O presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em
2016, num discurso proferido no início do ano judicial em Portugal
disse que desde os fins dos anos noventa a Justiça está sob um
escrutínio mais apertado dos portugueses. Clamam por uma justiça menos
lenta e mais acessível e o país, por sua vez, precisa de uma justiça
mais eficaz no dirimir de conflitos, na defesa dos direitos e em fazer
cumprir obrigações legalmente estabelecidas para ser mais competitivo e
atrair mais investimento privado nacional e estrangeiro. A atenção
recente sobre a justiça seguiu-se a períodos em que o foco sobre os
problemas do regime democrático inaugurado com o 25 de Abril recaía
algures: nos primeiros tempos era ultrapassar a relação com os militares
de Abril, depois foi abrir a Constituição para suportar uma economia de
mercado e por último a necessidade de integração na Europa. Com as
energias concentradas nos centros políticos de decisão deixou-se evoluir
por si próprio o poder judicial sem o acompanhamento que os tribunais
como órgão de soberania e fundamentais para o sistema democrático e para
o Estado direito mereciam. O resultado, como notado no último Painel
sobre a Justiça na União Europeia (2017), Portugal está entre os países
com a justiça mais lenta: “A Justiça portuguesa demora, em média,
710 dias para resolver processos cíveis, comerciais e administrativos
nos tribunais da primeira instância, sendo apenas ultrapassada pela do
Chipre, que ascende aos 1085 dias”.
Situação análoga terá acontecido em Cabo
Verde, uma democracia ainda mais jovem em que a edificação das
instituições democráticas revelou-se algo mais complexa porque realizada
num ambiente pressionado para fazer a mudança na continuidade
tendo como “parceiro” no papel de força política de oposição o partido
que durante 15 anos encarnou o regime anterior. A actividade política
necessária para garantir a estabilidade política e ao mesmo tempo
realizar as reformas profundas que se impunham no processo de transição
de uma economia estatizada para uma economia de mercado concentrou
grande parte da atenção dos sujeitos políticos e da sociedade em geral.
Como em Portugal, o poder judicial em Cabo Verde, que todos agora em
democracia queriam que fosse independente e sem estar sujeito a
interferências estranhas, pôde durante muitos anos navegar “abaixo do radar”
do escrutínio público. Nesse quadro persistiu a lentidão da justiça
conhecida por todos e aproveitada por muitos para conseguir a impunidade
em muitas situações com prescrições de casos e com impossibilidade
prática de execuções, de despejos e de cobranças de dívidas. Quantas
vezes cidadãos e operadores económicos prejudicados nos seus interesses
na relação com o Estado também não ficaram com forte impressão que
agentes ou entidades públicos aproveitaram-se da esperada lentidão da
justiça para não os ressarcir nos seus direitos.
Hoje, depois de anos de estabilidade
democrática e de alternâncias dos partidos no governo, há mais tempo
para um olhar mais profundo e escrutinador sobre o sector da justiça
particularmente porque insiste em não responder com resultados às
expectativas das pessoas. Depois de anos a pedir meios e recursos
diversos, a sua eficácia não se alterou significativamente com perdas
para as pessoas, para as empresas e para o país que se vê sem
competitividade e sem atractividade para o capital estrangeiro tão
fundamental para o crescimento económico e para a criação de empregos e
para a expansão das exportações de bens e serviços. O empoderamento das
magistraturas com alargamento das suas competências na gestão e
disciplina dos magistrados e das secretarias judiciais e as
transferências de meios correspondentes não teve os resultados
esperados. A percepção que faltava um esforço consequente e comprometido
ganhou força quando todos se aperceberam que não conseguiam pôr de pé
um serviço de inspecção dos juízes e das secretarias judicias essencial
para efectiva gestão dos mesmos. Parece que os conselhos se acomodaram
durante anos à falta de vontade dos magistrados em servirem como
inspectores por razões de natureza pessoal, de amizade, familiaridade ou
proximidade mas que naturalmente são tomadas por qualquer outra pessoa
como sinal de desresponsabilização em relação ao serviço público a que
são obrigados. Vinda a público, esta falha grave quanto à inspecção
judicial foi a pedra no charco que deitou tudo a perder e atraiu
críticas de vários quadrantes, algumas justas e outras nem tanto. As
pessoas apercebiam que, se os magistrados enquanto corpo não se sentiam
pressionados para se avaliarem, como iriam mostrar uma atitude diferente
quando fosse de melhorar a produtividade e de aprimorar o
comprometimento na prestação de serviço público.
Nos anos que se seguiram à revisão
constitucional de 2010 assistiu-se ao reforço do espírito corporativo na
magistratura judicial em sintonia com as alterações constitucionais no
sentido de maior autonomia e independência do poder judicial. De facto, o
STJ passou a ser constituído só por magistrados judiciais, o CSM ganhou
maioria absoluta de magistrados e já podiam ser remunerados por funções
de docência prestados a outrem. Foi alterada significativamente a
relação com o governo através do Ministério de Justiça com a autonomia
administrativa e financeira dos conselhos de magistratura que passaram a
ter orçamento próprio que já atinge no orçamento de 2018 o valor de
várias centenas de milhares de contos. Apesar do afã em transferir
poderes e recursos não se verificaram os progressos na administração da
Justiça que era esperada.
Neste particular, também os outros
componentes do sistema, a polícia, o ministério público e a ordem dos
advogados não se têm mostrado muito diferentes. Todos muito ciosos das
suas prerrogativas, em geral, não têm ou são incipientes os mecanismos
internos de inspecção com capacidade para avaliação de mérito ou de
reavaliação de métodos ou técnicas ou planos de acção. Respondem com
tiques corporativos às críticas ou exigências de melhor prestação e não
poucas vezes defendem-se passando a culpa de uns para os outros ou
queixando-se da falta crónica de meios. Ultrapassar este estádio em que a
relação com o poder mostra-se mais no sentido de usufruto e menos de exercício é
fundamental para que haja convergência de forças e de vontades que
podem fazer tudo acontecer com profissionalismo e com responsabilidade. É
isso que o país e as pessoas esperam de quem mesmo não sendo eleito
exerce funções vitais para a salvaguarda da democracia e do Estado de
Direito.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 830 de 25 de Outubro de 2017.
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