É evidente que a memória dos três
dias de greve da polícia nacional da semana anterior esteve sempre presente ao
longo do discurso. Não aconteceu o pior, mas a autoridade do Estado ficou
beliscada com o espectáculo dos polícias a desfilarem ruidosamente pelas ruas e
a negar-se ao cumprimento da requisição civil decretada pelo governo. Não é por
acaso que o PR, apesar de reconhecer os interesses em causa no processo que
levou à greve, foi peremptório em dizer que a sociedade não pode ficar à
mercê de interesses de ocasião.
Greve da polícia é sempre problemática por
razões óbvias que têm a ver com a necessidade permanente de garantir a todo o momento
a ordem, a tranquilidade e a segurança pública. Geralmente é proibida nas
democracias. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em resposta a um recurso
de um sindicato espanhol da polícia foi claro a dizer que a polícia, pelo facto
de todos os agentes estarem armados e da necessidade deles prestarem um serviço
ininterrupto, não pode fazer greve na medida em que tal acção põe em causa a
segurança pública e a prevenção da desordem. O tribunal acrescenta que o facto
de estarem armados os faz diferentes de outros servidores públicos e justifica
a restrição dos seus direitos a se organizarem.
A Constituição cabo-verdiana, apesar de
prever a possibilidade da lei restringir designadamente os direitos dos agentes
à reunião, manifestação e associação, não é explícita quanto à proibição ao
direito à greve como o faz, por exemplo, a Constituição portuguesa. Se para
vários juristas há o entendimento que a lei pode restringir mesmo no actual
quadro constitucional para o sindicato e os polícias que participaram na greve
não parece não haver qualquer dúvida
quanto à sua legalidade. Isso significa que poderá haver mais greves no futuro.
Desta vez não aconteceu nada fora do ordinário e não houve colapso da ordem
jurídico-constitucional, mas nada garante que será o mesmo num outro momento.
Aparentemente o aviso de pré-greve em Março
de 2017 falhou em alertar as autoridades para a possibilidade real de uma greve
da polícia e de possíveis consequências disso. A forma como o governo pareceu ter sido
apanhado de surpresa tanto pela greve como pela recusa de muitos agentes em
aceitar a requisição civil sugere que não levou suficientemente a sério as
ameaças do sindicato em Março nem o pré-aviso de greve de 14 de Dezembro.
Sinais de alguma agitação reivindicativa também se fizeram sentir noutras
forças ao longo do ano e em particular nos agentes prisionais. Não se notou
porém qualquer acção do governo em clarificar o estatuto das forças de segurança
em matéria de direito à greve e de direito à reunião e manifestação. Também não
se conhece iniciativa em sede da revisão constitucional para abrir o diálogo
sobre o assunto e criar vontade política para uma solução definitiva do
problema. O mais estranho é que perante essas omissões não parece que em algum
momento tivessem sido desenvolvidos planos de contingência com provável assistência
dos militares na sua missão de defender a ordem constitucional num caso de
colapso da segurança pública provocado por uma greve generalizada da polícia
nacional. O que se viu foi a tentativa de requisição civil que o sindicato e
vários agentes se recursaram a cumprir.
O presidente da república na sua intervenção
fez um apelo para se concretizar aquilo a que chamou de “concordância prática”
entre exigências do estado de direito democrático em confronto. Em
particular diz que é importante o diálogo, qualquer diálogo que se destine a
afastar o espectro da inquietação social. Não é um apelo que tem grandes
possibilidades de chegar às pessoas nestes tempos em que já se tornou normal
noticiar as reacções perante qualquer agravo ou diferença de opinião como sendo
de indignação ou de revolta. Nem mesmo parece chegar onde mais investimentos se
fez, como é o caso da polícia. O governo saído das legislativas de Março de
2016 já no orçamento de 2017 tinha feito um esforço orçamental apreciável de
mais 178 mil contos para ajustes salariais, progressões e promoções na polícia
e milhares de contos tinham sido investidos em viaturas, equipamento de
comunicações e outros meios essenciais para a corporacão. Mesmo assim, parece
não ter encontrado espaço para um diálogo construtivo. Satisfeitas as
reivindicações antigas, pede-se logo mais.
A não disposição para o diálogo que ficou
manifesta na relação com a polícia é sentida noutros sectores da sociedade e em
particular em sectores da administração pública em que é mais fácil
desenvolver-se o espírito corporativo. Pergunta-se até onde ficou a paz social
que estaria implícita no acordo de concertação estratégica que o governo
assinou com os parceiros sociais. Por outro lado, sente-se que o défice em
serviço público que todos se queixam em relação à administração pública tem a
sua contraparte no esforço dirigido para manter os privilégios e obter uma maior fatia de recursos públicos. No
processo, perde-se eficiência e a eficácia na mesma proporção que aumentam as
resistências a reformas que realmente podiam mudar o status quo. Isso é evidente
no domínio da segurança, como o é nos domínios da justiça ou da educação e em
vários outros sectores da actividade no país. Aliás, as queixas das pessoas, os
índices de competitividade e os dados do Doing Business apontam precisamente
para aí.
Nesta encruzilhada na vida do país o grande
desafio será fazer as pessoas deixarem de competir por recursos num jogo de
soma zelo e cooperar mais, conter os interesses corporativos e dar mais atenção
ao interesse geral e posicionar-se mais para criar riqueza, conhecimentos e
competências várias em vez de simplesmente usufruir do que é dado ou retirado
aos outros. O futuro vai depender de quando e como o soubermos vencer.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das Ilhas nº 841 de 10 de Janeiro
de 2017.
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