A corrida de Cabo
Verde à presidência da Comunidade Económica dos Estados da África
Ocidental (CEDEAO) revelou-se um fracasso. Terminou em recriminações, na
busca de bodes expiatórios e em exercícios de auto-dúvida de como o
país se vê e é visto pelos outros e como projecta a sua imagem no resto
do mundo, em particular em África. A justificação oficial por se negar
Cabo Verde a presidência da CEDEAO foi o incumprimento no pagamento da
dívida que vem de há mais de 14 anos atrás. Uma justificação que, porque
se quis ignorar o plano apresentado para o pagamento e os pagamentos do
ano 2017 já feitos, suporta a acusação feita pelo Presidente da
República Jorge Carlos Fonseca que teria havido “arranjos políticos”,
supõe-se de bastidores, e que deram a vitória à Costa de Marfim.
Pensando bem, dificilmente podia ser de
outra forma. Cabo Verde, um país arquipélago e lusófono no meio de
potências regionais francófonas e anglófonas, à primeira vista não
estaria em melhor posição para ajudar no equacionamento dos problemas
dos países do continente e encontrar as melhores vias de cooperação
entre os estados para os resolver. Não partilha dos múltiplos e
complexos problemas próprios dos países do continente, designadamente
das comunicações, das migrações, das doenças endémicas, não se confronta
com tensões étnico e religiosas e ameaças do terrorismo e não se depara
com o grande desafio de ir além das indústrias extractivas e passar à
industrialização e aos serviços necessários para resolver os problemas
de crescimento sustentável e desemprego em África. Os seus problemas são
de outra natureza e escala. As relações comerciais e outras com os
países da comunidade mantêm-se diminutas e não dão sinais de grande
dinâmica.
Por outro lado, não se viu suficiente
empenho do governo em fazer do seguimento da regra da ordem alfabética
para preenchimento do cargo de presidente da CEDEAO uma oportunidade
para uma posição de relevo no plano internacional enquanto interlocutor
privilegiado em relação com entidades em África, com a União Europeia e
com outros países da Asia e das Américas. Já em anos anteriores a regra
tinha sido dobrada para dar a presidência a Burkina Faso em vez de o
entregar ao Benim. Não era portanto algo seguro. Estranha-se que sabendo
isso não houvesse um esforço diplomático mais dirigido para demonstrar a
utilidade de uma presidência de Cabo Verde. Pelo contrário, o que se
assistiu nos últimos meses poderá ter passado sinais de desinteresse
e/ou de fragilidade. Viu-se como a questão da presidência da CEDEAO
tornou-se numa espécie de corrida interna com vários candidatos a se
oferecerem sem que o governo tomasse uma posição e demonstrasse que
tinha efectivamente controlo do processo. Também certamente não se
deixou de notar que um evento de maior importância como a Cimeira da
União Europeia e África, em Abidjan, há três semanas atrás, e com
presença de entidades ao mais alto nível, Cabo Verde não se fizesse
representar pelo presidente da república ou pelo primeiro-ministro. Já
com muita coisa em desfavor, não estranha que o país tivesse perdido
para quem realmente tem propósitos claros e sabe mover-se para angariar
apoios políticos.
O fracasso na corrida para a presidência
da CEDEAO poderá ter uma consequência inesperada que é de afectar
negativamente a estratégia de atracção de investimento externo. O país
vem insistindo em atrair investimento externo, apresentando Cabo Verde
como via de acesso ao mercado de 300 milhões de pessoas na região da
África Ocidental. É uma das muitas ficções que tendem a persistir em
todos os governos. Os magros números das importações e exportações em
relação à África indiciaram sempre a fragilidade dos laços comerciais
existentes com a região e agora com a perda espectacular é a influência
política para entendimentos e outras formas de cooperação que foram
postas em causa. De certa maneira, tudo isto não devia ser novidade para
ninguém. Só por teimosia ou por razões ideológicas profundas é que se
pode insistir que o futuro de Cabo Verde reside fundamentalmente na sua
relação com a região africana próxima, que, por sinal, não é das mais
dinâmicas e onde o país tem no Senegal o seu concorrente directo.
Oportunidades de negócio certamente existem mas aproveitá-las não tem
sido fácil, e não é por preconceito como sugerem alguns. Afinal Cabo
Verde foi governado 30 anos dos 42 de independência a começar pelos
primeiros 15 anos por uma força política que se intitula partido
africano de independência.
A ficção que são certas forças políticas
ou certos sectores da população que não querem dinamizar a relação com
os países vizinhos só serve para reforçar políticas identitárias que cá
em Cabo Verde como em toda a parte do mundo prestam-se a criar divisão e
a fragilizar o tecido social e cultural da nação. Não é por acaso que
hoje reina a divisão entre os caboverdianos quando muitas décadas atrás,
antes da independência, a consciência da caboverdianidade era
partilhada por todos nas ilhas independentemente das suas convicções ou
ligações políticas. A introdução dos ideais do pan-africanismo e da
negritude no pós-independência deu o mote para uma política de divisão,
criando antagonismos de toda a espécie: entre patriotas e
colaboracionistas, resistentes culturais e aculturados, africanistas e
europeístas, defensores do crioulo e defensores do português.
O resultado desta ofensiva ideológica que já foi caracterizada de reafricanização dos espíritos
e que ainda encontra respaldo no sector educativo e na comunicação
social estatal é a imagem do povo dividido, pessoas confusas com as suas
origens e identidades e um país com falta de clareza e coerência na
relação com outros povos. Países pequenos e insulares como Cabo Verde,
por exemplo as Maurícias e Singapura, devem boa parte do seu sucesso ao
facto de terem conseguido instilar nas pessoas a ideia do destino comum,
uma ideia do que é ser cingapuriano ou maurício ultrapassando as
diferenças étnico-linguistas das suas sociedades. Fazer o caminho
contrário a eles e em direcção à divisão, quando no ponto de partida a
nação estava consolidada, não é certamente a via para se conseguir
mobilizar as forças da nação, para criar confiança em nós próprios e
ganhar a confiança dos outros.
A relação de Cabo Verde com todos os
actuais e potenciais parceiros depende da nossa capacidade de
compreender quem somos e potenciar o que realmente nos distingue – um
país fruto da expansão europeia pelo mundo, mas contrariamente ao que se
verifica noutras criações similares espalhados, não se nota que o poder
económico, o poder político e o estatuto social têm ligação com a raça,
coloração da pele ou origem familiar no antigo colonizador. Se
estivermos cientes do que somos, poderemos relacionar com todos sem
quaisquer complexos de superioridade ou de inferioridade e saberemos
onde focalizar a nossa energia sem deixarmos iludir por ficções
ideológicas identitárias ou de outra natureza e com a convicção certa de
que “as nações não têm sentimentos, mas sim interesses”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 838 de 20 de Dezembro de 2017.
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