O populismo em crescendo na generalidade das democracias parece que já tem residência fixada em Cabo Verde. Até há pouco tempo fazia-se referência a políticos com pendor populista ou a discursos e políticas marcados pelo populismo. Como tendência partidária suportada por segmentos significativos da população ainda não se tinha destacado. A vitória retumbante de Francisco Carvalho nas eleições para a Câmara Municipal da Praia à frente de uma lista do PAICV mudou tudo, particularmente quando o vencedor se prontificou logo em dirigir o partido e ser candidato a primeiro-ministro.
Ao terramoto que significou esse anúncio seguiu-se, semanas depois, a retirada do ainda líder e a apresentação de mais três candidaturas para a eleição do presidente do partido. Os acontecimentos na última semana antes do certame eleitoral, que acabou adiado por decisão do Tribunal Constitucional (TC) na sequência da interposição de uma providência cautelar, deixaram saber de uma forte vontade no seio de destacados militantes de impedir o controlo do partido por forças populistas. O recurso à questão da regularização das quotas na disputa acabou, entretanto, por exacerbar os ânimos, abrindo caminho para uma candidatura se vitimizar e de seguida capitalizar sobre a provável decisão do TC.
Nos tempos de hoje nada disso é estranho quando se veem forças populistas, radicais ou extremistas a se apresentarem como vítimas de situações inicialmente por elas provocadas nas suas incursões contra o sistema ou contra as chamadas elites. Seguindo o playbook já palmilhado por Donald Trump e por outros, proclamam-se vitoriosas no confronto, independentemente da decisão dos órgãos jurisdicionais, e colocam-se na posição de acusar o sistema judicial de ser instrumentalizado contra eles e de descredibilizar a democracia. Há dois dias assistiu-se a algo similar com Marine Le Pen quando foi julgada e condenada por corrupção e viu limitada os seus direitos políticos. Acusou os tribunais de terem sido parciais e deplorou a fragilização da democracia.
A constatação do fenómeno do populismo não deve ficar-se pela oposição ou pela simples denúncia. O seu aparecimento e desenvolvimento é sempre uma possibilidade nas democracias da mesma forma que não se pode evitar que a demagogia em algum momento contamine e distorça o discurso político na esfera pública ou que a corrupção, no sentido de desvio de recursos públicos para fins particulares, desapareça de forma permanente. A democracia é, por definição, imperfeita para melhor sobreviver a choques imprevistos e mostrar-se resiliente a um mundo em mudança. Só soçobra quando se deixa de ter como referência os seus princípios e valores e de cumprir as suas normas e procedimentos. Se acontece, o populismo, os extremismos da direita e da esquerda e a corrupção encontram terreno fértil para crescer.
Daí que para conter a corrida para os extremos políticos, para não se cair na tentação populista de dividir a comunidade em “nós” e os “outros” e para não tolerar a corrupção a responsabilidade está em cada actor político, nas instituições da república e nas instituições de intermediação como os médias, as universidades, as igrejas e outras da sociedade civil. Também o cidadão comum não deve escusar-se ao seu papel na fiscalização do estado da democracia enquanto eleitor e participante da vida cívica e política do país. Afinal ele só é livre para dizer o que pensa nas conversas com os amigos, na comunicação social ou nas redes sociais porque a democracia e o Estado de Direito democrático asseguram-lhe as condições para tal.
Para o exercício da responsabilidade de manter a democracia funcional e credível é fundamental que se esteja alerta a certos sinais, designadamente: que as instituições poderão estar a descredibilizar-se ou por ineficácia própria ou sob pressão externa; que está a generalizar-se o sentimento nas pessoas de falta de uma voz activa própria ou de representação na vida do país; e que há uma percepção persistente em certos segmentos da população de que estão a ficar para trás ou excluídos de alguma prosperidade produzida que é monopolizada por uma “elite”. É desse “caldo primordial” complicado que poderá vir alimento, na base do ressentimento sobre o presente e do medo em relação ao futuro, para suportar os populistas.
A luta para quebrar o crescimento do populismo não deve, pois, ser dirigida primariamente contra os seus representantes. Corre-se o risco de os agigantar e de os transformar em vítimas. Deve-se procurar identificar as causas do mal-estar existente e da desesperança, compreendê-las e dar-lhes a resposta compreensiva que precisam de uma forma realista e pragmática. As soluções dos populistas, simplistas e redutoras da realidade, como geralmente são, passam pelo aumento da conflitualidade social, por incumprir normas existentes e “quebrar coisas” e pela promessa de espoliar uns para favorecer outros. A contra-resposta terá que passar por desfazer o sentimento de exclusão, por uma postura mais austera e solidária do Estado e pela valorização da cooperação como via indispensável para se conseguir progresso para todos.
Noutras paragens o populismo ganha força com a exploração da xenofobia, de sentimentos de exclusão e anti-imigrantes, reacções contra políticas identitárias, etno-nacionalismos e tensões próprias das sociedades multiculturais. Os seus métodos e o seu foco são invariavelmente anti-sistémicos e dirigidos contra a democracia. Funcionando na base da extrapolação de emoções serve-se de narrativas para construir realidades alternativas e, por isso, torna-se difícil combatê-lo simplesmente com base na disponibilização de factos e com a chamada comunicação de proximidade.
Em Cabo Verde são vários os indícios de que nas eleições legislativas vai-se ter um embate contra o populismo. Não será a primeira vez. O ensaio numa escala menor, mas representativa já foi feita nas autárquicas na Cidade da Praia e sabe-se quem saiu vencedor. E, como em casos de confronto com populismos noutras democracias, não se deixou de notar o impacto da maior transversalidade da mensagem populista no aumento dos votos e a aparente menorização pelos eleitores da importância da competência governativa na escolha dos dirigentes.
São sinais inquietantes que não devem repetir-se. O país saíra certamente a perder se as legislativas se tornarem num momento populista de choque entre “elites" e “excluídos". A reflexão profunda que o país precisa fazer para, segundo o vice-primeiro-ministro na avaliação do PEDS II, “dobrar seu crescimento económico nas próximas quatro décadas, pois, se o ritmo actual continuar, não será possível atender às demandas do mercado e da juventude em escala e tempo” dificilmente se verificará num ambiente político dominado pelo populismo.
Compete ao governo a responsabilidade primeira em combater as causas da exclusão e as narrativas que permitem aos populistas capitalizaram sobre as situações de precariedade para dividir a sociedade e, de facto, roubar-lhe o futuro. Aos partidos políticos é de maior importância que se revejam como pilares do sistema democrático e não sucumbam ao discurso fácil, movidos pela ganância da conquista do poder. Da sociedade deverá vir o sentimento e a intuição de que não é pela divisão, pela luta de classes, pelo confronto entre uns e outros que o país sobreviveu séculos e construiu uma consciência de nação dentro de um império colonial. O futuro só pode vir, parafraseando Abraham Lincoln, de uma “união mais perfeita”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1218 de 2 de Abril de 2025.