A comunicação social
esteve em debate ontem num fórum presidido pelo Primeiro-Ministro
Ulisses Correia e Silva. O tema era Serviço Público da Rádio e Televisão
mas, como seria de esperar, a questão do papel e da sustentabilidade
dos órgãos privados da comunicação social foi trazido à baila. Logo nas
intervenções iniciais o Governo apressou-se a anunciar a sua nova lei de
incentivos e os 15 mil contos orçamentados para a imprensa escrita e
órgãos digitais ao mesmo tempo que deixava no ar promessas de futuras
progressões nesse montante e também de benefícios em noutros domínios
como a formação. Quanto à questão crucial da publicidade para a
sustentabilidade de uma imprensa privada com expressão a nível nacional,
o PM remeteu para o próximo ano a definição dos limites à publicidade
angariada pelos órgãos públicos.
A realidade da comunicação social em
Cabo Verde é ainda marcada pela preeminência dos órgãos estatais vinte
sete anos após o 13 de Janeiro e 25 anos de vigência da Constituição de
92 que consagrou o princípio do pluralismo e as liberdades de expressão,
de informação e de imprensa. Os avanços da sociedade cabo-verdiana,
tanto na instalação e consolidação das suas instituições democráticas
como na reestruturação da sua economia deixando de lado os velhos
monopólios estatais e promovendo a concorrência nos diferentes sectores,
não tiveram correspondência no sector da comunicação social. O
monopólio anterior do Estado, em particular na rádio e na televisão,
manteve-se praticamente intacto como é apregoado todos os dia nos canais
públicos em declarações que é a maior rádio e a maior televisão de Cabo
Verde. Outra coisa não podia ser considerando a sua história desde a
independência em que, expropriadas todas as rádios privadas, a rádio
estatal e posteriormente a televisão passaram a beneficiar do
financiamento público via orçamento do Estado, da taxa de televisão e da
maior fatia da publicidade comercial e institucional. O que estranha é a
manutenção desta situação mais de duas décadas de democracia pois
sabe-se qual é em geral as consequências desse estado de coisas,
designadamente no que toca ao excesso de pessoal, ao
sobredimensionamento dos meios acompanhado de ineficiências diversas, à
falta de estímulo para uma gestão que faculte autonomia financeira e
diminua a dependência do Estado, à tentação de viver das receitas
publicitárias sem falar no que alguém já chamou do peso genético simbólico de décadas de serviço ao Estado.
A suspeita que poderá ter persistido uma
cultura de prestar serviço a quem manda é a fonte principal de um
conflito que normalmente envolve todas as forças políticas prontas todas
elas para acusarem os órgãos e os jornalistas de parcialidade, de
discriminação e de serem objecto de pressão. Paradoxalmente, tais
acusações acontecem quando estão no governo e quando estão na oposição. A
excessiva capacidade de influenciação dos órgãos públicos comparada com
a dos privados faz da rádio e da televisão públicas um campo de batalha
particularmente virulento onde não se sabe onde termina a tentação de
quem governa em fazer uso da sua posição privilegiada para passar a sua
mensagem e começa a desconfiança dos opositores de que alguma
manipulação está a acontecer. Em tal ambiente muito dificilmente se pode
esperar que apareça e se desenvolva o jornalismo de referência que
todos consideram ser fundamental neste mundo de fake news, de pós verdade,
em que as redes sociais parecem já estar a assumir o papel de mediação,
até agora detido pela comunicação social e que é essencial para o
funcionamento e consolidação da democracia. Que os órgãos públicos não
conseguirão ser porta-estandarte do jornalismo de excelência e de
referência que todos almejam é um facto que reconhecem e deixam
transparecer nas suspeitas trazidas a público e nas acusações de
auto-censura. Que a batalha pelo seu controlo é um dos factores de
continuada crispação política no país é um facto também indesmentível.
Por isso, continuar a alimentar a “criatura” através de fluxos
financeiros de três ou mais fontes de recursos não parece ser muito
inteligente, particularmente quando se sufoca outras vias e se impede
que um novo paradigma de comunicação social se erga e se consolide em
Cabo Verde, um paradigma mais consentâneo com o que se encontra nas
democracias modernas.
A Constituição da República determina
que haja sempre um serviço público de rádio e televisão. Não estabelece
porém qual deve ser a sua dimensão. Provavelmente dependerá da
orientação ideológica do governo dimensionar os canais públicos
simplesmente para suprir as imperfeições do “mercado de comunicação
social” em termos de pluralismo e de universalidade ou alternativamente
colocá-los em posição de maior peso vis-à-vis aos órgãos privados. A
opção por uma maior fatia no “mercado” da comunicação social contraria
de algum modo políticas que tendem a uma maior autonomia da sociedade
civil, a dar um papel decisivo ao sector privado na dinamização da vida
socio-económico e cultural do país e a promover uma cultura de
transparência e “accountability” essencial num Estado de Direito. Não é
por acaso que a experiencia de várias democracias designadamente
Portugal, Espanha e França dá conta da dinâmica verificada na
comunicação social e na quantidade e qualidade de informação disponível
para as pessoas na sequência de licenciamento de rádios e televisões
privadas acompanhado de limitações ou mesmo proibição de publicidade nos
órgãos de serviço público.
O governo de Ulisses Correia e Silva
prometeu 15 mil contos em incentivos para contribuir para a
sustentabilidade da comunicação social privada. É manifestamente
insuficiente. O Expresso das Ilhas paga mais do que essa quantia
anualmente à gráfica local só para impressão enquanto em regra recebe
por ano mais ou menos 2 mil contos do Estado para compensar os seus
múltiplos gastos. Alargar a distribuição de incentivos anteriormente
dirigidos para a imprensa escrita também para os online que não têm
despesas de impressão e de distribuição nem precisam que o leitor
contribua com cem escudos para ter acesso ao conteúdo não contribui para
minorar as dificuldades com que os jornais se confrontam na
actualidade. Dificuldades essas tornadas piores com a concorrência dos
órgãos públicos que com o acesso privilegiado a publicidade
institucional e financiados por outras vias em certos momentos podem
praticar preços que até sugerem operações de dumping. É
evidente que continuando assim dificilmente se poderá inverter a herança
recebida do partido único da hegemonia dos órgãos públicos com todas as
consequências já conhecidas, designadamente na qualidade da comunicação
social e da própria democracia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 834 de 22 de Novembro de 2017.
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