sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Dependência e humilhação

As cenas repetidas todos os anos de distribuição de kits escolares aos alunos carenciados difundidas pela televisão são reveladoras do esforço permanente de reprodução de comportamentos de dependência em Cabo Verde. Pontificam nesses encontros os “suspeitos do costume”: os ministros, os presidentes de fundações, que também são passados ou futuros candidatos a deputados, e os responsáveis da região política do partido no governo. Sente-se forte o odor político-partidário das cerimónias não obstante a presença de entidades privadas doadoras convidadas no intuito de as fazer passar como gestos neutros de solidariedade. Completa o quadro as crianças a agradecer aos seus benfeitores. Como bem disse alguém, é extraordinário como ditadores e certos doadores gostam de ser fotografados com crianças. Têm em comum o desejo de manter as massas e os pobres infantilizados e dependentes da sua benevolência paternal. Michael Walzer, um cientista social americano num artigo recente na revista Foreign Affairs diz que “a caridade deve reger-se pelas exigências de justiça”. Só se ajuda de forma moral quando há reconhecimento e respeito da dignidade das pessoas contempladas. Ajuda que perpetua a dependência e a subordinação é profundamente injusta. Para ele, o encontro do carenciado com o benfeitor é humilhante. E citando Maimonides diz que dar anónimo é a forma moralmente superior de ajudar os outros. Em Cabo Verde como se sabe acontece precisamente o contrário. Imagens todos os dias na televisão repetem cenas de doadores com ar beatífico em frente de recipientes agradecidos num ritual perpetuador da dependência. Não espanta que depois outros pagamentos sejam exigidos designadamente apoio político e votos nas eleições. A corrupção que se manifesta na compra e venda de consciências impregna o tecido social mais fundo do que as denuncias até então revelaram. E a cumplicidade é geral.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Atropelos

Todo o país pôde ouvir pela rádio e pela televisão um polícia da Calheta de São Miguel a ameaçar “arrebentar” com a câmara da RTC se a equipa prosseguisse com as filmagens. O passo seguinte da polícia foi deter o operador de câmara e conduzi-lo algemado à esquadra. O incidente terminou com o profissional da comunicação social a assinar um pedido de desculpas em troca de liberdade. A Associação dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC) considerou a matéria como grave e um atentado à liberdade de imprensa e solicitou explicações do director da Polícia Nacional. Está por vir a resposta.

Da polícia espera-se que se coloque na primeira linha de defesa dos direitos dos cidadãos. Para isso deve cumprir estritamente a lei na forma como interage com as pessoas tendo sempre presente o princípio de proporcionalidade na utilização da força, seja na manutenção da ordem pública, seja no combate à criminalidade. A polícia num Estado de Direito democrático não “arrebenta” com coisas ou pessoas. Não humilha cidadãos. Não extrai declarações de desculpa de pessoas detidas para as soltar. Acções da polícia que configuram atentados contra a liberdade de imprensa são de gravidade acrescida. Presume-se que queira esconder do público situações de abuso de poder.

Silêncio tem sido a resposta recebida das autoridades policiais às múltiplas denúncias de abusos. Mesmo quando estas têm eco em relatórios internacionais de direitos humanos como o do Departamento do Estado americano. Até recentemente o Governo parecia defender esse silêncio. O entendimento talvez era que não inspeccionar os actos da polícia ajudava a manter o moral e a corporação saía reforçada. A realidade porém vivida é de aumento da criminalidade, de crescente sentimento da insegurança e da falta de confiança das comunidades na polícia. Com a ineficácia, cresce proporcionalmente a arrogância. Esconde-se a incompetência e afirma-se estar acima da Lei.

Nos últimos meses o país tem constatado o avanço em sincronia da arrogância, do autoritarismo e da incompetência. Vê-se todos os dias em matéria de energia, água e segurança. Viu-se nas eleições presidenciais como a má gestão de processos conduz a extremos inibidores de discussões serenas no seio de partidos, retirando-lhes a função principal de dinamizar a procura de soluções para o país. A arrogância não deixa que se aprenda com os erros e se assaquem responsabilidades. O autoritarismo convida a que se enverede por atalhos perigosos em vez de trilhar o caminho aberto e transparente seguindo procedimentos conhecidos e aceites por todos.

O discurso do Sr. Primeiro Ministro na Assembleia Geral das Nações Unidas feito em crioulo é mais um exemplo de voluntarismo político que não olha a meios para atingir os seus fins. O PM falou no maior fórum das Nações numa língua que, por Lei, não é a língua oficial de Cabo Verde. O PM decidiu ultrapassar o Parlamento que, em Fevereiro de 2010, em sede de revisão constitucional, tinha concluído que ainda não estavam reunidas as condições para a oficialização do crioulo. Não mediu as consequências tanto internas como externas do acto. Fica-se por saber em que língua da ONU os outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) seguiram o discurso de Cabo Verde.

O autoritarismo crescente do Governo nota-se a cada passo. Inventa sabotadores para explicar problemas na Electra, ameaça de perda de trabalho os não apoiantes do candidato preferido, encolhe os ombros perante acusações de desmandos policiais, encoraja tácticas excessivas e contraproducentes no combate à delinquência juvenil e financia organizações sociais para manter a população arrebanhada e útil em tempos eleitorais. Paralelamente usa meios de marketing político para passar uma espécie de ideologia do Estado que pouco espaço deixa aos princípios e valores constitucionais de dignidade humana, liberdade e justiça. Todas as oportunidades são boas para se banhar em nostalgia e sentimentos de gratidão para com o percurso independentista e, assim, justificar-se na presente deriva autoritária. Mas o desnorte é evidente e urge repor os equilíbrios de poderes que a Nação considerou dever existir na Constituição, já com 19 anos de existência, para que a caminhada rumo à prosperidade na Liberdade prossiga sem sobressaltos.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 28 de Setembro de 2011

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Quebrar o círculo de dependência

Denúncias de condicionamento do voto recentemente feitas deixaram claro que organizações da sociedade civil designadamente as associações comunitárias são activamente instrumentalizadas pelos poderes públicos para fins partidários. Não ficaram dúvidas que muitas delas são criadas para se constituírem em centros de poder nas comunidades disputando recursos com as câmaras e posicionando-se como rivais na realização do que normalmente seriam atribuições municipais. A ausência de controlos adequados no uso dos fundos públicos recebidos faz dessas associações o veículo perfeito para dar trabalho, distribuir dádivas e prestar favores numa perspectiva eleitoralista.

As pessoas em Cabo Verde, como noutras paragens, juntam-se num esforço colectivo para fazer face às dificuldades da vida e à escassez de recursos. No processo reforçam as relações entre si, aumentam a confiança mútua e sentido de pertença e aprofundam o seu sentido cívico. Há perversão de objectivos quando se deixa instalar uma cultura assistencialista que em vez de fazer as pessoas autónomas fá-las mais dependentes do Estado. Então ênfase é colocada na distribuição e tal facto estimula o aparecimento de oportunistas que socorrem-se de expedientes diversos para se colocarem em posição de controlar o “bolo”, de retirar dele um maior naco possível e de oferecer migalhas a quem sabe mostrar gratidão. Deixa-se campo aberto para mais tarde serem extraídos outros ganhos ou servidos certos interesses.

O ambiente propício a esse tipo de perversões cria-se com o enraizamento da ideia de que se pode preservar a dignidade fazendo uma vida à custa da caridade ou solidariedade internacional. Partindo de um sentimento de vitimização histórica real, fictícia ou forjada, justifica-se uma existência na dependência permanente dos outros ao mesmo tempo que orgulhosamente se proclama ser independente e soberano. O embuste, quando levado a avante tempo demais, envenena alma, esvazia energias para uma vida autónoma e erige em arte superior esquemas de enganar parceiros. Finge-se que se está à procura da via própria e autónoma de desenvolvimento, chega-se mesmo a adoptar linguagem e conceitos de quem está seriamente engajo nisso quando, de facto, na maior parte dos casos, está-se simplesmente a inventar mais uma razão para continuar a ser financiado.

O Estado em vez de se posicionar como instrumento de vontade colectiva para a libertação da dependência, transforma-se no seu principal agente reprodutor. Por uma razão simples. Aprende a viver da dinâmica que as infusões sucessivas de recursos provocam, e, em vez de apostar no crescimento da economia nacional, centra-se na atracção de recursos que pode controlar e extrair um maior quinhão. Serve-se de vários mecanismo e entidades, incluindo associações, para obter vantagens diversas como criar uma clientela, reforçar dependência e alargar a base de apoio.

Em Cabo Verde a caridade tem rosto. Todos os dias sucedem-se actos ostensivos de entrega de dádivas seguidos de manifestações públicas de agradecimento. Sonhos de comunidades e de pessoas individualmente são apresentados como realizados com doações. Omite-se que a sua concretização devia ser resultado do esforço, motivação e capacidade próprios.

Em tal ambiente socialmente e culturalmente armadilhado não pode ser surpresa que se comprem votos ou consciências. O que acontece nos momentos eleitorais simplesmente é a ponta de icebergue de uma existência em que outros favores indignos também se prestam, bocas se calam e mentes ficam aprisionadas para se continuar a gozar de um estatuto de privilegiado e aspirar uma subida para o “topo da cadeia alimentar”. Há que quebrar o círculo vicioso da dependência e direccionar o país e as pessoas para uma autonomia que as dignifique e liberte para dar o máximo da sua energia e criatividade na construção de uma vida mais rica, mais gratificante e mais realizada.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 21 de Setembro de 2011

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Ensino, conhecimento e o futuro

O novo ano escolar inicia-se hoje, dia 14 de Setembro. Milhares de alunos dirigem-se para as escolas do ensino básico e secundário sem que uma avaliação aprofundada tenha sido feita dos resultados do ano lectivo anterior. A questão crucial da qualidade do ensino continua à espera de ser equacionada. Na mesma situação também se encontra a clarificação dos objectivos pretendidos com o actual sistema de ensino e seu enquadramento na estratégia de desenvolvimento do país. Entretanto, os índices de competitividade de Cabo Verde, de acordo com o relatório do Fórum Económico Mundial de 2011-12, continuam a cair de 117º para 119º, contribuindo para isso as ineficiências nos sectores de educação e formação.

Educação não foi matéria de relevo no debate do Estado da Nação porque só a 25 de Agosto é que o Ministério prontificou-se na pessoa do director-geral do Planeamento a dar dados sobre o ano lectivo findo. E mesmo assim foram informações genéricas com base nos números de aprovação, reprovação e abandono escolar. De fora ficou a avaliação qualitativa do sistema, incluindo as dificuldades, o grau de eficácia dos métodos para as enfrentar e a identificação dos sucessos e falhas na procura de qualidade e excelência.

A aposta na educação e formação é fundamental para a riqueza das nações particularmente num país arquipélago sem recursos naturais e com pequena população. Cabe aos poderes públicos o papel central de assegurar as condições para que o investimento das famílias, das crianças e jovens e a ainda dos contribuintes traga um retorno valioso com impacto no bem-estar e autonomia das pessoas e no ambiente cultural, artístico e intelectual do país. Os recursos são sempre escassos e não devem ser desperdiçados. Nem as pessoas ficarem frustradas nos seus sonhos e objectivos de vida. Há que ter foco e uma visão ganhadora do futuro.

Em Cabo Verde, no que respeita ao nível do ensino e formação, comporta-se como se não houvesse standards mundiais de excelência. Prefere-se comparar pelo que preconceituosamente se supõe inferior. A realidade é que muitos países africanos estão à nossa frente e isso fá-los concorrentes fortes na atracção do tipo de investimentos mais procurados por quem não tem óbvias vantagens em recursos naturais e dimensão de mercado.

Opta-se por manter um sistema em que o desejo de ter um diploma não se traduz em vontade de aprender e de cultivar o conhecimento. Daí os aspectos perversos que apresenta. Com certificação do Estado proliferam liceus e escolas superiores onde a qualidade de ensino não passa de uma miragem. O pior é que nenhum dos envolvidos parece muito interessado em mudar este estado de coisas. Os alunos não pedem muito rigor e trabalho, os professores desdobram-se em compromissos part-time e a sociedade aprendeu a valorizar conexões especiais para a ascensão social e na carreira em detrimento do mérito e profissionalismo. Sem o engajamento de todos, o investimento global da sociedade tem retornos decrescentes. Maus hábitos acumulam-se e reproduz-se uma cultura avessa a resultados reais e cada vez mais fixada em absorver meios e em debitar dados estatísticos para se autojustificar.

Há que romper este círculo vicioso. Do governo espera-se que consiga inspirar a nação no cultivo da excelência e a ver o seu futuro ligado ao nível de educação das suas gentes possibilitando conhecimento e formação em áreas de futuro e com futuro a partir de Cabo Verde. Competência linguística nos idiomas mais falados internacionalmente com também sólidos conhecimentos nas ciências e na matemática são objectivos a atingir. Formação em áreas de serviço como cuidados de saúde pode ser o suporte de estratégias futuras de desenvolvimento do país ao mesmo tempo que aumenta o valor do mercado daquele que pretenda emigrar. Qualquer que seja a opção formativa e de especialização é fundamental que o país tenha escolas e universidades academicamente sólidas, uma população culta e novas gerações ousadas no desbravamento do futuro.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 14 de Setembro de 2011

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Uma nova Era

A tomada de posse do Presidente Jorge Carlos Fonseca na sexta feira dia 9 de Setembro inaugura uma nova era nas relações entre o Presidente da República e os outros órgãos de soberania e demais instituições da República. Pela primeira vez Cabo Verde vai ter um presidente que se identifica completamente com a Constituição da II República e que se sente perfeitamente confortável com as atribuições e competências estabelecidas na Carta Magna. Será uma oportunidade única de desenvolver o cargo de PR de acordo com o figurino constitucional. E todas as instituições irão beneficiar com a exigência de agirem conforme o Estado de Direito de democrático.

O Dr. Jorge Carlos Fonseca em vários momentos defendeu publicamente o actual sistema de governo chamado de “parlamentarismo mitigado” contra argumentos à favor do reforço do poderes do presidente. Agora vê-se no cargo e certamente que em coerência não tentará ir além dos contornos da sua magistratura nem deixar-se ultrapassar. Por ai, fica assegurada a estabilidade politico institucional por todos desejada mas que alguns temiam por que o novo PR vem de uma outra corrente política.

A contenção no quadro do equilíbrio de poderes é benéfica. Potencia as virtualidades do sistema designadamente na garantia dos direitos dos cidadãos, na salvaguarda do pluralismo e na consecução da Justiça. Ainda impede concentração de poder numa pessoa só e evita tiranias da maioria. Com o partido no governo já no terceiro mandato e vários sinais complicados de autoritarismo e arrogância é de maior importância que a acção moderadora do presidente da república seja eficazmente sentida a todo o momento. No passado recente ocasiões houve em que o governo e a sua maioria impuseram a sua vontade por cima de normas existentes. A decisão do tribunal constitucional, anos depois, não obstou os prejuízos dos contribuintes com o pagamento de impostos ilegalmente lançados. Uma acção atempada do PR a pedir fiscalização preventiva da lei teria dissipado dúvidas e evitado perdas apreciáveis a consumidores e empresas.

O escopo de actuação do novo presidente vai alargar-se no sector de Justiça. Com a revisão da Constituição de 2010 o presidente deixou de nomear juízes. O PR passou a escolher o presidente do STJ de entre os juízes desse tribunal e a nomear o presidente do conselho superior de magistratura. Com esses dois actos o mais alto representante da nação relembra aos juízes que a justiça é feita em nome do povo. Exigem-se competência, celeridade e respeito pelos direitos para que a justiça não seja denegada e sirva a todos.

A adequação das forças armadas ao papel constitucional deverá ganhar um outro ímpeto. O presidente da república é o comandante supremo das forças armadas e preside o Conselho Superior de Defesa. Mostra-se fundamental a clarificação da missão das forças armadas de modo a evitar excessos, atitudes e posicionamentos pouco consentâneos com tradições republicanas. A nomeação de um novo Chefe de Estado Maior poderá ser uma oportunidade para se renovar a cultura militar num sentido que dignifica as forças armadas e assegura o cumprimento da sua função constitucional.

Com a posse do PR termina o ciclo eleitoral para os próximos cinco anos, um quinquénio que já se configura dificil, complicado e imprevisível nos seus contornos. O mundo hoje, dez anos após o ataque terrorista a Nova York e três anos a tentar escapar à Grande Recessão, está perante um ambiente complexo marcado por fenómenos tão diversos como crise da dívida soberana, aumento do desemprego estrutural na Europa América e nos Estados Unidos, emergência de novas potencias económicas e ameaças climáticas poderosas. Confrontar os desafios do futuro para melhor aproveitar as oportunidades que surgirem exige instituições maduras. Que a posse do novo presidente seja um passo significativo nesse sentido tão crucial para a Liberdade e prosperidade da nação.

Editorial do jornal expresso das ilhas de 7 de Setembro de 2011