segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Dia Nacional dos direitos humanos

O governo de Cabo Verde com a aprovação da Resolução 123/2018 que declarou o 25 de Setembro Dia Nacional dos Direitos Humanos deu por duas razões um passo importante ao fazer as pessoas, a sociedade e as instituições do Estado mais conscientes da importância da garantia do exercício desses direitos para uma convivência em liberdade, na paz e confiança na justiça.
Primeiro, com a consagração de um dia próprio para a comemoração dos direitos humanos separado da data internacional de 10 de Dezembro, convidou a que no país se faça uma reflexão sobre o caminho percorrido e se invoquem os sacrifícios passados para os resgatar. Por essa via, eleva-se a sensibilidade face a qualquer violação presente e futura dos mesmos e reaviva-se a memória do que acontece quando os indivíduos são despojados dos seus direitos e ficam indefesos perante eventuais abusos das autoridades e de outros poderes na sociedade.
Segundo, ao fazer coincidir a o dia nacional dos direitos humanos com a data de entrada em vigor da Constituição de 1992 ajuda a cimentar na mente de todos e em particular das instituições a importância de se ver os direitos humanos como o pilar base da democracia liberal e constitucional. Em simultâneo deixa claro que a afirmação constitucional do primado da lei como princípio fundamental, a declaração que o exercício do poder só é legitimo se for conforme à Constituição e a garantia da independência dos tribunais visam fundamentalmente salvaguardá-los por forma a que em liberdade e com “governo consentido” todos possam exercer o seu direito à felicidade.
O gesto do governo em criar um dia nacional para os direitos humanos ganha particular pertinência quando se notam tendências de os considerar excessivos ou até contraproducentes em certos momentos, designadamente de emergência securitária. Sente-se isso, por exemplo, em discursos populistas, na postura das instituições ligadas ao combate ao crime e ao terrorismo e em atitudes de indivíduos ou grupos atraídos por um certo justicialismo demagógico. Há que contrariar essas tendências e trabalhar para desenvolver uma sensibilidade nas pessoas e na sociedade que permita reacção imediata na forma de repúdio, denúncia e exigência de acção das autoridades perante o que configurar atropelo de direitos. Particular atenção se deve prestar à polícia e outras forças de segurança que, por força da acção coerciva que são chamadas a exercer, podem incorrer em excessos na sua actuação ou em flagrantes demonstrações de abuso de poder. Das queixas apresentadas à Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, a polícia é a mais visada, segundo a presidente da referida comissão em declarações recentes à imprensa. É facto que essas queixas em geral não provocam da parte das autoridades reacções que vão além do inquérito interno. Mesmo em situações de mortes violentas em circunstâncias complicadas (mortes nas esquadras, o caso de Monte Tchota, etc.) fica-se por saber se houve auditoria externa ou qual foi o papel do Ministério Público no aclaramento dos acontecimentos e na defesa dos direitos dos cidadãos.
Em Cabo Verde constata-se uma deficiente sensibilidade em relação aos direitos humanos. A explicação para isso estará por um lado nas muitas décadas, quarenta e oito anos de salazarismo e quinze anos de partido único, vividas com regimes avessos aos direitos humanos e que submetiam o indivíduo e a sua dignidade ao poder do Estado, na perspectiva de Mussolini de tudo no Estado, nada contra o Estado e nada fora do Estado. Uma outra razão terá a ver com a forma com a transição política para a democracia se verificou em que tudo foi feito para negar uma descontinuidade entre os dois regimes, o democrático e o de partido único, e para não assumir de forma consequente que em termos de princípios e valores encontram-se nas antípodas um do outro. O resultado é que não se depara em Cabo Verde com situações como aquela do Chico Buarque num concerto em Portugal a referir-se aos jovens como “mocidade portuguesa” e a ter em reacção o silêncio geral e olhares de incompreensão. Ou do embaixador alemão, com a memória da juventude hitleriana, a dizer “não gosto de manipulação de crianças”, quando convidado a opinar pelo seu anfitrião sobre um espectáculo de crianças de um país africano seguindo coreografia norte coreana. Pelo contrário. Ainda hoje referências de violência nos anos de partido único contra pessoas, comprovadas por testemunhas vivas, pela imprensa da época e outras fontes, são apresentadas pela comunicação social pública como “alegadas torturas”. Recentemente com a discussão e aprovação da lei da reparação das vítimas da tortura viu-se a reacção de vários sectores de opinião ostensivamente a negar o acontecido e a discordar que se fizesse o mínimo para os que claramente foram injustiçados no passado, sofrendo na pele e na alma a sanha do aparelho repressivo do regime.
Em tal ambiente de dúvidas e disputas político-partidárias sobre os valores e princípios que estão na base dos direitos humanos dificilmente as instituições democráticas vão assumir pronta e integralmente tudo o que a Constituição consagra. Se mesmo em países com democracia mais consolidada com é o caso de Portugal fala-se em “deficiente sensibilidade e preparação constitucional” de polícias, procuradores e juízes que são quem no Estado de Direito democrático devem ser os garantes do exercício dos direitos fundamentais, imagine-se o caminho que ainda se tem que percorrer aqui em Cabo Verde. A iniciativa do governo em criar o Dia Nacional dos Direitos Humanos tem, pois, uma especial utilidade. Para além de celebrar essa conquista de civilização que são os direitos humanos e contribuir para uma cidadania mais participada e atenta, deve ser um dia para se dedicar uma especial atenção às instituições que a Constituição confia a defesa desses mesmos direitos e avaliar o progresso delas na assunção completa dos valores constitucionais na aplicação da lei.
Humberto Cardoso

Editorial do jornal Expresso das Ilhas originalmente publicado na edição impressa nº 930 de 25 de Setembro de 2019.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Sobrevivência vs. desenvolvimento

Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva.
Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva. A alegria no rosto de todos revela mais uma vez o efeito poderoso que “azágua” tem na psique cabo-verdiana. Mobiliza pessoas de volta para os campos, dá um outro vigor aos camponeses que em antecipação já tinham semeado em pó e renova a esperança de todos que o ano agrícola será de fartura. Há séculos que os cabo-verdianos vivem o drama de esperar que as chuvas caiam, que venham no tempo certo e que não causem demasiados estragos. Demasiadas vezes não acertam. A história do arquipélago é em muitos aspectos tributária do facto do sonho não se concretizar e em vez do bom ano desejado se ter que lidar com a tragédia das secas, com mortes do gado e não raramente ao longo da história também com o horror das mortandades resultantes das fomes. Toda essa luta pela sobrevivência numa terra em que realmente não chove e deixa as populações completamente desamparadas perante os efeitos de secas sucessivas moldou este povo como nenhum outro. Contribuiu com os ingredientes certos para gerar uma nação, a partir das gentes a labutar nas diferentes ilhas, caracterizada por um rosto e marcas culturais sem igual nas várias experimentações humanas na bacia do Atlântico que se sucederam à descoberta do Novo Mundo.
O sucesso na luta pela sobrevivência foi fundamental para a cabo-verdianidade. No meio da precariedade reinante alimentou os laços de solidariedade, ajudou a criar um ethos e uma ética de trabalho que sempre distinguiu os cabo-verdianos no país e no estrangeiro e dirigiu o foco das famílias e da sociedade para a necessidade de educação e da relação com o mundo. Sentimentos de fatalismo, ressentimento e menoridade falharam em se instalar. Pelo contrário, o amor à terra natal, a sodade e a morabeza tornaram-se elementos distintivos da alma do cabo-verdiano nos quais todos procuram se rever. Com a independência nacional e a ajuda externa mais abrangente e substancial, porque não limitada ao que Portugal poderia oferecer, a questão da sobrevivência deixou de se colocar. Como diria o poeta “as estiagens deixaram de nos meter medo”. O país com mais apoio financeiro e de outro tipo e maior acesso a mercados estaria pronto para passar de uma postura de sobrevivência para uma de luta pelo desenvolvimento. Com sorte e perspicácia dos governantes talvez pudesse capitalizar sobre as qualidades adquiridas no confronto com as dificuldades do país e fazer da luta pelo desenvolvimento também uma caminhada de sucesso. Quis o destino que não fosse assim.
As secas de 2017 e 2018 vieram relembrar com particular brutalidade que a vulnerabilidade das populações no mundo rural e a precariedade da sua existência não foi alterada substancialmente desde da independência. É um facto que investimentos de muitos e muitos milhões foram feitos ao longo de décadas e nos últimos anos em barragens, sistemas de irrigação e acções múltiplas de apoio a agricultores. A verdade porém é que não se submeteram a qualquer estratégia coerente de desenvolvimento e o resultado é o que se vê: a produtividade manteve-se baixa, a qualidade fraca, o mercado restrito e os canais de distribuição ineficientes. Deixaram as populações a funcionar numa lógica de sobrevivência e quando a seca adveio com particular dureza ficaram completamente expostas e mais uma vez teve-se que pedir ajuda internacional para minimizar o impacto no rendimento das pessoas e nos seus pertences. Alternativas de emprego e rendimento em sectores como a indústria e os serviços não foram construídas porque faltou visão, empenho para fazer as reformas no ambiente de negócios e não se apostou na educação com inteligência e sentido estratégico.
Olhando retrospectivamente pode-se constatar que realmente nunca se chegou a operar a mudança completa do paradigma de sobrevivência para o de desenvolvimento. Há provavelmente várias razões para isso mas é evidente que a principal é política. Num país de escassez brutal de tudo e funcionando numa lógica de sobrevivência, detém de facto o poder quem administra os recursos, garante os acessos e escolhe os ganhadores. O aumento expressivo de ajuda externa no período pós-independência serviu para legitimar o partido único que dizia querer acabar com as fomes e educar toda a gente. Nos anos que se seguiram o Estado cresceu de forma acelerada e com ele uma classe média a ele subordinada e grata enquanto se reduzia a parte da estrutura produtiva do país nas mãos de privados. Com tanta gente no Estado, nas empresas públicas e nas FAIMO na condição de dependentes é evidente que não havia espaço para se cultivar os valores civis e éticos indispensáveis ao desenvolvimento.
Desenvolvimento precisa de liberdade, autonomia, iniciativa e criatividade, para além de um ambiente socioeconómico e político que respeita os direitos da propriedade, dá garantia de cumprimento de contractos, trata a todos por igual e tem tribunais independentes para dirimir conflitos. O problema é que ao não existirem durante muitos anos ficou difícil institucionalizá-los na sua plenitude ao longo da segunda república. Nestas condições a resistência às reformas de todo o tipo e em particular às reformas económicas é enorme. É só ver a resistência da administração pública em adoptar procedimentos mais expeditos, o apoio transversal na sociedade que se dá à economia informal e o suporte explícito de que gozam certos interesses corporativos com prejuízos evidentes para o país. Contribui para a manutenção desta situação o facto de a ajuda externa e da cooperação ter mantido um papel proeminente e praticamente nos mesmos moldes mesmo nos anos de regime democrático não obstante a retórica no sentido diferente. Sem uma alteração dos hábitos a tendência é para as instituições e os actores deixarem-se ficar no seu papel tradicional e resistir às reformas que eventualmente irão enfraquecer o seu status sócio-económico e afectar negativamente nos meios que poderá aceder ou disponibilizar. Por aí se vê o quanto tem sido difícil pôr de lado a perspectiva de sobrevivência e abraçar a via de desenvolvimento.
Entretanto o país vai sulcando o seu caminho ainda com a pessoas a sonhar que as chuvas poderão trazer a felicidade, ou na falta delas, a água das barragens ou a água dessalinizada servirão para isso e para manter fixa as populações nas zonas rurais com as suas culturas de subsistência. Num outro registo assiste-se ao esforço de outros sectores como o turismo, a construção civil, o comércio, transportes e os serviços em geral em se manterem de pé perante os efeitos erosivos de uma economia em vários aspectos desestruturada e dominada pela informalidade. Em acréscimo têm ainda de suportar os custos de água, energia e outros produtos e serviços tornados caros precisamente por falta de eficácia na acção do Estado para pôr cobro à situação existente. Concluindo, pode-se dizer que sem a solidariedade de outrora, em que realmente estava em jogo a sobrevivência, todos quererão arrebatar o seu quinhão onde puderem e não haverá vontade crítica e orientação compreensiva e estratégica para efectivamente se criar valor e prosperar com benefícios para todos.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Corrupção e populismo ameaçam as democracias

A democracia corre perigo em todo o lado. Há mesmo quem fale em recessão mundial da democracia. O mais recente exemplo das ameaças com que a democracia se depara vem precisamente do Reino Unido e da Inglaterra onde as ideias liberais, o parlamentarismo e o constitucionalismo assentaram arraiais pela primeira vez nos tempos modernos. Na confrontação sobre o Brexit, o processo de saída da União Europeia, tem-se assistido a um esforço deliberado do governo em minimizar o papel do parlamento. Primeiro recorreu-se a expedientes procedimentais que efectivamente o impediriam de deliberar sobre as questões cruciais do país. Agora o primeiro-ministro Boris Johnson prepara-se abertamente para, nas próximas eleições, se apresentar como paladino da vontade popular contra a vontade do parlamento num embate que promete opor a democracia directa à democracia parlamentar. A exemplo de outras democracias em que fenómenos semelhantes estão a acontecer, vê-se que o objectivo de certas movimentações políticas é ter dirigentes que se colocam acima da lei, que minam as instituições e submetem o interesse geral aos caprichos particulares. Para conseguir os seus intentos não têm qualquer pejo em cavalgar medos, paixões e preconceitos de multidões.
Em Cabo Verde sente-se também o impacto do mesmo populismo que vem causando estragos consideráveis tanto nas novas democracias como nas mais consolidadas. Os seus promotores, refugiando-se ora em discursos identitários, ora num mal disfarçado desprezo pelo pluralismo e ora numa hostilidade aberta às elites, supostamente querem apresentar-se como a cura ou a via para se ultrapassar os males da democracia, corrigir desigualdades e assimetrias regionais e promover melhor cidadania. Na prática, o que conseguem é a degradação institucional com perdas em eficiência e eficácia, um aumento de resistência a reformas essenciais para se ter prosperidade e alterar o quadro da desigualdade e acréscimos num cinismo na esfera pública que mina a confiança entre as pessoas, impede a cooperação entre elas e deixa cada uma perdida na sua verdade. Perante esta força há que contrapor uma outra em sentido contrário e é urgente que isso aconteça porquanto vem aí o ciclo eleitoral com os três certames autárquico, legislativo e presidencial e conhece-se perfeitamente o efeito da polarização que as eleições provocam.
As forças do populismo, porém não estão sozinhas nessa acção de erosão da democracia e das suas instituições. Paradoxalmente os cúmplices no processo vão-se encontrar nos partidos, na classe política em geral e em detentores de cargos públicos cujas instituições no “final do dia” são os alvos preferidos do populismo e da demagogia que ameaça a generalidade das sociedades democráticas. Exemplos encontram-se em todo lado sendo o caso do Reino Unido referido acima o mais recente. E na maior parte dos casos trata-se de gente do sistema político e não “outsiders” como Donald Trump. É só ver o caso de candidatos a deputado e a primeiro-ministro que, em cima das eleições, ao afirmar que não lhes interessa o cargo de deputado, diminuem o papel do parlamento enquanto órgão representativo do povo. Ou os vários casos de detentores de órgãos de soberania que na relação com os outros órgãos põem em causa o princípio da separação de poderes deixando-os fragilizados e desacreditados. Ou ainda o espectáculo oferecido pelos partidos, a digladiarem-se como se inimigos fossem, revelando falta de tolerância mútua, défice de honestidade nos argumentos e fraca adesão à verdade dos factos.
O efeito erosivo do populismo sobre as democracias, nos últimos tempos, vem-se fazendo sentir indiscriminadamente nas velhas e novas democracias. Tem encontrado no ambiente actual, dominado pelas novas técnicas de comunicação e dinamizado pela acessibilidade oferecida pelas redes sociais, as condições certas para se aprofundar ainda mais e pôr em causa os alicerces institucionais do sistema. A tolerância cada vez maior da sociedade a expressões de individualismo destemperadas têm contribuído para uma esfera pública dominada por manifestações quase narcisísticas de indivíduos na ânsia de se mostrarem autênticos, por comportamentos de políticos a copiar celebridades e por tentativas de fazer da governação, em parte, um espectáculo em ilusionismo. Os excessos, as fugas às normas estabelecidas e o aproveitamento directo ou indirecto dos cargos têm encontrado um travão no sistema judicial e nos tribunais independentes.
Não é por acaso que choques terríveis com os juízes se têm verificado em países como Polónia, Hungria e os Estados Unidos à medida que se acentua a deriva autoritária. A exigência que o Estado no exercício do poder deve respeitar a Constituição e as leis democraticamente criadas faz do poder judicial o guardião do sistema democrático. Torna-o também num alvo a abater ou a desacreditar para quem quer exercer o poder colocando-se acima da lei e considerando-se como único capaz de representar o interesse geral e de realizar o bem comum. A tentação de instrumentalizar o sistema também é grande tanto de quem selectivamente pela judicialização da política recorre aos tribunais como forma de fazer política por outros meios como daqueles que pela politização da justiça põem em causa a credibilidade do sistema atribuindo-lhe desígnios que violam a separação de poderes. As experiências recentes da crise nas democracias reafirmam a importância de se ter um sistema judicial íntegro, tecnicamente capaz e credível. Em tempos de fragilização das instituições democráticas o último recurso são os juízes. Por isso mesmo não se devem deixar apanhar nem pelos excessos de protagonismo pessoal que caracteriza os tempos actuais nem muito menos pelo tipo de justicialismo anti-classe política que às vezes se manifesta.
Uma outra ameaça com que as democracias se confrontam é a corrupção. Aliás, uma parte da energia que move os populismos nos tempos actuais vem da extrema sensibilidade contra a corrupção nas suas diferentes formas que se desenvolveu na pós- crise financeira de 2008. Desvio de fundos públicos para privados, tráfico de influências, conflito de interesses, subornos, lavagem de capitais hoje são práticas mal vistas e condenadas transversalmente nas sociedades democráticas. As pessoas ainda ressentem-se do facto de que com a austeridade e perda de rendimentos terem pago a crise enquanto os seus autores no sector financeiro saíram praticamente ilesos. Qualquer esperança de conter a deriva para o populismo passa por uma luta efectiva contra a corrupção. Nisso é fundamental um sistema judicial íntegro e competente que também deve estar salvaguardado de ataques dos que preferem governar acima das leis e em seu interesse próprio. Num país como Cabo Verde em que a dependência do Estado é enorme e abrangente e em que o acesso a oportunidades de negócio pode ser ou não facilitado pelo Estado não é tarefa fácil. Mas é necessário que se concretize para que o desenvolvimento possa acontecer de forma inclusiva e não enviesada só para enriquecer uns poucos bem posicionados e relacionados.
                                                                                                                  Humberto Cardoso

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 11 de Setembro de 2019

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Para fechar em definitivo as feridas da alma

A memória dos acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 ficou este ano marcada pelo anúncio da promulgação da lei que visa a reparação das vítimas de tortura, em 1977 em S. Vicente e em S. Antão em 1981, feito pelo próprio Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca.
A proposta de lei tinha sido aprovada pelo Conselho de Ministros em Maio e depois discutida e favoravelmente votada na Assembleia Nacional em Julho. Finalmente, passados quarenta e dois anos e trinta e oito anos, respectivamente, que se verificaram os dois acontecimentos, pode-se enxergar vislumbres de justiça para com as vítimas do regime de partido único na assunção da responsabilidade do Estado de Cabo Verde, traduzida em compensação financeira para os próprios e seus familiares. Mas, como é evidente, a compensação material não é suficiente e, naturalmente, que esperam o pedido formal de desculpas do Estado para que as feridas da alma, desde então abertas, sejam definitivamente fechadas.
Depois dos órgãos de soberania, o Governo e a Assembleia Nacional, terem feito a sua parte e assegurado a aprovação da lei, é agora o momento para o Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, com a apresentação de desculpas reiterar que “o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e da inalienabilidade dos direitos humanos são o fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”. A celebração pela primeira vez do Dia Nacional dos Direitos Humanos a 25 de Setembro, por sinal também dia de entrada em vigor da Constituição de 1992, seria o momento perfeito para uma intervenção que fizesse justiça às vítimas.
De facto, o que aconteceu em S.Vicente nos cinco meses a seguir às prisões de 4 de Junho de 1977 e nos muitos meses após o 31 de Agosto de 1981, até aos julgamentos do Tribunal Militar de 20 de Março de 1982, constituiu um ataque sistemático do Estado contra todos os direitos que hoje todos os caboverdianos têm como garantidos. Ninguém hoje é preso, e muito menos torturado ou morto, por expressar o seu pensamento, por se reunir e manifestar. Ninguém é preso por polícias de “Segurança” e retido em prisões militares por dias e meses sem ser apresentado ao poder judicial e muito menos ser julgado por tribunal militar. Ninguém se vê na contingência de não viajar porque lhe negaram “uma autorização de saída”, ou, ainda pior, de lhe ser revogada a nacionalidade cabo-verdiana por decisão do Conselho de Ministros na sequência de processo organizado e instruído pela “Segurança” (artº 14 da Lei de Nacionalidade, BO de 23/11/76).
Na época, todos esses atentados aos direitos humanos tinham suporte em leis que sistematicamente foram produzidas nos primeiros anos após a independência, tais como a lei do boato que estipulava penas de seis meses de prisão (decreto-lei 37/75 de 1975), a lei que permitia à Segurança prender por um total de noventa dias (decreto-lei nº 95/76 de Outubro de 1976) e a lei do tribunal militar que podia julgar civis (decreto-lei nº 121/77 de Dezembro de 1977). Essas são algumas das leis que, com outras do mesmo teor e o suporte de instituições como as forças armadas, polícia e milícias populares, constituíram um aparato de repressão do regime que se manteve intacto até Maio de 1990, data em que a então Assembleia Nacional Popular procedeu à revogação das leis referidas no âmbito da abertura política iniciada três meses antes, a 19 de Fevereiro. O que aconteceu, em Junho de 1977 e no 31 de Agosto de 1981, não foi pois por mero acaso ou excesso de autoridades locais ou agentes menores. Qualquer dúvida a esse respeito, que alguns teimam em manter, desvanece-se facilmente perante a evidência do envolvimento de todo o aparato do Estado e ao teor dos comunicados oficiais e das declarações dos principais dirigentes registadas em jornais e revistas da época.
As críticas que têm sido feitas à lei de reparação ora promulgada vão no sentido de dizer que não é suficientemente abrangente porque não abarca todos os casos de tortura. Também questionam porque só é dirigida para os acontecimentos verificados em S. Vicente e S. Antão. Na linha desses argumentos há quem terá proposto que se adiasse a sua aprovação. A verdade é que indo por aí se estaria, de facto, na proverbial situação de fazer do óptimo o inimigo do bom. Mapear todas as situações de tortura verificadas durante o regime de partido único, para depois agir, significaria adiar indefinidamente uma tomada de posição do Estado no sentido de fazer justiça a vítimas já conhecidas. Foi acertado ficar-se pelos casos que estão amplamente documentados porque alvos de acção repressiva e sistemática do Estado por vários meses e com envolvimento de polícia, forças armadas, tribunais militares e outras instituições do Estado em que não havia dúvidas qual era a cadeia de comando.
Não é por acaso que foram precisos quase trinta anos de regime democrático para que finalmente o Estado garantisse o direito de reparação às vítimas do regime. Até agora, todos os argumentos têm sido bons para se adiar a questão. Felizmente, finalmente conseguiu-se quebrar a barreira criada por esses argumentos e, pela primeira vez, afirmar o princípio básico de justiça e da responsabilidade do Estado para com as vítimas, a começar pelas já amplamente conhecidas e documentadas. Conseguido esse primeiro objectivo, certamente que casos em todo Cabo Verde, alguns até agora mais obscuros, venham a ser tidos em devida conta. para que a justiça chegue a todos. Para isso, como bem diz o sr. Presidente da República no texto de anúncio de promulgação da lei, é importante que se faça a certificação dos factos justificantes da atribuição da pensão de forma objectiva e séria para evitar aproveitamentos indevidos das compensações. Com a abertura feita para se investigar o regime de partido único não parece haver muitas dificuldades em conseguir dados que identifiquem as suas vítimas reais. Afinal, tudo aconteceu aqui no país. Imagine-se, entretanto, o quanto que o Estado poderia ter poupado se esses mesmos critérios tivessem sido aplicados aos processos de pensão dos auto-proclamados combatentes da liberdade da pátria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 927 de 04 de Setembro de 2019.