de turistas europeus visitam as ilhas e pela sua presença e gastos feitos imprimem dinâmica à economia nacional. Paradoxalmente, há uma corrente forte com audiência particularmente nas elites do país que, para além da hostilidade mais ou menos velada em relação ao investimento externo, não deixa passar a oportunidade para se mostrar hostil a incentivos à presença de estrangeiros de origem europeia que são precisamente os que com os seus gastos ajudam a mover os negócios em Cabo Verde.
O último pretexto foi há dias o chamado Green Card, uma iniciativa do governo que incentiva a instalação de estrangeiros com isenção de impostos na compra de propriedade. Na pressa de acusar o governo de favoritismo em relação às empresas imobiliárias, perde-se de vista os múltiplos ganhos que o país pode ter a partir do momento em que, por exemplo, pensionistas recebem a sua pensão, fazem compras localmente, contratam pessoas para lhes prestar serviços e eventualmente investem nalguma área de negócio. Muitos países que não têm as vantagens do clima e outros requisitos culturais encontrados em Cabo Verde de há muito compreenderam a importância de ser bem-sucedida nestas e noutras iniciativas que facilitam a instalação de um número significativo de pensionistas e outras pessoas no seu território. A acrescentar às vantagens referidas, a iniciativa permite, por outro lado, ancorar o turismo em bases mais diversificadas diminuindo a dependência do actual modelo sol e praia, que assim como ganhou impulso numa conjuntura que foi desfavorável aos países do Norte de África, poderá perdê-lo numa outra circunstância se não se mostrar competitiva.
Faz alguma confusão ver que mesmo perante o falhanço de décadas de políticas que deixaram vulneráveis milhares de pessoas no mundo rural a tentação neste ano excepcional de seca é continuar a fazer praticamente o mesmo. Continua-se a rejubilar com a capacidade de mobilizar ajuda externa, a hostilizar as ligações externas que podem impulsionar a economia e a alimentar a ilusão de capacidade endógena do desenvolvimento. É caso para dizer que este país não tem emenda.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 845 de 07 de Fevereiro de 2018.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Assim não vamos lá

Na última sessão plenária da Assembleia Nacional o país pôde observar mais uma vez as consequências da extrema polarização na política nacional. Na berlinda estava o pedido do Ministério Público para o Parlamento autorizar que um deputado fosse ouvido como testemunha numa investigação criminal.
 A comissão permanente da AN já se tinha pronunciado a favor do levantamento da imunidade, mas o PAICV recorreu da decisão para a Plenária da AN. O choque partidário que se seguiu diminuiu o Parlamento, desinformou sobre a natureza real do instituto da imunidade e passou a ideia que via Parlamento se foge à justiça.
Ouvindo o debate, podia-se ter ficado com a ideia que as imunidades parlamentares são uma invenção cabo-verdiana, mais uma “caboverdura”. Não se teve o cuidado de explicar de como desde dos primórdios da democracia, e em respeito pelo princípio de separação de poderes, se garantiu que o Parlamento sendo o órgão plural que faz as leis e fiscaliza o governo não pode ficar sujeito a acções discricionárias de outros poderes, em particular do governo que controla a polícia. Com a imunidade parlamentar consegue-se, por um lado, defender os deputados de qualquer perseguição ou intimidação das autoridades e, por outro, conservar a configuração saída das eleições impedindo que os deputados sejam presos sem o consentimento da A.N. Por isso, nas suas duas vertentes, a irresponsabilidade (artigo 170 nº 1), ou seja, a impossibilidade de acção judicial contra os deputados por causa das suas opiniões e votos expressos no exercício das suas funções, e a inviolabilidade (artigo 170 nº 2 e 3), que condiciona a prisão ou o procedimento judicial do deputado a uma autorização prévia do Parlamento, excepto nos casos previstos na Lei Magna, a imunidade parlamentar está consagrado com pequenas nuances de diferença em todas as constituições democráticas. Ignorar este aspecto central e passar a imagem que a imunidade é algo que o deputado pode dispor ao seu bel-prazer, seja para o levantar porque “quem não deve, não teme”, seja para nele se refugiar numa tentativa de fuga à justiça, não é responsável. Como dizem os constitucionalistas “as imunidades dos deputados são instrumento objectivo de defesa do próprio Parlamento. Os deputados não podem renunciar a elas e o Parlamento não pode dispensá-las”.
Pelos posicionamentos ao longo da discussão percebe-se que o confronto não terminou com a votação que reconfirmou a decisão da Comissão Permanente. Prometem-se outros episódios no futuro próximo. Também de todos os lados se manifestaram vozes a propor mudanças na Constituição e na lei em matéria das imunidades no sentido de uma “colaboração pronta com a justiça” e de uma “igualdade de tratamento de todos os cidadãos”. A justificação é que durante o debate teria ficado no ar a ideia de que o actual regime de imunidades quase que se traduz numa forma de impunidade. Até se tinha deixado passar a ideia que o Parlamento ao não levantar a imunidade dos deputados abria o caminho para a prescrição dos casos em que alegadamente estariam envolvidos. Conclusão para alguns é que se tem que alterar o regime existente.
Nota-se nessa linha de discurso o populismo muito em voga no mundo de hoje em que imperfeições e ineficiências nas democracias e também alguns casos de abuso e corrupção são transformados em munições para mobilizar paixões na sociedade e desgastar as instituições democráticas. O alvo primeiro, como sempre, é o Parlamento e no caso das imunidades não foi excepção. É bom, porém, que se tenha em devida conta que não são só os deputados os contemplados pelas imunidades. Outros titulares dos órgãos do poder político também gozam de prerrogativas similares, designadamente o presidente da república que em caso algum pode ser preso preventivamente e que a crimes por ele cometidos fora do exercício das suas funções só responde perante o tribunal depois de terminar o mandato. Também os ministros só podem ser presos ou levados a julgamento com a autorização da Assembleia Nacional, o mesmo acontecendo com os juízes, mas com a autorização prévia do Conselho Superior da Magistratura.
As imunidades têm razão de ser e não estão isentas de críticas. Ao longo da história da democracia foram sujeitas a ataques diversos, mas, se no essencial persistem até hoje, é porque são indispensáveis para um funcionamento adequado do sistema democrático baseado no princípio de separação dos poderes. Só com um sistema funcional de checks and balance, de pesos e contrapesos, é que se pode evitar que surjam fenómenos perigosos na democracia como a deriva autocrática, a intolerância pela diferença, a tirania da maioria, o esmagamento das minorias e a limitação das liberdades. Abundam na história recente e passada exemplos que mostram o que acontece quando acaba o pluralismo e o poder concentra-se nas mãos de um chefe e os direitos fundamentais são espezinhados pelas autoridades.
Nesta fase em que se encontra a democracia cabo-verdiana é sempre bom ter em conta as duas recomendações que o cientista político da Universidade de Harvard, Steven Levitsky, faz para se manter um sistema democrático funcional. Primeiro, é fundamental que haja mútua tolerância e as partes vejam a actuação do outro como legítima. Uma segunda recomendação é que haja paciência e autocontrolo no exercício do poder e explica: em política, autocontrolo significa não fazer uso das prerrogativas institucionais até o limite, mesmo se for legal fazê-lo. Para isso é essencial que a polarização de posições que sempre acontece no jogo democrático não se desenvolva em posições extremadas a partir das quais as forças políticas se vejam quase como inimigas. O país necessita que haja sempre espaço para se encontrar os compromissos necessários para que a democracia e as instituições sejam salvaguardadas e a nação possa focar devidamente na realização dos seus objectivos de desenvolvimento. De outro modo lá não chegaremos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 844 de 31 de Janeiro de 2018.