O Orçamento do Estado para o ano 2018 há
mais de dois meses que é matéria de notícia nos órgãos de comunicação
social e nas redes sociais. O Ministério das Finanças (MF) arrancou com
uma iniciativa inédita de pedir a entidades variadas designadamente
associações empresariais, partidos políticos, sindicatos e organizações
da sociedade civil, contribuições para a elaboração do orçamento. Não
ficando por aí, o Ministro das Finanças a partir da primeira semana de
Julho e até há poucos dias passou a receber pessoalmente contributos de
personalidades diversas incluindo representantes de organizações
internacionais, gestores de organizações financeiras, dirigentes
comunitários e agentes culturais. Ultimamente o foco mediático sobre o
processo de elaboração do OE virou-se para a chamada arbitragem política
onde se reúnem o ministro das Finanças e o ministro de cada pasta
acompanhados dos respectivos staffs. O objectivo das audições, segundo
fontes do MF, é ter um orçamento inclusivo, realista de forma a englobar as sensibilidades e necessidades do país.
O problema com este exercício que parece
configurar o que se faz no quadro dos orçamentos participativos é que
não está previsto na lei de enquadramento orçamental. A Constituição é
clara em matéria de elaboração do Orçamento do Estado. A iniciativa é da
competência exclusiva do Governo que é quem tem todos os dados sobre as
receitas e as despesas obrigatórias, define políticas de consolidação
orçamental, de contenção do défice e de diminuição da dívida pública,
estabelece as prioridades de investimento de acordo com o seu programa e
os objectivos que prometeu realizar. A Assembleia Nacional através de
uma lei de enquadramento orçamental votada por dois terços dos deputados
define prazos, procedimentos e competências no processo da elaboração e
aprovação do OE. A importância do orçamento como instrumento central da
acção governativa e da sua coerência programática é realçada pela
exigência de disciplina partidária no processo de votação que o partido
que suporta o governo impõe aos seus deputados. E há razão para isso: a
não aprovação do OE pode levar à queda do governo e a novas eleições.
Considerando as limitações impostas pela
Constituição e pela lei, abrir o orçamento para a participação alargada
de entidades e personalidades públicas e privadas não vai mudar
significativamente a sua orientação, as suas prioridades e os seus
objectivos. Mesmo que essa fosse a intenção do governo, as receitas
limitadas e a rigidez de grande parte das despesas não deixam muito
espaço orçamental para acomodar a generalidade das sugestões e
contributos a ponto de todos se reverem no orçamento aprovado. Há aqui
um risco político a vários títulos que o governo pode estar a incorrer
com o levantar de expectativas de instituições, de operadores económicos
e de vários sectores da sociedade. Se forem defraudadas particularmente
num orçamento que é oficialmente apresentado como o de “soluções definitivas”
para vários problemas, as consequências podem ser gravosas,
eventualmente afectando a confiança, a disponibilidade em apoiar
reformas e mesmo a vontade em identificar e aproveitar novas
oportunidades. Aliás, já antecipando o que pode vir a acontecer, já
vieram alguns avisos de representares das câmaras de comércio.
Os múltiplos e complexos
constrangimentos do país à partida não aconselham que seja no processo
de elaboração do orçamento que se deva procurar a melhor via para reunir
consensos, criar vontades e mobilizar a sociedade para consecução de
objectivos. No texto inicial da Constituição de 1992 e mesmo após a
revisão de 1999 previa-se a possibilidade de a Assembleia Nacional
aprovar as Grandes Opções do Plano a partir de proposta do governo. A
antecipar o debate parlamentar, além do parecer obrigatório de órgãos
como o Conselho para Assuntos Regionais, actualmente incorporado no
conselho económico-social, havia espaço para discussões múltiplas com
vários sectores da sociedade e audições públicas organizadas tanto pelo
governo como pelo parlamento. Foi o que aconteceu com as Grandes Opções
do Plano de 1997-2000 e posteriormente em 2002-05. Faz todo o sentido
que os consensos e as vontades sejam criados num processo envolvendo o
parlamento onde as opções de desenvolvimento são debatidas e aprovadas e
depois encontram expressão financeira em orçamentos anuais ou
plurianuais porque aí estão legitimamente representados todos os
cidadãos no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.
Procurar inovar em matéria de elaboração
do Orçamento sem pelo menos alterar a lei de enquadramento orçamental
não é certamente a melhor via para o chamado “orçamento inclusivo”.
Além de se correr o risco de defraudar expectativas que naturalmente
surgem no contacto directo com o titular das finanças pode-se estar a
contribuir para alimentar o modelo do Estado distribuidor de recursos,
em detrimento do Estado promotor do ambiente propício à criação de
riqueza. Também seria de esperar que as arbitragens políticas fossem
feitas no âmbito do conselho de ministros e presididas pelo
primeiro-ministro. O orçamento é do governo. Fazer diferente leva a
interpretações complicadas como a feita na página de Facebook do
ministério das infra-estruturas em que num post se diz que o “Ministério
das Finanças tem sido um parceiro estratégico do Ministério das
Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação garantindo o
financiamento através do Orçamento de Estado para os projectos e
programas de todos os sectores deste ministério”.
Nunca é demais relembrar que a
democracia é procedimental e que o seu funcionamento equilibrado depende
de todos os seus órgãos e instituições a funcionarem no quadro das suas
competências próprias. Fazer política é fundamental para se realizar os
objectivos da colectividade, motivar as pessoas e criar as condições
para a prosperidade de todos mas deve ser feita estritamente no quadro
constitucional e legal existente. Inovações que ultrapassam esse quadro
só trazem problemas, sem nada resolver.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 823 de 06 de Setembro de 2017.
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