sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Preservar a estabilidade que o sistema parlamentar de 92 proporcionou

 A questão dos poderes do presidente da república é um tema de debate actual em vários países e nos mais diferentes sistemas políticos. Nos Estados Unidos com o sistema presidencialista a grande discussão é se no quadro da teoria executiva unitária o presidente tem competência para demitir qualquer titular de cargo público, incluindo as autoridades reguladoras e possivelmente o governador do banco central. Na França semipresidencialista pergunta-se se o presidente devia renunciar ao mandato porque em sucessivas tentativas não consegue uma maioria parlamentar favorável às suas políticas. Em Portugal e em Cabo Verde, de sistemas de governo parlamentar, questiona-se a partir de que limites o exercício dos poderes deixa de ser moderador e de não ingerência para ser perturbador e desestabilizador.

Em qualquer dos casos, o maior protagonismo dos presidentes, seja nos sistemas presidencialistas ou semipresidencialistas, seja nos sistemas parlamentares, acaba por afectar os outros órgãos de soberania enfraquecendo o equilíbrio dos poderes e os pesos e contrapesos (checks and balances) do sistema. Nos primeiros casos em que o presidente governa, como na América, o congresso vê a sua competência fundamental de cobrar impostos e de alocar fundos limitada por um presidente que arbitrariamente determina tarifas alfandegárias e selectivamente recusa-se a disponibilizar às entidades públicas meios aprovados previamente por lei. Também na França sem uma maioria em linha com o presidente e com a dificuldade dos partidos em conseguir chegar a acordo, instala-se a instabilidade como vem acontecendo com quedas sucessivas de governo.

Nos regimes parlamentares, o excessivo protagonismo do PR aumenta a probabilidade de tensões com o primeiro-ministro e o governo e fragiliza o próprio parlamento. A oposição é tentada em procurar alianças extra-parlamentares, incluindo a aproximação táctica ao presidente da república, e no limite a criar caminho para a dissolução do parlamento. A instabilidade governamental que se torna regra, como se vê no caso português, pode levar à ascensão de forças antissistema. Noutros casos gera mal-estar que pode propagar-se para outras instituições do Estado, cujos titulares são nomeados pelo PR sob proposta do governo, e até para a relação governo/sociedade, quando interesses vários pressionam e se põem a jeito para que a magistratura de influência se configure como ingerência nas competências do governo.

Com eleições presidenciais no próximo ano, no mês de Janeiro em Portugal, e em Novembro possivelmente em Cabo Verde, o debate está aberto em como ultrapassar esses riscos de instabilidade política e de mal-estar social que veem ameaçando a democracia. A acicatar o debate está o constitucionalista português, Vital Moreira, com o seu novo livro, “Que presidente de república para Portugal”, em que enumera requisitos para o cargo: (i) compromisso incondicional com os valores constitucionais; (ii) percepção clara do papel do Presidente,especialmente quanto aos limites dos seus poderes; (iii) estrita imparcialidade partidária, como representante unitário de toda a coletividade nacional; (iv) adesão firme ao princípio republicano da separação entre interesse público e interesses particulares ou de grupo; (v) prudência, ponderação, recato institucional e elevação nas suas decisões e declarações! Entretanto, unanimidade parece existir entre os candidatos a presidente da república que é de evitar o tipo de magistratura presidencial do actual PR, Marcelo Rebelo de Sousa.

Em Cabo Verde, o PR José Maria Neves em posicionamentos públicos e em reflexões nos discursos, entrevistas e recentemente em “notas avulsas” na sua página pessoal do Facebook deixa entender que tem estado a pensar detidamente sobre a Constituição e os poderes do presidente. Um resultado prático disso tem sido o que aparenta ser uma tentativa de expansão dos poderes do PR no quadro da competência partilhada em relação a alguns cargos públicos de nomeação dos titulares sob proposta do governo. É evidente que daí só pode vir mais tensão nas relações entre os órgãos de soberania, o que em certa medida é normal, mas não a ponto de interferir na continuidade da autoridade do Estado investida nas instituições.

A falta de recato institucional no processo, traduzido em declarações públicas provavelmente feitas para passar a culpa pela demora na nomeação de novos titulares ou para pressionar, deu origem a leituras públicas que estariam caducados e sem validade os cargos públicos que chegaram ao termo do mandato. Ainda bem que para além de algumas manifestações antissistema que sempre existem nas democracias ninguém andou a questionar a validade dos acórdãos do tribunal de contas e das decisões e pareceres do ministério público. Também é de valorizar a responsabilidade republicana dos titulares desses cargos em se manterem nos seus postos. De facto, nas repúblicas, mesmo nos casos extremos de desentendimento entre órgãos de soberania como acontece actualmente na América com a paralisia da administração federal por bloqueio de fundos, não há vazio. Os cargos de polícia e outros que encarnam a autoridade do Estado são exercidos sem que funcionários recebam o salário devido.

O PR que tem a função de velar pelo normal funcionamento das instituições deveria ser o primeiro a dar garantia da validade do exercício dos cargos pelos seus titulares até serem substituídos. Nas democracias os mandatos eleitorais é que não podem ser encurtados ou prolongados sem respaldo constitucional quanto às circunstâncias. Para os cargos que dependem do processo político entre partidos ou entre órgãos de poder político deve-se evitar sinais que podem pôr em causa as instituições.

Em particular em relação às forças armadas cuja subordinação ao poder civil é um pilar fundamental das democracias, a Lei de Defesa atribui ao PR, enquanto comandante supremo, a função de garantir a fidelidade das FA às instituições. Para isso pode aconselhar o governo que, de facto, dirige o Estado, mas em privado. Claramente que trazer para o público, em “notas avulsas” no Facebook, que nomeou o novo Chefe de Estado Maior “depois de limar algumas arestas” e que recusara uma primeira proposta “por razões que se prendem com ética republicana que orienta o funcionamento da instituição castrense”, não promove a lealdade institucional entre órgãos de soberania nem a confiança das FA que está na base da sua fidelidade à ordem constitucional.

Mas como diz Vital Moreira, “se o presidente da república se excede, se abusa dos seus poderes, não há meio nenhum de o impedir. Sem poder ser responsabilizado politicamente é de se exigir que seja cumprido o juramento de defender e de cumprir e fazer cumprir a Constituição para se ter a garantia do normal funcionamento das instituições. De outra forma é o caos que pode vir a instalar-se com a desconfiança entre órgãos de soberania, com a perda da autoridade do Estado e com a falta de confiança e previsibilidade quanto ao cumprimento actual e futuro das regras do jogo democrático, em particular quanto ao princípio da separação de poderes.

Com as eleições legislativas no horizonte e tendo em conta eventuais sinais de turbulência nas relações entre o PR e o governo devido à interpretação expansiva dos poderes do PR, há que fazer um esforço para regressar aos contornos constitucionais que nestes 35 anos de democracia garantiram ao país estabilidade política, condição essencial para o país continuar a crescer e a prosperar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Prémios Nobel apontam o caminho para o crescimento económico

 

Na semana passada o Comité Nobel nomeou para o Prémio Nobel da Economia Joel Mokyr, Philippe Aghion e Peter Howitt pela sua contribuição para a compreensão do papel do conhecimento e da inovação no crescimento económico. No ano anterior, os premiados tinham sido os economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson por demonstrarem a importância das instituições para a prosperidade das nações. As escolhas do Comité Nobel denotam a preocupação actual com o crescimento económico num mundo de incertezas, tensões inflacionistas e dívidas públicas crescentes tanto dos países desenvolvidos como das pequenas economias.

Identificar os motores do crescimento económico sempre constituiu um objectivo de governantes, de simples empresários ou empreendedores e de também de estudiosos e investigadores do sector. Os óbvios candidatos são os recursos naturais, em particular, minérios, petróleo, diamantes, etc. A ideia é de os mobilizar para assegurar a produção contínua e sustentável de riqueza de forma a garantir prosperidade para todos. Isso, porém, nem sempre acontece porque se em alguns casos têm o potencial de contribuir para a riqueza das nações, em demasiados casos transformam-se numa espécie de maldição. E quando assim é, a sua exploração resulta em desigualdades crescentes, falência ou quase falência dos Estados sob o peso da dívida externa e populações marginalizadas submetidas à pobreza extrema.

Mas há outros candidatos para motores de desenvolvimento. Acemoglu e os outros prémios Nobel demonstraram que a qualidade das instituições constitui um factor para as nações não falharem, independentemente dos recursos existentes. É verdade que podem ser extractivas, enriquecendo uns em detrimento da maioria, ou inclusivas, facilitando a cooperação entre indivíduos e grupos, alimentando a confiança e renovando o sentido de pertença. Mas enquanto intangíveis as instituições, diferentemente dos recursos naturais aleatoriamente espalhados nos diferentes continentes, podem ser modeladas pela vontade e sentido de responsabilidade dos povos e nações. Trata-se, portanto, de uma escolha.

Joel Mokyr e os outros dois premiados encontram um outro factor de promoção da produtividade e de criação de prosperidade através da assunção de uma cultura do crescimento. Uma cultura aberta à divulgação do conhecimento, à possibilidade de mudança no conhecimento acumulado e à ideia de aplicação prática do novo conhecimento pelas pessoas. Para esses autores, o amor ao conhecimento e a curiosidade estiveram na origem do que chamam de iluminismo industrial que deu suporte à revolução industrial e, a partir daí, ao crescimento económico e à prosperidade geral, que mesmo com todas as desigualdades no mundo, nunca antes se verificara. Condena-se à estagnação, como bem demonstra a História, quem restringir ou não valorizar o conhecimento e desincentivar o acesso às tecnologias que os avanços do conhecimento tornam uma realidade a todo o momento.

Sendo intangíveis os factores de crescimento económico identificados, as instituições, o conhecimento acumulado e a curiosidade, estão ao alcance de todos permitindo contornar as vulnerabilidades várias, em particular as derivadas da falta de recursos naturais, da pequenez da população e da insularidade. O sucesso de economias como Singapura, Maurícias e Estónia vem fundamentalmente da aposta forte feita nesses activos intangíveis. Também em Cabo Verde pode-se correlacionar o crescimento económico médio de 5% em 1991 e 2019 com a instituição do Estado de direito democrático e da democracia.

Depois da Covid-19 e da contracção violenta da economia devida à interrupção do fluxo turístico para o arquipélago, seguiu-se a recuperação rápida com o regresso dos turistas, perfilando-se para continuar a crescer nos próximos anos acima de 5%, embora ainda muito dependente do turismo. O país pôde fazer isso porque as suas instituições e os serviços mostram um nível de qualidade, previsibilidade e constância que transmite confiança suficiente para investidores, turistas e a cooperação internacional se sentirem confortáveis para apostar no país.

Felizmente que Cabo Verde não passou pela mesma situação das ex-colónias portuguesas que levou praticamente ao colapso da administração pública com os regimes de partido único claramente inexperientes em matéria de administração do Estado. Aqui, diferente da Guiné que também era governada pelo mesmo partido nos primeiros cinco anos, a quase totalidade da administração pública do arquipélago já funcionava com cabo-verdianos antes da independência e garantiu a continuidade que evitou eventuais vazios institucionais. Com o advento da democracia foi mais fácil ajustar-se às práticas institucionais da ordem liberal internacional e facilitar o crescimento económico. Daí a referência, várias vezes repetida, que a governança em Cabo Verde destaca-se pela positiva das ex-colónias portuguesas, uma constatação que confirma a importância das instituições no desenvolvimento dos países.

O facto de estar a crescer acima dos 5% significa que as instituições estão a funcionar e os operadores económicos e cidadãos em geral depositam nelas um certo nível de confiança, não obstante as insuficiências de performance em vários sectores. É fundamental ultrapassar essas insuficiências e aumentar a eficiência geral da economia com melhor gestão do sector empresarial do Estado e diminuição dos custos de contexto. Ninguém devia procurar tirar dividendos políticos, ajudando a projectar a imagem de um país em estado caótico, o que não é verdade apesar dos problemas, alguns deles complicados. Pelo contrário, o esforço e o discurso político partidário devia estar focado em encontrar vias para aumentar o potencial da economia e crescer mais e também pronto para dialogar sobre as reformas necessárias e firmar os acordos de regime que forem necessários.

Não é com o país em permanente sobressalto a dar vazão a frustrações e ressentimentos que se vai poder ter a tranquilidade nas escolas e melhorar o sistema de ensino. Ou que se vai focar a atenção da sociedade nos avanços científicos e tecnológicos e apoiar o uso inovador do conhecimento e das novas ferramentas. Ou ainda que se vai espicaçar a curiosidade de jovens e crianças e estimular o pensamento crítico e incentivar a criatividade para que o país tenha uma cultura moderna de procura permanente de vias para continuar a prosperar. Com tal atitude de negativismo só se está a acenar as pessoas com a perspectiva de menos rendimentos e mais pobreza quando se desvia o foco do crescimento económico para a redistribuição na perspectiva de Robin dos Bosques a tirar dos ricos para aumentar na panela dos pobres.

A verdade é que Cabo Verde já viu esse filme e sabe qual é o desfecho: leva à estagnação, a mais pobreza e à tirania. O país soltou-se desse destino quando pôde construir as instituições de um Estado de Direito e recuperar a segurança, a liberdade e a confiança e, ao mesmo tempo, pôde investir sem peias no conhecimento, estimular a iniciativa e facilitar o empreendedorismo. Não é de se repetir os erros do passado particularmente quando, com tanta enfase nos prémios Nobel, se afirma o que é preciso fazer para construir e sustentar a prosperidade das nações. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1247 de 22 de Outubro de 2025.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

O 13 de Outubro reforça a união para o país vencer

 

O 13 de Outubro é mais uma data que ficará inscrito na memória dos cabo-verdianos. Depois de uma sucessão brilhante de actuação da selecção nacional de futebol, a começar pela derrota infligida à equipa dos Camarões, seguida da extraordinária recuperação no jogo frente à Líbia que garantiu o empate e finalmente da retumbante vitória sobre Eswatini, consegui-se o inimaginável para um pequeno país insular: a participação no Campeonato Mundial de Futebol de 2026. A alegria dos cabo-verdianos não podia ser maior, as demonstrações da euforia que tomou conta de toda a gente verificaram-se em todos os pontos do país e nas comunidades no exterior.

Foi um momento extraordinário em que através do simbolismo da bandeira nacional, nas camisolas, nas mãos de adultos e crianças e nos carros em circulação, a Nação se reviu, toda ela, unida e com a sua autoestima reforçada. Passou a sentir com mais certeza de que, mesmo com parcos recursos e vulnerabilidades múltiplas e a exemplo da sua selecção de futebol, está ao seu alcance construir um futuro de sucesso e prosperidade. São momentos desses que relembram ao país a importância fulcral de se sentir parte de uma comunidade nacional capaz de potenciar a diversidade de experiência das suas gentes nas ilhas e na emigração e de mobilizar a enorme força afectiva que as liga aos “dez grãozinhos de terra espalhados no meio do mar”. Essa lembrança, pela intensidade dos sentimentos de pertença à comunidade que a suscitou, vem no tempo certo.

Na conjuntura actual de grandes incertezas, um factor de crise geral são as forças centrífugas, constituídas por extremismos diversos altamente polarizantes e individualismos exacerbados potenciados pelas redes sociais, dirigidas para a desunião das comunidades nacionais. Sem forças centrípetas a pressionar em sentido contrário para assegurar o centro e manter o equilíbrio, poderá verificar-se a instabilidade na sociedade, a perda de foco individual e a desesperança geral. No dia 13 de Outubro, Cabo Verde demonstrou que os ingredientes estão todos lá para mobilizar as forças que ajudam a reequilibrar o país, que permitem a continuação da busca pelo bem comum e renovam a satisfação de “ter nascido cabo-verdiano” cantada pelo poeta.

Nos últimos anos vem-se assistindo nas democracias à polarização que impede o diálogo baseada numa realidade partilhada, ancorada nos factos e que busca a verdade em aproximações sucessivas. Sem diálogo, os extremos retroalimentam-se, descredibilizam as instituições e desacreditam a democracia. E sem política democrática a sociedade fica impossibilitada de identificar, equacionar e encontrar soluções para os problemas.

O mais estranho em tudo isso é a disponibilidade, em vários momentos, dos partidos tradicionais e do centro, de titulares dos órgãos de soberania e de sectores da sociedade como as universidades e os média em contribuir sem cuidado para a fragilização da ordem sociopolítica existente. Uns fazem isso por entretenimento ou à procura de audiência, outros por promoção pessoal e outros ainda apostando no processo caótico posto em movimento pelas suas próprias acções. Acrescenta-se a isso a tendência para os actores políticos exacerbarem nas suas performances, ultrapassando a fronteira das suas competências, e com isso explorar o culto dos “enfants terribles” ou de líderes extravagantes que cativam pelo entretenimento e pela impunidade de que parecem beneficiar.

Um sintoma do que vem acontecendo em países democráticos é um certo desorientamento da sociedade civil face aos desafios do presente e futuro que em Cabo Verde no último fim-de-semana transpareceu nas manifestações em algumas ilhas. Com algumas centenas de pessoas percebe-se a relutância em participar para não ser rotulado em termos partidários. Também se sente a dificuldade em pôr em devida perspectiva os problemas que sucessivamente parecem afectar sectores-chave e a pouca esperança depositada nos partidos existentes, não obstante ver-se a solução num terceiro partido para romper com o bipartidarismo.

Realmente o país, apesar da sua estabilidade e democracia, tem problemas, uns derivados da falta de eficiência na utilização de recursos e outros gerados pelo próprio crescimento económico de mais de 5% em média, sem que visões plurais do que poderá ser a sua melhor via para florescer no actual mundo de incertezas sejam articuladas. E a proximidade das eleições legislativas não é tranquilizador. A alternativa ao partido no poder, com o lastro do desgaste de 10 anos de governação, é a oposição recentemente capturada pela política populista que cinco anos depois ainda não convenceu na gestão municipal da capital. Um cenário dessa natureza deveria levar os principais actores políticos a contribuírem para aprofundar a união nacional e aumentar a confiança, com adesão efectiva às regras do jogo democrático, disponibilidade para encontrar soluções compromissórias e abertura para incentivar o debate mais aberto, livre e crítico. Infelizmente não é o que acontece.

Parece mais forte continuar a fazer o mais do mesmo. Um exemplo é depois de o governo ter retirado um manual escolar sobre o crioulo, após receber um parecer do Ministério Público para se proceder à “supressão da norma ortográfica constante do manual por não ter sido objecto de aprovação por diploma da Assembleia Nacional”, o ministério ter programado para o Dia Nacional da Cultura uma formação sobre as bases de escrita do crioulo através do ALUPEC. Ora, o ALUPEC também não foi aprovado pelo parlamento, mas sim por um decreto-lei do governo em 2009. Conhecendo as fortes controvérsias à volta da escrita do crioulo cujo último episódio levou ao parecer da PGR, ignorar regras e procedimentos não é a via para ultrapassar questões fracturantes da unidade nacional.

No mesmo sentido vai o presidente da república, num discurso recente na Universidade de Santiago, ao considerá-las “polémicas” que devem “ser ultrapassadas com consenso científico”. Aliás, proclama logo a seguir que “a comunidade científica é unânime em reconhecer que o ensino da Língua Cabo-verdiana (…) facilita a aprendizagem do português e de outras línguas”. Unanimidade, porém, não é algo que se espera das comunidades científicas nem em campos bem consolidados como o da física quântica ou das vacinas quanto mais da linguística e das ciências cognitivas. E, de facto, não se promove pensamento crítico, debate aberto e espírito inovador nas universidades com definição de linhas de orientação para pesquisa futura e criação de um “movimento” para escrever a história, a partir de uma posição de autoridade em modo de partilha de convicções.

Também não se garante a unidade do Estado quando, como aconteceu no dia 9 de Outubro, o parlamento resolveu autoflagelar-se com a questão da eleição dos órgãos externos sabendo que resultam do processo político negocial entre os partidos cujos votos somam uma maioria qualificada. Atirar culpas uns aos outros faz parte do jogo político e por isso e pelos seus compromissos ou bloqueios são responsáveis perante os eleitores. O que não devem fazer é criar vazios ou zonas cinzentas na autoridade do Estado ao considerar caducos ou sem validade os cargos porque o PR os assim quis rotular, não seguindo o princípio constitucional de prorrogação do mandato dos cargos público até à substituição dos titulares. É bom lembrar que, nas democracias com sufrágio directo e periódico, são os mandatos eleitorais do presidente da república, dos deputados e dos eleitos municipais que não podem ser prolongados ou encurtados, salvo nos casos constitucionalmente admitidos.

Nem as Forças Armadas, sector sempre sensível nas democracias, ficaram intocadas. Não é à toa que a Lei de Defesa Nacional ( Lei 62/IV/92) ao definir a função do comandante supremo das forças armadas, estabelece que o PR deve assegurar fidelidade das FA à Constituição e às instituições do Estado e aconselhar, em privado, o governo acerca da política de defesa e das FA. Pela primeira vez questiona-se se “nomear, sob proposta do governo” o chefe de estado maior, como estabelece a Constituição, significa realmente escolher e nomear. Há quem se indague se a indicação não deveria vir do interior da corporação. Tais burburinhos não contribuem para a estabilidade da democracia que tem na sua base a subordinação das forças militares ao poder civil. A declaração do PR, na radio nacional, para se evitar a suposta governamentalização das FA prima pelo descuido por eventual ressonância com resquícios de cultura corporativa dos tempos em que a instituição, como braço armado do partido, estava acima do Estado, algo que o PR não pode ignorar.

A democracia, sendo um sistema político na base de regras e procedimentos, tem a vantagem de permitir prosperar em liberdade e de abrir portas para a todos procurarem a felicidade. Essa é uma verdade que a vitória celebrada no 13 de Outubro deve ajudar a consolidar. De facto, para um país como Cabo Verde realizar o feito de ir para o mundial de futebol só foi possível porque todo o sistema de qualificação se rege por normas conhecidas e que por isso há confiança de que com esforço e foco o sucesso está ao alcance de todos. Manter a confiança na democracia, assegurando o cumprimento do jogo democrático, é a via, não obstante os sobressaltos, para o sucesso que todos desejam e merecem.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1246 de 15 de Outubro de 2025.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Fortalecer a sociedade e ajustar o país aos desafios actuais

 

Actualmente ninguém tem dúvida que os ventos da história não estão a soprar a favor do progresso geral como até recentemente se acreditava. Desde a segunda guerra mundial e da ordem económica liberal, que foi então criada, e particularmente depois da guerra fria e da derrocada da utopia comunista, instalou-se um optimismo em relação ao futuro da humanidade que agora dá sinais de soçobrar. Suportado sobre os princípios da dignidade humana e do respeito pelos direitos fundamentais e pelo primado da lei, as portas pareciam ter sido abertas para o crescimento económico e prosperidade geral que a globalização e o multilateralismo colocariam ao alcance de todos. Infelizmente, o mundo mudou, a ordem existente cede a olhos vistos face à emergência de um mundo multipolar marcado por conflitos geopolíticos e relações transacionais, criando na sua esteira incertezas várias que já não permitem que se espere sempre “mais e melhor”.

Para o sociólogo alemão Andreas Reckwitz os tempos de hoje trouxeram de volta a sensação de perda. Para trás vão ficando expectativas de elevação dos padrões de vida e de expansão da autorrealização. No seu livro “O fim das ilusões” escreve o autor que com as incertezas não há garantia que as perdas sejam episódios transitórios e que até podem ser irreversíveis. E é essa percepção que torna um número crescente de pessoas nas democracias sensíveis ao populismo que quer regressar aos tempos áureos do passado ou que apela ao resgate do poder das mãos da elite. Adverte, entretanto, que o populismo canaliza a raiva sobre o que desapareceu, mas fornece apenas ilusões de recuperação.

Perante o panorama mundial a desenhar-se cujos contornos a vários níveis ainda não se pode fixar, sabe-se, porém, que irá alterar cadeias de valor e de abastecimento mundial com impacto em particular nos países mais frágeis. Também irá diminuir a importância das organizações multilaterais limitando o acesso a investimentos cruciais para o desenvolvimento e cristalizar novas relações de dependência e subordinação à volta dos eixos do mundo multipolar emergente. Provavelmente solavancos políticos e socio-económicos far-se-ão sentir em vários países à medida que vão-se adaptando às novas circunstâncias.

Muitos ainda ficarão vulneráveis às alterações climáticas cuja mitigação dos seus efeitos irá sofrer com a falta de coordenação global e de engajamento das maiores potências mundiais. Um outro factor disruptivo de grande alcance será o impacto da inteligência artificial (IA) na economia. Pelos enormes investimentos dirigidos para o sector e pelo comportamento das bolsas de valores em todo o mundo vê-se que expectativa é de aumentos rápidos de produtividade para quem dominar a tecnologia. Algo que certamente irá agravar ainda mais a desigualdade dentro dos Estados e entre os Estados. Também, ao levar eventualmente a mais desemprego e a menos rendimento poderá aprofundar o sentimento nas pessoas que o contrato social da democracia de justa distribuição da riqueza nacional não está a ser cumprido. O aumento das desigualdades não deixará de aumentar a pressão migratória global nem de, no interior dos países, afectar negativamente as minorias, em particular as imigradas.

Para Andreas Reckwitz, os desafios da nova situação vão exigir três Rs: Resiliência, Reavaliação e Redistribuição. Pela resiliência quer-se fortalecer as sociedades (saúde, segurança, instituições da democracia liberal, para que sejam menos vulneráveis a eventos negativos. Pela reavalização quer-se procurar, com espírito inovador, conhecimento e iniciativa, transformar em possibilidade de fazer diferente ou em vantagem o que se perdeu, ou se foi forçado a deixar para trás, por causa de mudanças tecnológicas, climáticas ou mesmo de costumes. Pela redistribuição quer-se mostrar a preocupação em garantir que ninguém ou grupo social fique mais prejudicado quando há perdas, nem que deixe de beneficiar dos ganhos obtidos com o melhor desempenho nas novas circunstâncias.

O problema é como encarar esses desafios quando ainda se vive com a mentalidade de um mundo criado há oitenta anos, mas que está a tornar-se irreconhecível à medida que os dias passam. Os partidos tradicionais querem continuar a fazer o mais do mesmo extrapolando nas promessas de “mais e melhor” sem a devida atenção pelas dificuldades crescentes em as cumprir. As pessoas querem tudo e agora num mundo de conectividade até pouco tempo inimaginável, em que as expectativas aumentaram extraordinariamente, não parece haver limite para o que é reivindicado. As forças políticas emergentes de carácter populista, alimentando-se das frustrações, desilusões e ressentimento que o choque das promessas e das expectativas com a realidade, focam-se na descredibilização das instituições, nos ataques aos políticos e à política e no bloqueio do diálogo democrático.

Na política actualmente transformada em entretenimento, com insultos gratuitos aos adversários políticos, com bullying, com actos extravagantes e com acusações de corrupção, há cada vez menos diálogo e mais actos performativos dos políticos. O impulso maior para isso vem da política populista, mas conta também com muita ajuda dos partidos tradicionais e seus políticos e ainda de outros políticos considerados apartidários ou independentes. No espectáculo que é montado, todos querem ser protagonistas e aparecer. Fala-se muito na necessidade de diálogo, mas muito pouco em cumprir as regras do jogo democrático. A cacofonia que se cria no espaço público não contribui para se perceber que há uma ordem democrática e que não há vazio na autoridade do Estado. Gratuitamente mina-se a confiança e se reforça a atracção do populismo que se revê no culto do chefe.

Há, pois, que ultrapassar a actual situação para que o país possa debruçar sobre os problemas complexos que se colocam no mundo e adaptar-se com os três R de Reickwitz: resiliência, reavaliação e redistribuição para enfrentar os desafios de vária natureza que certamente encontrará à frente. A vitalidade do regime democrático que provém do exercício da liberdade num quadro legal igualmente respeitado e aceite por todos já provou que estará à altura. Afinal, foi com a democracia que o desenvolvimento realmente despontou. Não é de se cair em tentações populistas autocráticas.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025. 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Considerar cargos caducados desrespeita a responsabilidade republicana dos seus titulares

 

A última sessão legislativa da actual legislatura inicia-se hoje 1 de Outubro sem que se vislumbre no horizonte próximo a resolução da situação dos órgãos externos ao parlamento. Eleitos em Abril de 2015 já ultrapassaram em mais de quatro anos os órgãos com mandatos de seis anos (Comissão Nacional de Eleições, Comissão de Protecção de Dados e a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social) e em um ano o Tribunal Constitucional no seu mandato de nove anos. O presidente da república numa comunicação recente ao país referiu-se à situação dizendo que uma das das consequências mais graves da falta de diálogo é a caducidade generalizada dos mandatos dos órgãos externos ao Parlamento. Da frase do PR, fica-se com a impressão que na origem do problema estaria a falta de diálogo e que o resultado dele persistir seria a caducidade, ou perda de validade dos mandatos.

Há aí duas questões que podem imediatamente colocar-se: primeiro, para a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional são imprescindíveis votos dos dois maiores partidos para perfazer os dois terços dos votos exigidos pela Constituição. Nestas circunstâncias, a atitude das partes pode ser dialogar até chegar a acordo, tendo em vista o bem maior de dotar o país de órgãos constitucionais importantes para a regulação do jogo democrático, ou obstaculizar para conseguir ganhos políticos partidários de curto prazo, mesmo à custa do desprestígio do parlamento e dos deputados e do descrédito da democracia. Um olhar retrospectivo das eleições dos órgãos externos pode facilmente verificar que neste século até 2016 chegava-se a acordo para as realizar, como aconteceu em 2001, 2008, 2011, 2014 e 2015.

A partir daí parece que os problemas se amontoaram, apontando para a obstaculização do processo. Só em 2020, três anos depois do fim do mandato, se conseguiu eleger um novo Provedor da Justiça. Em 2023, quase 8 anos depois, foram eleitos novos membros para os conselhos superiores dos órgãos do poder judicial. A particularidade de, no caso dos conselhos, os partidos proporem dois membros cada um e, no caso do provedor, de a personalidade vir, por acordo tácito, de sectores próximos da oposição, terá propiciado, mesmo com grande atraso, as eleições. Para os outros órgãos isso tem sido praticamente impossível. Tudo indica que não se trata simplesmente de falta de diálogo, mas de algo mais que não prevaleceu nos 15 anos de governo do PAICV, mas que depois de 2016 tende a estabelecer-se como prática reiterada. E é evidente que, quando há a percepção de que as instituições não funcionam, a culpa recai fundamentalmente sobre quem está a governar, e não sobre quem escolhe ser força de bloqueio num acto que só pode ser realizado a “duas mãos”.

Uma segunda questão é a da caducidade dos mandatos, uma expressão que aparentemente o PR prefere para se referir ao termo ou ao expirar dos mandatos. Podem ter significado similar, mas num caso a enfase está na validade do mandato e no outro salienta a natureza temporária do mandato. Para o constitucionalista português Vital Moreira “por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções para além do termo do mandato, enquanto não for substituído”. Acrescenta ainda que “a prorogatio (prorrogação) de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida”. Insistir que estão caducados os mandatos de cargos públicos que chegaram ao termo, mas ainda não foram substituídos os titulares, claramente não contribui para o normal funcionamento das instituições.

Curiosamente, considerando os insistentes apelos do PR, a problemática dos mandatos “caducados” não se coloca somente para os cargos eleitos pelo parlamento. Também abrange os cargos que resultam da nomeação do presidente da república sob proposta do governo como são os do tribunal de contas, do procurador-geral da república, do chefe de estado maior das forças armadas e os cargos de embaixador. A diferença aqui é que não se trata de interacção política entre dois partidos políticos com visões alternativas da governação e que submeteram ao escrutínio do povo, obrigando-se o ganhador e os vencidos nas eleições a chegar a acordo em certas matérias específicas. Trata-se de dois órgãos de soberania em que de um lado está o PR, que não governa, mas representa interna e externamente a república e vela pelo normal funcionamento das instituições, e do outro, fica o governo, que tem constitucionalmente a direcção da política interna e externa do país e não é responsável politicamente perante o presidente da república.

Com este entendimento não se pode esperar que o processo de nomeação seja enviesado a favor do PR, como pretendem alguns, e seja ele a escolher e a nomear quando, por imposição constitucional, deve nomear mas sob proposta do governo. De facto, se falhas futuramente vierem a ser apontadas aos nomeados para esses cargos no exercício das suas competências, não é responsabilizado o PR, mas sim o governo que, a qualquer momento pode ser questionado no parlamento e confrontado pelos órgãos de comunicação social e pelos cidadãos. Por isso, introduzir viés no processo de nomeação em contramão com o princípio da separação dos poderes só pode levar a tensões desnecessárias, beliscando o sentido da unidade da nação e do Estado, essencial para o normal funcionamento das instituições.

Agrava-se a situação não ultrapassando os bloqueios e ao mesmo tempo insistir em discursos públicos que os cargos actuais estão caducados enquanto o procurador-geral da república refere-se aos órgãos já com mandatos expirados para os quais seria bom que houvesse consenso. A verdade é que em quase 35 anos de democracia nunca se viu situação semelhante mesmo quando os primeiros-ministros e os presidentes da república originariamente vinham de quadrantes políticos diferentes. Provavelmente a variação na interpretação dos poderes presidenciais e na firmeza das opções políticas do governo de alguma forma equilibravam-se. Não é como aparentemente estará a acontecer agora com algum deslizar para os extremos com excesso de protagonismo de uma parte e falta de firmeza institucional de outra parte.

Fugindo ao expectável em matéria de separação dos poderes só pode resultar no que se constata hoje em que cargos ficam por ser nomeados com prejuízo evidente para o país e para a credibilidade do sistema democrático. Complica ainda mais o quadro actual o facto de que é ao governo que se atribuí toda a responsabilidade. Às tantas, com as eleições legislativas e presidenciais no próximo ano e o futuro do país em jogo, não é de estranhar que, apesar dos apelos insistentes para se ultrapassar a situação, não haja quem queira ganhar com a projecção da imagem de um país a deslizar para o caos.

Serenidade de todos é preciso e mais do que falar em diálogo e consensos o foco deve estar em cumprir e fazer cumprir as regras do jogo e seguir à risca os procedimentos democráticos. Sem essa aderência ao que é essencial, o discurso político rapidamente degenera por si mesmo, marcado pelo cinismo e a hipocrisia.

No processo, como se vem assistindo em vários países a uma velocidade estonteante, descredibiliza-se a democracia e abre-se o caminho ao populismo que promove medidas iliberais de supressão de direitos em nome do esforço para restaurar a ordem e distribuir rendimentos. Não é certamente o futuro que se quer. Impõe-se por isso ultrapassar este impasse, controlando egos, aprofundando o sentido de pertença e combatendo o estado permanente de insatisfação, com solidariedade para com os outros. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1244 de 01 de Outubro de 2025.

Fazer valer os 33 anos da Constituição

 

Hoje, 25 de Setembro, completam-se 33 anos da Constituição. Trata-se de uma data primeira desta II República que ainda está longe de ser celebrada como devia pela comunidade política nacional. Na generalidade das democracias, o Dia da Constituição é comemorado e em vários países como Espanha, Noruega, Polónia e Lituânia é mesmo feriado nacional.

E compreende-se que assim seja, considerando que a entrada em vigor da Constituição democrática marca o início de um regime que garante o direito de consentimento dos cidadãos na escolha dos governantes, os direitos fundamentais dos indivíduos, a separação dos poderes, a subordinação do Estado às leis e a independência dos tribunais. Um dia, pois, para reviver a alegria de ter deixado para trás regimes autoritários e totalitários de má memória e também para reflectir como conservar os valores preciosos da liberdade e da democracia.

Neste ano de 2025, em que globalmente há a percepção de que as democracias estão em crise e sujeitas a uma erosão muito forte das suas instituições, devia ser o momento para valorizar os princípios e valores da Constituição e não os enfraquecer com idolatria política e ideologias iliberais. Também devia servir para exigir dos titulares dos órgãos de soberania que exercessem na plenitude das suas competências e respeitassem a separação dos poderes e que concomitantemente assumissem as respectivas responsabilidades. De evitar seria culparem-se uns aos outros, procurando beneficiar-se eleitoralmente da instabilidade gerada ou induzida por esse tipo de tacitismo político. O jogo democrático só garante estabilidade e eficácia governativa se as suas regras e procedimentos forem aceites e respeitados por todos.

Apelos para a diminuição da crispação política e para não se regredir para um ambiente de violência política só têm sentido se forem acompanhados do esforço sincero, a vários níveis, para o reforço do edifício democrático. Contrariamente ao que alguns podem sugerir, não é a existência de partidos e de confrontos político-partidários que gera violência política na sociedade. A história mostra que regimes sem partidos ou de partido único é que são criados violentamente, eliminando ou exilando, à partida, os tidos como inimigos, e que sobrevivem com violência arbitrária, intimidando toda a gente. Por isso que a melhor via para combater a violência, a arbitrariedade e a discricionariedade é a adopção do constitucionalismo democrático que obriga o Estado a respeitar a lei e os direitos dos cidadãos, que impõe a separação dos poderes para ninguém se arvorar em ditador e que institui tribunais independentes para administrar a justiça.

Em sentido contrário, se se quer criar um ambiente de instabilidade, de caos e de violência o caminho a seguir é o de fragilizar as instituições, não respeitando as regras do jogo democrático, de minar a confiança cultivando a desesperança com denúncias incessantes, às vezes estapafúrdias, e de promover o extremismo com a polarização fracturante. As omnipresentes redes sociais prestam-se extraordinariamente a este processo pela amplificação da opinião e do ego dos utilizadores, pela tribalização a que ficam sujeitos devido à manipulação algorítmica das plataformas e pela possibilidade de, em grupo e online, se poder envergonhar, discriminar e cancelar pessoas e grupos.

A crise do constitucionalismo democrático que se verifica actualmente com maior visibilidade e dramatismo nos Estados Unidos, mas com fortes sinais na generalidade das democracias tem na sua base essa fragilização institucional, o enfraquecimento do tecido social e a tendência narcisista do individualismo exacerbado. É verdade que várias situações complicadas contribuíram para o crescimento da desesperança em vários sectores da população nas últimas décadas. Mas é a acção deliberada de certas forças políticas que provoca essa crise ao canalizar as frustrações, o ressentimento, o medo e a desesperança contra o edifício democrático.

Nas democracias sempre existiram forças com preferências por vias não liberais, mas não constituíam ameaças pela sua dimensão e coesão interna. O quadro mudou completamente na actual conjuntura: os apelos de sectores antisistémicos favoráveis a regimes iliberais e a ditaduras de elites tornaram-se frequentes, e as tentativas de pôr em causa a separação de poderes com a concentração do poder no executivo, a subordinação do legislativo e a descredibilização do poder judicial ganharam expressão com o exemplo de Trump na América. Felizmente que do Brasil veio a grande demonstração da democracia a pôr os travões a quem intenta contra ela, julgando e condenando o ex-presidente Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado.

Em Cabo Verde também a democracia corre riscos. O facto de não se celebrar condignamente o aniversário da Constituição é sinal de como o país, os seus órgãos de soberania, as suas instituições, as suas escolas, universidades e a sua comunicação social, se retraem na promoção da cultura constitucional. O contraste é enorme quando comparado com o entusiasmo e os recursos públicos dedicados às celebrações da “luta de libertação” e dos feitos e das personalidades do regime de partido único e às manifestações de idolatria de Cabral.

Inevitavelmente, essa tensão permanente com os princípios e valores da Constituição acaba por ter um efeito erosivo na própria democracia. A relação entre os partidos e a possibilidade de chegar a acordos são prejudicadas por atritos que deviam ser desnecessários se houvesse total consenso sobre a natureza do regime político estabelecido pela Constituição. A persistência nas instituições e na cultura política do país de tensão visível entre os dois regimes não deixa de ser uma porta entreaberta para tentações políticas iliberais. O apego “tribal” a posicionamentos ideológicos do passado assim alimentado pode servir para, designadamente, promover políticas limitativas de direitos, normalizar posturas políticas de colisão com o princípio da separação dos poderes e desafiar a lei para provar impunidade.

Já não tão distante das eleições legislativas é evidente para qualquer observador o esforço vindo de vários quadrantes para projectar a imagem de Cabo Verde como um país à beira do caos. É um facto que o país lida com problemas sérios, em particular no domínio dos transportes inter-ilhas e que a situação da energia na capital tem trazido transtornos significativos para a população. Mas como o próprio presidente da república reconhece, Cabo Verde não enfrenta nenhuma crise político-institucional. Essa constatação devia ser o ponto de partida para todos se calibrarem nos pronunciamentos e na acção política. A sinceridade nos apelos para a diminuição da violência política pode ser avaliada por aí.

Os problemas do país são complexos e no mundo da actualidade estão-se a operar mudanças estruturais que trazem incertezas e novos desafios. A última coisa que Cabo Verde precisa é saltar no desconhecido dos resultados eleitorais sem uma ponderação serena e madura das opções políticas dos diferentes partidos. Para assegurar que o futuro de Cabo Verde seja construído na Liberdade e na Democracia é fundamental impedir eventuais derivas autocráticas que ponham em causa os 33 anos de constitucionalismo democrático. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.