sexta-feira, 17 de maio de 2024

É preciso tirar o país do colete de forças

 

O primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva em vários momentos da semana passada ligados às comemorações à volta do campo do Tarrafal repetiu a mensagem de que é preciso ficar em paz com a história. Não foi a primeira vez. Praticamente desde a vitória nas eleições de 2016 sempre que é confrontado com o facto de a história oficial ser muita próxima da narrativa histórica do regime de partido único do PAIGC/PAICV socorre-se dessa expressão falaciosa. A verdade é que os manuais escolares repetem na democracia a mesma história do regime anterior, a comunicação social pública lê pela mesma cartilha e as instituições do Estado com as devidas adaptações prestam vassalagem aos ícones, ritos e figuras do regime de partido único. Não há realmente “paz” com a história, mas sim submissão a uma narrativa ideológica que foi legitimadora de uma ditadura.

A realização patética de duas comemorações do encerramento do campo do Tarrafal, a primeira a 1º de Maio pela presidência da república e a segunda, uma semana depois, pelo governo, no dia 8 de Maio, revelou que, não obstante as rivalidades de protagonismo, os órgãos de soberania convergiam no essencial: todos queriam fazer o país acreditar que, primeiro, a prisão do Tarrafal foi encerrada no dia 1º de Maio de 1974 e que, segundo, era um campo de concentração. Não interessa que o facto que o campo albergou 72 prisioneiros políticos depois dessa data e que ninguém mais, nem Portugal que no tempo da ditadura teve no Tarrafal mais presos políticos, a classifica de campo de concentração. O que é importante é manter a narrativa.

Até parece que se está no domínio da pós-verdade e das realidades alternativas em que a verificação dos factos, o fact checking, não é suficiente para repor a verdade. Uma situação que só se mantém porque, fazendo uso do poder do Estado e das suas ramificações nas instituições e na sociedade, impõe-se uma historiografia oficial. Com isso o caminho fica aberto para, parafraseando o PM, se calar a história, para se branquear a história e para se truncar a história. Mas como se vive numa democracia na qual a circulação de ideias, de informação e de conhecimento é livre não se pode ficar só por mentiras, omissões e desinformação. Corre-se o risco de ser apanhado em falso.

Para bloquear essa possibilidade há que mobilizar sentimentos em indivíduos e grupos recorrendo ao culto de personalidade, a patriotismos exacerbados e reivindicações identitárias que os tornem impérvios a quaisquer factos presentes ou passados que ponham em causa a sua leitura do mundo. Consegue-se isso mantendo um estado de polarização permanente da sociedade recorrendo a questões fracturantes como a tensão entre o crioulo e o português, a negação da cabo-verdianidade e a exaltação da africanidade e o contra-senso de apresentar Amílcar Cabral como ídolo tanto do partido único como do regime democrático.

Não interessa se ir por esse caminho traz custos traduzidos em perdas de cerca de quatro anos na aprendizagem das crianças e jovens do país, como foi assinalado no último relatório do Banco Mundial. Não interessa que se continuem a cavar divisões com base em diferendos identitários artificialmente criados num dos únicos países da região com consciência nacional consolidada. Nem que se insista no conflito de princípios e valores antagónicos que leva à esterilidade do debate político e à descredibilização da democracia.

Narrativas legitimadoras de regimes ditatoriais usam a história selectivamente para encontrar factos, eventos e acontecimentos que justifiquem a sua própria existência, o seu papel histórico e a inevitabilidade das suas acções. Também para cinicamente exigir gratidão de todos pelo “serviço” prestado. A história nessa óptica não é realmente o passado que se pode abordar de vários pontos de vista. Também não é o passado que se deve procurar estudar e aprender para melhor construir o futuro, evitando cometer erros anteriores. Na perspectiva dos guardiões das narrativas, o controlo do passado é fundamental para exercer o poder no presente e condicionar o futuro. É evidente que com isso a sociedade fica sujeita a um autêntico colete de forças sem real liberdade de expressão, sem liberdade intelectual, sem pensamento crítico e limitada em criatividade e inovação.

No dia 13 de Janeiro de 1991, nas primeiras eleições livres e plurais realizadas em Cabo Verde, o povo mostrou com uma maioria qualificada de mais de dois terços dos votos a sua disposição de se ver livre desse colete de forças. A força dessa rejeição foi confirmada cinco anos depois nas eleições seguintes com uma maioria qualificada ainda maior, um feito extraordinário só visto com a ANC na África do Sul. O resultado do quebrar das amarras viu-se ao longo da década de noventa em liberdade política e liberdade económica. Consolidou-se a democracia e o país aumentou extraordinariamente o seu potencial de crescimento e atingiu as maiores de taxa de crescimento do PIB de sempre, excluindo a taxa de crescimento de 2022 de recuperação da contracção de mais de 20% devido à Covid-19.

Já nas duas décadas do século XXI constata-se que se perdeu o ímpeto do crescimento com níveis de produtividade baixa, insuficiente desenvolvimento do capital humano e progressiva resistência a reformas essenciais para o aumento da competitividade do país. Não é simples coincidência que esses anos de declínio desses indicadores foram acompanhados do reforço das narrativas do regime anterior que nunca tinham sido totalmente questionadas e por isso continuaram a ser reproduzidas nos sistemas de educação e de cultura do país e promovidas por outras instituições do Estado. O mais complicado é que o partido, o MpD, que foi o portador da vontade expressa em duas maiorias qualificadas para libertar o país do colete de forças, quando regressou ao poder nas eleições de 2016, resolveu nas palavras do primeiro-ministro “ficar em paz com a história”.

Na sequência, desenvolveu-se uma tendência em seguir com uma linha de continuidade nas políticas públicas expressa na proclamação que o meu partido é Cabo Verde e que deixou o país sem os benefícios do confronto democrático de políticas alternativas. Aliás, cada vez mais se nota que os programas dos sucessivos governos orientam-se mais pelas agendas e prioridades das organizações multilaterais como as Nações Unidas e o Banco Mundial e outros parceiros do que por visões diferenciadas de desenvolvimento dos dois grandes partidos. Uma das consequências disso é a crescente dificuldade em resolver os problemas sistémicos que vão surgindo nos diferentes sectores económicos e sociais.

Fazem-se tentativas sem grande sucesso ou com sucesso momentâneo, criam-se passivos financeiros e outros, alguns problemas tornam-se quase intratáveis, mas a tendência é continuar a fazer as mesmas abordagens e a propor as mesmas soluções. Paradoxalmente esperam-se resultados diferentes. Entretanto, há gente que desiste e procura emigrar e outros como os profissionais em áreas críticas procuram tirar o máximo do sistema. Ainda há os que no jogo político usam todos os estratagemas para substituir quem está no poder, para, no fim, fazer praticamente o mesmo.

Claramente que um dos principais ingredientes em falta é o pensamento crítico. Não se aprende nas escolas, não é cultivado nas organizações e não se é recompensado por o manifestar. Em ambientes onde se normalizaram narrativas de pós-verdade é o conformismo que se impõe. E ficar em paz com o que o poder dita é a via para a sobrevivência pessoal. Não é, porém, a via para o desenvolvimento do país e para a realização do direito à felicidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.

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