segunda-feira, 28 de maio de 2018

Não confundir as prioridades

​Discursos do governo e dos partidos políticos na Assembleia Nacional e também de outros sujeitos políticos sistematicamente deixam transparecer a importância crucial da descentralização e da regionalização no desenvolvimento de Cabo Verde.
Pela ênfase que põem na matéria presume-se que a consideram não só como condição sina qua non para o sucesso futuro do país como também uma das primeiras prioridades senão mesmo a principal prioridade. As iniciativas legislativas do governo e da principal força de oposição que já deram entrada no parlamento dão sinal da vontade em avançar ainda que com diferenças quanto ao modelo, distribuição de competências pelos vários poderes e necessidade ou não de se operar uma grande reforma do Estado concomitantemente com a implementação da regionalização preconizada. O debate parlamentar desta sessão de Maio sobre a descentralização também é manifestação dessa vontade em manter o assunto bem vivo na mente dos eleitores. Pelos resultados e animosidade manifestada entre as partes ao longo do debate não é porém muito auspicioso quanto à possibilidade de se chegar aos acordos e compromissos necessários para a sua concretização.
Autonomia do poder local e descentralização da administração pública são princípios constitucionais que devem presidir a organização do Estado democrático e que importa operacionalizar da melhor forma para que os interesses específicos das populações organizadas em autarquias sejam reconhecidos e respeitados e que a máquina do Estado na sua tarefa de servir os cidadãos o faça com eficiência e eficácia, sem discriminação e garantindo igualdade de oportunidades. A dificuldade em aplicar esses princípios vem de longe. No pós-independência, o regime de partido único, por natureza centralizador, e o modelo de desenvolvimento adoptado baseado na estatização da economia e na reciclagem da ajuda externa exacerbaram a herança da centralização recebida do regime colonial. Quando finalmente nos anos noventa da democracia se verificou a restauração das câmaras municipais e a institucionalização do poder local eleito já se mostrou difícil reverter a onda do centralismo. Nem o esperado impacto da liberalização económica na dinamização das ilhas e na ascensão de uma sociedade civil autónoma conseguiu sobrepor-se aos efeitos socioeconómicos causados pela dependência externa que depois internamente se traduzia nas múltiplas dependências do poder centralizado a partir da capital do país.
As dificuldades de vária ordem, ideológicas ou outras, encontradas em operar uma verdadeira reorientação económica do país acabaram por acumular-se e criar frustração e ressentimentos que no ambiente político do eleitoralismo fácil foram canalizados para conseguir apoio político sob o argumento que uns tiram a outros o seu quinhão e que é imperativo para o desenvolvimento fazer a redistribuição dos recursos sem a correspondente preocupação com a produção. Com isso, infelizmente a matéria da descentralização e da regionalização passa a dominar a vida política e partidária não porque se reconhece que é essencial para a integridade do Estado de Direito democrático ou para se conseguir melhor ambiente de negócios ou ainda dar às comunidades de todo o país oportunidade para realizarem o seu futuro com autonomia, mas sim por ganância política. Ouvindo as muitas propostas que neste âmbito são avançadas, percebe-se que os objectivos de todo esse exercício político, apesar de todo o discurso feito, prendem-se com a necessidade em manter e conservar bases eleitorais. Ainda não se moveu para o centro da atenção de todos a necessidade de liberar as pessoas para construírem o seu próprio futuro e não deixá-las presas nas malhas que sistemas de dependência tendem a alimentar e a perpetuar.
Não estranha pois que dificilmente se chegue a acordo ou que se firmem compromissos quanto ao melhor caminho para realizar a descentralização ou a regionalização. Todos querem ganhar à cabeça e ao longo do processo. Com esse objectivo em mente todos os argumentos são válidos para se manter acesas as paixões dos grupos de apoio. Na generalidade das democracias, ataques a políticos tornaram-se corriqueiros, críticas devastadoras são feitas às instituições e o cinismo é abertamente cultivado em relação às políticas dos governos. Ninguém parece escapar à tentação de agitar sentimentos anti-partido, atacar o parlamento como órgão de mediação política e apontar a actuação dos governantes como distantes do real sentir do país e portanto de legitimidade duvidosa. Tanto assim é que, seguindo essa corrente e em nome da regionalização já se propõe diminuir o número de deputados, mudar o sistema eleitoral para se ter círculos uninominais, combater o partidarismo com primárias, com enfraquecimento de disciplina partidária e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidaturas nas legislativas. Em simultâneo faz-se apologia de práticas na actuação política como “estar junto das pessoas”, ouvir as pessoas e estar atenta às vozes expressas nas redes sociais sem mediação de qualquer tipo.
A realidade demonstrada pelo Afrobarómetro é que, não obstante as alterações já em curso, a democracia não está bem. A apreciação maioritária traduzida nas sondagens que vieram a público é que as pessoas estão insatisfeitas com a democracia e não se sentem ouvidas ou tidas em devida consideração pelos representantes do Estado. Tal apreciação deixa entender que afinal toda essa tendência para os políticos se comportarem como celebridades com voz própria, fraca ligação partidária e grande proximidade das pessoas não contribui muito para melhorar a confiança na democracia. Pelo contrário, poderá estar a piorar a situação com o ambiente quase caótico que se vai criando em que pessoas com um cargo já parecem ter uma agenda própria para se posicionarem para outro cargo público, e em que tiques narcísicos normalmente encontrados em celebridades aparecem com facilidade e em que não é muita a disponibilidade para mostrar coerência na actuação política, prejudicando no processo a procura da verdade e a capacidade para fazer os compromissos necessários para se atingir os grandes objectivos do país.
Cabo Verde no ponto em que se encontra não deve confundir as suas prioridades e não deve assumir que tem o tempo todo para soltar-se das amarras que dificultam crescimento rápido e criação de emprego. Deve sim poder construir consensos, acordos ou pactos de regime que favoreçam a consolidação das instituições democráticas e a reforma no sentido de maior eficácia em sectores-chave como a segurança e justiça.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 860de 23 de Maio de 2018.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Agir agora para não adiar o futuro

A dívida pública de Cabo Verde no montante de 2.150 milhões de dólares correspondeu em 2017 a 125% de Produto Interno Bruto. De 2016 para 2017 o PIB caiu de 130% para 125% do PIB devido a uma maior dinâmica económica que se traduziu num crescimento de 3,9%, superior à média de 1% dos cinco anos anteriores. Uma dívida de tais proporções é certamente preocupante e exige do governo respostas consistentes no quadro de estratégias que ajudem a manter a confiança no país enquanto condição indispensável para atrair investimentos e criar melhor ambiente de negócios. O quiproquó da semana passada à volta das declarações do primeiro-ministro e do vice-primeiro-ministro tem a ver com a necessidade e a urgência do país em traçar essa estratégia e em como engajar o FMI e eventualmente outras organizações internacionais para conseguir esse objectivo.
O acordo cambial em vigor desde 1998 exige para a sua sustentabilidade uma adesão firme do país aos critérios de Maastricht que estipulam a dívida pública até 60% e o défice orçamental até 3% aos países ligados ao euro. Em 2008, a dívida pública cabo-verdiana situava-se em 57% do PIB. Nos anos que se seguiram escalou rapidamente atingindo 91% em 2012 e 126% em 2015. O governo do PAICV justificou o rápido endividamento como necessário para se fazer face à crise financeira mundial de 2008 e também para construir as infraestruturas necessárias para uma rápida modernização do país. Insistiu sempre que as condições da dívida eram concessionais e por isso sustentáveis a prazo. Não se cansou de prometer que na sequência do investimento público verificar-se-ia o “crowding in” do investimento privado que levaria a uma economia dinâmica com taxas de crescimento mais elevadas e mais criação de emprego. Ao contrário do prometido, viveram-se anos de estagnação económica e alto desemprego ao mesmo tempo que o sector privado nacional atolava-se cada vez em dívidas e não conseguia aproveitar as oportunidades criadas por investimentos no turismo nas ilhas do Sal e da Boa Vista.
A economia de Cabo Verde sempre sofreu de um desequilíbrio estrutural derivado da sua fraca capacidade de produção e de exportação. Sem suficientes divisas para pagar as suas importações, precisa de fluxos externos, designadamente remessas dos emigrantes e ajuda externa para as compensar. Por outro lado, sendo um pequeno país com população diminuta e fraca capacidade de poupança, para poder crescer e criar emprego precisa de investimento directo estrangeiro, que trazendo capital, tecnologia e mercados lhe permita explorar recursos naturais, valorizar a posição geográfica e potenciar o capital humano existente. O problema do país é que passados mais de quatro décadas após a independência ainda não resolveu o seu desequilíbrio básico. A opção por um desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa impediu que se desse suficiente atenção à questão central que é a atracção de investimento para o país poder criar riqueza e exportar bens e serviços. Devia ser evidente que persistindo nesse caminho o “ajuste de contas” acabaria por se verificar um dia quando as ajudas diminuíssem e ainda não houvesse suficientes receitas de exportação para repor os equilíbrios.
Quando aconteceu, a opção não foi de rever o modelo de desenvolvimento, mas de persistir nele recorrendo agora ao endividamento externo para compensar a perda de donativos. Justificando que os créditos eram concessionais, beneficiando de juros bonificados ou prazos dilatados de pagamento, os governantes apressaram-se a utilizá-los, mas sem se preocupar com a relação custo/benefício na selecção dos projectos e muito menos se os projectos tinham custos escondidos em forma de cláusulas que privilegiavam empresas estrangeiras nas grandes obras ou forçavam a compra de uma boa parcela dos materiais no país concedente do crédito. Aparentemente o que lhes interessava, de facto, eram os ganhos políticos à volta das obras que iam anunciando e inaugurando um pouco por todo o país. Pareciam não se importar com o fraco impacto dessa obras na criação de emprego e na dinamização da economia, nem com a implosão do sector nacional de construção civil e nem também com o facto de os vários clusters que iam suportar-se nessas infra-estruturas não se terem materializado. Muitos milhões foram gastos. Registam-se hoje como um passivo na extraordinária dívida externa que põe Cabo Verde entre os países mais devedores do mundo, mas os retornos obtidos desses investimentos são comparativamente demasiados parcos.
Num encontro recente com as autoridades a propósito da política de investimento, especialistas da UNCTAD recomendaram que Cabo Verde tem de ser mais pró-activo na atracção do investimento estrangeiro. Insistem em que o país não tem que ficar pelas propostas dos investidores e que deve activamente promover o tipo de investimento que “pode melhor contribuir para os seus objectivos de desenvolvimento”. De outra forma, como dizem, não há diversificação da economia e o desenvolvimento do sector empresarial local fica limitado. Esta constatação dos especialistas quanto à importância do investimento directo estrangeiro devia ser evidente para todos. Só não é, porque no fundo continua-se a privilegiar as políticas de sempre de reciclagem de ajuda externas mas apresentadas em cada momento com as roupagens ajustadas aos tempos no estilo como se diz na gíria “para inglês ver”, enquanto tiques autárcicos, hostilidade a turistas e a investimentos estrangeiros são sub-repticiamente alimentados.
a encruzilhada em que se encontra, a opção em manter o país num caminho similar ao que tem percorrido não é desejável, nem sustentável. As ajudas diminuíram, a dívida pública é extremamente pesada e não devia haver espaço para mais sessões de ilusionismo. A tentação de voltar a repetir o que se fez no passado, mas com diferentes argumentos e escusas é porém muito grande. O problema é que desta vez a margem já é demasiado pequena e os custos de mais uma vez se adiar o país demasiado grandes. Não é fácil deixar de pensar pelos mesmos pressupostos, de exercer o poder sempre da mesma maneira e de manter uma posição passiva e reactiva na governação em vez de se optar por uma pro-actividade e uma abordagem estratégica na condução do país. Mas é isso que terá que ser feito para que o futuro não seja sistematicamente adiado.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 859 de 16 de Maio de 2018.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Isenção de vistos, medida fracturante

Na sequência do Conselho de Ministros da quinta-feira passada, o porta-voz do governo anunciou que a isenção de vistos para cidadãos da União Europeia e do Reino Unido irá vigorar a partir de Janeiro de 2019. A medida foi inicialmente apresentada ao público pelo próprio Primeiro-Ministro em Abril de 2017. A ideia então era que a medida seria efectiva no mês seguinte. Não foi possível e adiou-se para Janeiro de 2018. Adiamentos posteriores para Maio de 2018 e agora para 2019 deveram-se a questões operacionais levantadas pelos operadores turísticos políticos e ao que recentemente a embaixadora da União Europeia chamou de condições técnicas necessárias. Se logo do início a proposta de isenção de vistos não foi bem aceite, em particular em certos círculos de opinião sensíveis a questões identitárias, com o passar do tempo a percepção geral é que piorou. A sondagem do Afrobarómetro publicada em Abril estimou que uma maioria de 58% dos cabo-verdianos seriam contra a isenção de vistos a turistas europeus. No meio de tanta hostilidade há quem pergunte se realmente os sucessivos adiamentos devem-se a questões operacionais ou se são sinais de recuo ou de pelo menos de alguma hesitação do governo na sua implementação.
O objectivo da isenção de vis tos, de acordo com o PM, é “criar todas as condições para potenciar ainda mais o turismo e o investimento” com a eliminação de barreiras que normalmente colocam à livre circulação. Aparentemente não devia haver dúvidas quanto à necessidade de o país facilitar a vinda de capitais e conseguir aumentar o fluxo de turistas. Podia-se discutir se a melhor via é a isenção de vistos ou se as barreiras são na realidade burocracias e serviços ineficazes. Não se tinha que pôr em causa o objectivo de potenciar os
ingredientes essenciais para acelerar o crescimento do país, criar com rapidez postos de trabalho e possibilitar economias de escala a empresas nacionais envolvidas na produção de bens e serviços. Estranhamente, foi precisamente o que aconteceu e acontece sempre que a questão da isenção dos vistos é trazida para discussão. Prefere-se discutir porque é que
o cabo-verdiano tem de facilitar o visto ao turista, investidor ou homem negócios europeu, quando a mesma “gentileza” não lhe é estendida para entrar na Europa. Não se quer entender que para se ser bem-sucedido na relação com outros países há que adoptar estratégias diferenciadas, aceitar que nem tudo vai à mesma velocidade e que prioridades divergem e mudam com o tempo.
Em 1998, por exemplo, não se falou de reciprocidade quando se estabeleceu o peg fixo do escudo ao euro, mas é facto que com essa decisão unilateral o país ganhou anos de baixa inflação, granjeou confiança que lhe permitiu atrair investimento externo e conseguiu
manter a estabilidade macroeconómica enquanto duplicava o seu PIB. Hoje também há que assumir que há uma estratégia para atrair investimentos e turistas e deve haver outra para conseguir a aproximação com a Europa num quadro de livre circulação. Assim como outros países africanos insulares como as Maurícias e as Seicheles já conseguiram isenção de vistos para Europa também Cabo Verde atingirá esse Iobjectivo se tiver uma estratégia para isso e souber tomar as medidas que se impõem para designadamente “securitizar” as suas fronteiras. De outra forma o ressentimento contra os europeus só irá aumentar, prejudicando todo o esforço de desenvolvimento do país, inibindo o crescimento económico e impedindo a criação de postos de trabalho que, com novos investimentos e o aumento da procura interna devido ao consumo de turistas, seria possível conseguir.
A dificuldade em ver o óbvio nesta matéria deve-se em grande parte ao logro que de há muito os cabo-verdianos e, em particular, os que aspiram a emigrar, têm caído devido às omissões e meias verdades nas declarações dos governantes em matéria de isenção de vistos. É prática generalizada os países através de isenção de vistos facilitarem a homens de negócios, turistas, investidores, cientistas e outros estadias de curta duração de 30 ou 90 dias. Não são vistos para emigrar nem autorizações de residência ou permissão de trabalho, mas num país com tradição de emigração podem ser tidos como um expediente para emigração clandestina. Se essa interpretação nunca é, de facto, contrariada e, em sentido oposto, nas entrelinhas dos seus discursos, os governantes sistemática e disfarçadamente deixam entender que assim é,
mesmo quando assinam acordos de mobilidade com a União Europeia que os obriga a aceitar gente deportada na sequência de processos acelerados para fazer face à emigração ilegal, então o problema perpetua-se. Não tarda que venham acusações de discriminação ou de racismo e que o ressentimento desponte.
Se a discussão à volta da isenção dos vistos ficasse só pelas estratégias a seguir na consecução dos objectivos seja quanto ao investimento e turistas, por um lado, e livre circulação, por outro, e não fosse alimentada por equívocos, seria relativamente fácil ultrapassá-los como maior e melhor informação. A realidade é que não é assim e a razão disso é que há muito que a política em Cabo Verde deixou-se contaminar por elementos identitários. A fragilidade do cabo-verdiano apanhado entre a Europa e África tem vindo a agravar-se e o mais normal é que, como se vê noutras democracias, e um pouco por todo o mundo, o populismo emergente procure tirar proveito das questões identitárias e aprofunde ainda mais o fosso. A irracionalidade que normalmente acompanha esses fenómenos já é verificável em Cabo Verde nas sondagens que colocam a maioria dos cabo-verdianos contra os próprios turistas que mantêm uma parte decisiva da economia nacional a produzir e a trabalhar.
A batalha entre a África e Europa continua a ser travada com fragor mesmo que no processo não se melhore significativa mente o destino turístico, não se garanta a segurança e não se consiga controlar o comércio informal que assedia o turista no seu dia-a-dia. E certamente que o projecto de lei ontem anunciado pela maior força da oposição e que visa legalizar imigrantes vindos dos países da CEDEAO ir trazer mais acha para a fogueira. Será mais uma oportunidade para picardias entre africanistas e europeístas. Dividido, Cabo Verde dificilmente poderá fazer uma discussão séria e consequente de como deverá posicionar-se para poder crescer de forma sustentada e garantir trabalho para todos.Com as questões identitárias a chocarem-se qual placas tectónicas é o país que fica adiado enquanto fracturas propagam no tecido social causando estragos ao nível das comunidades e dos próprios indivíduos. Considerando como a consciência da cabo-verdianidade nas múltiplas manifestações se consolidou ao longo de boa parte do século 20 não tinha que ser esta a realidade 43 anos depois da independência.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Grito de alerta

​O Afrobarómetro divulgou na quarta-feira passada, 25 de Abril, os resultados do inquérito realizado em Novembro de 2017. A generalidade dos políticos e dos observadores foi apanhada de surpresa. Ninguém esperava ouvir que 76% dos cabo-verdianos estivessem nada ou pouco satisfeitos com a democracia e que 44% qualificassem o regime político cabo-verdiano como sendo uma democracia com grandes problemas. Nem tão pouco podia-se adivinhar que apenas dois anos após a mudança de governo já houvesse uma maioria de 58% a considerar que o governo está a caminhar na direcção errada.
O facto, porém, é que já se devia ter previsto que esta legislatura não iria ser como as anteriores. Os tempos são outros: as pessoas mostram-se mais críticas, as instituições democráticas têm vindo a fragilizar-se sob a pressão do populismo e o país globalmente está escaldado e céptico após anos seguidos de política ilusionista. Devia ser óbvio que quem ganhasse as eleições teria curto tempo para agir, comunicar eficazmente e convencer os caboverdianos que iria cumprir com as promessas, sob pena de entrar num processo rápido de desgaste. A sucessão de manifestações, as ameaças e as greves destes dois anos constituíram avisos sérios que talvez o governo não tenha levado em devida conta. O resultado vê-se no inquérito.
Mas podia ter sido pior na ausência do crescimento de 3,8% e 3,9% do PIB verificado em 2016 e 2017 respectivamente muito superior à média de cerca de 1% dos cinco anos anteriores e com impacto na criação de emprego. Não é por acaso que os inquiridos do Afrobarómetro manifestaram confiança na melhoria das condições de vida mesmo quando a maioria diz que o país está na direcção errada. A contradição talvez traduza, por um lado, o reconhecimento que dinâmicas benéficas para a economia estão a ser geradas pela nova atitude do governo em relação à actividade privada quando, por outro lado, ainda persistem dúvidas sobre onde se quer levar o país. O governo ainda não convenceu quanto à despartidarização da administração pública, quanto à privatização de empresas em sectores-chave e quanto à estratégia de atracção de investimento externo e aumento do fluxo turístico. E verdade seja dita, dificilmente confiança é ganha, para se se ser suficientemente persuasivo em apontar um rumo diferente ao país, se problemas urgentes como insegurança, justiça, combate ao desemprego, habitação, saúde e educação não dão sinais inequívocos de estarem a ser equacionados e resolvidos.
Confiança nas instituições é fundamental nas democracias. Mostra-se por isso problemático verificar no inquérito do Afrobarómetro que comparativamente aos anos anteriores diminuiu a confiança do cabo-verdiano no funcionamento da democracia e em fazer-se ouvir pelos seus representantes nos órgãos de poder político. Num determinado sentido esta perda de confiança é um sinal dos tempos em que a crise grassa por todas as democracias novas ou consolidadas. Noutras paragens, razões como a globalização, as migrações internacionais, as sequelas da Grande Recessão de 2008 e da crise do euro e conflitos entre soberanistas, nativistas e cosmopolitas já levaram a saídas da União Europeia, eleições de populistas, rearranjos no sistema de partidos com desaparecimento de uns e emergências de outros, ameaças de secessão e ressurgimento do fascismo. Em Cabo Verde o populismo não alterou ainda o quadro partidário. Tem- se manifestado dentro e através dos partidos e no processo afectado as instituições, a relação entre órgãos de soberania e o modo de fazer política.
Ao alimentar o espírito anti-partido e anti-política o populismo reduziu o papel dos partidos na criação da vontade política e abriu caminho para percursos individuais que pela forma como ascendem explorando sentimentos, criando empatias e recorrendo a factores identitários dificilmente se ajustam às exigências de funcionamento das instituições da democracia representativa. Da deriva, o que se nota é que os novos políticos e a nova política tendem a comportar-se como celebridades sempre no centro de tudo e fazendo concentrar tudo na sua pessoa em detrimento da instituição, do recato que o seu funcionamento exige, da preocupação em seguir as normas procedimentais e do foco na procura do interesse geral num quadro plural e de exercício do contraditório.
A degenerescência e consequente perda de prestígio que, por exemplo, consome o parlamento verifica-se quando os seus trabalhos são dominados por esse tipo de protagonismo que se autojustifica com uma suposta ligação especial do deputado, sem mediação alguma, com o povo. Não deixa de ser de alguma forma trágico que o desejo legítimo das pessoas em se fazerem ouvir e em decidir quem as deve representar desencadeie um processo de escolha de representantes que contrariamente ao pretendido vai ajudar a alimentar uma fogueira de vaidades capaz de consumir políticos, a política e as instituições, deixando a todos em pior situação. No mesmo sentido, o espectáculo da degradação institucional que se vem notando nestes anos tende a reforçar ainda mais o desejo de se romper com as formas tradicionais de fazer política. Ao fazer isso tem o potencial de precipitar ainda o mais o descrédito dos parlamentos e partidos e permitir o reforço precisamente do tipo de política que inevitavelmente deixa todos mais abertos à ascensão triunfal de algum líder exigente na lealdade que quer de todos em troca de uma liderança com soluções simples e completa para tudo.
A publicação do inquérito do Afrobarómetro e dos dados neles contidos sobre o relacionamento do cabo-verdiano com a democracia deve ser tomada com um grito de alerta quanto à degradação da imagem já sofrida pelas instituições sob o impacto do populismo infiltrado nos partidos políticos. Populismo esse que encontrou aliados nos velhos inimigos da democracia representativa que nunca deixaram de repetir que pluralismo é desperdício de recursos e que a defesa dos direitos fundamentais é um obstáculo à democracia musculada necessária para acabar com a insegurança. Opor-se à degenerescência da democracia é fundamental para preservar a liberdade e garantir a igualdade de oportunidades e justiça. Não é a tarefa que se deixa para fazer depois. O próximo Afrobarómetro tem que poder mostra uma inversão da tendência actual na confiança na democracia.

Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 857 de 02 de Maio de 2018.