No passado dia 25 de
Setembro assinalou-se o vigésimo quinto aniversário da Constituição de
1992. Nesse dia, 25 anos atrás Cabo Verde consagrou com uma nova ordem
constitucional a vontade expressa nas eleições de 13 de Janeiro de 1991
de viver em liberdade e em democracia. No novo quadro jurídico político o
país tem vindo a construir e a consolidar as suas instituições
democráticas merecendo de vários observadores avaliação positiva. Os
anos da Constituição têm sido de estabilidade governativa, sem crises
institucionais graves e já se verificaram as duas alternâncias no poder
que na opinião do cientista político Samuel Huntington dão um sinal
inequívoco do grau de consolidação democrática já atingido.
Evidentemente que ainda não se pode
dizer que é uma democracia madura. As instituições denotam fragilidades
várias designadamente no exercício efectivo das suas competências e na
assunção das responsabilidades. A sociedade civil sob o impacto de uma
cultura de dependência do Estado não mostra a autonomia necessária. A
comunicação social privada ainda está por se afirmar e sem capacidade
para competir com os órgãos estatais que além de beneficiarem de
transferências múltiplas do Estado ainda abocanham parte considerável do
pequeno e fragmentado mercado publicitário. A completar o quadro, a
persistência de espaços de actuação sem a devida fiscalização
democrática em que o exercício do poder se mostra caprichoso,
imprevisível e mesmo perverso retira alguma confiabilidade e eficácia à
acção política e faz dos cidadãos uns descrentes nos procedimentos
democráticos, tornando-os presa fácil de populismos diversos.
O facto de, para além da conferência
sobre Democracia e Constituição proferida pelo constitucionalista Jorge
Miranda, a convite do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais (ICJS),
não haver qualquer iniciativa das instituições da república, nem dos
partidos políticos ou de associações e universidades para comemorar o
vigésimo quinto aniversário da Constituição pode ser visto como mais um
sinal de que nem tudo está realmente bem. O esquecimento selectivo de um
marco tão importante num país em que quase todos os dias se referenciam
datas internacionais disto e daquilo e em que se fazem programas de
comemoração da independência que perduram meses seguidos não é normal.
Noutras democracias é o contrário que acontece. Procura-se cumprir o que
alguns chamam de dever da memória em relação aos eventos
fundadores. Em Portugal, Espanha e Brasil as instituições e a sociedade
fazem questão de comemorar a constituição democrática num exercício de
“memória crítica e reflexiva” que põe em devida perspectiva o percurso
histórico feito, propicia a renovação dos princípios e valores e reforça
o sentimento de pertença.
A crise que afecta hoje tanto as
democracias antigas como as mais recentes tende a pôr em causa o pacto
sociopolítico subjacente às constituições democráticas. Já havia sinais
antes, mas foi com a crise financeira de 2008, seguida subsequentemente
de crise económica, crise social e crise da dívida soberana, que acabou
por instalar-se nas sociedades democráticas um sentimento generalizado
de precariedade e de ansiedade quanto ao futuro. Um sentimento
posteriormente agravado pela crença generalizada de que a globalização
tinha conduzido ao desaparecimento de inúmeros postos de trabalho e que
favorecia o aumento das desigualdades sociais. A aparente conivência das
autoridades em relação aos culpados pela crise e a visível impotência
dos governos nacionais em travar a concentração da riqueza numa pequena
minoria minaram a confiança de muitos quanto à possibilidade de se
inverter a situação. E sem a solidariedade expectável para garantir a
harmonia na sociedade e os consensos em relação à ordem constitucional
não é possível manter as pessoas comprometidas com o sistema político
vigente. Populismos vivem desses estragos feitos no tecido social e
todos eles independentemente da sua origem fazem mira na ordem
constitucional reinante e nas suas instituições. Inevitavelmente, o
inesperado prenhe de consequências acaba por acontecer como foram os
casos do Brexit e da eleição de Donald Trump. No domingo passado
assistiu-se à entrada da extrema-direita no parlamento alemão.
O professor doutor Jorge Miranda na
conferência do vigésimo quinto aniversário da Constituição chamou a
atenção para a necessidade de efectivação dos direitos sociais no mundo
de hoje. A expectativa das pessoas em ver garantido o seu bem-estar
social pressupõe que se ponha realmente de pé um Estado social e que se
assegurem os direitos sociais. De facto, já não se mostra suficiente
garantir o exercício dos direitos civis e dos direitos políticos e adiar
para um futuro indefinido os direitos sociais que para alguns teriam só
função programática na Constituição. Neste mundo em mudanças devido,
entre várias razões, à globalização, à conectividade instantânea através
da Internet e das redes sociais, a mudanças tecnológicas rápidas nos
vários domínios e à automação de processos produtivos que eliminam
empregos tradicionais, as pessoas querem mesmo acreditar que podem viver
numa sociedade livre, justa e solidária. As soluções de
governo produzidas pelo sistema político têm que ser capaz de a
realizar, sob pena de descrédito e consequente instabilidade, incertezas
e eventuais derivas perigosas que outras soluções, em particular as do
populismo, poderiam gerar.
No 25º aniversário da Constituição
torna-se imprescindível renovar a vontade da sua efectivação total como
forma de manter o consenso a todo o momento sobre o papel das
instituições e sobre a necessidade de cumprimento estrito dos
procedimentos nela previstos. O aprofundamento institucional deve poder
conter as tentações de pessoalização da política que as redes sociais
facilitam ao mesmo tempo que abrem o caminho ao descrédito dos cargos,
ao descrédito da política e do próprio acto de entrega ao serviço
público. Para fazer tudo isso há porém que manter vivo o dever da
memória do que realmente nos une, nos garante a liberdade e nos abre o
caminho à prosperidade e à realização pessoal.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 826 de 27 de Setembro de 2017.
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