segunda-feira, 25 de abril de 2022

Valorizar o capital humano só depende nós

 Há uma semana atrás o governo anunciou o investimento do Banco Mundial no valor de 26 milhões de dólares no projecto de Capital Humano. Para o Vice-Primeiro-ministro o financiamento vem no momento crucial quando o país saído da pandemia precisa apostar na formação e na inclusão.

O foco do Banco Mundial é reduzir a extrema pobreza e aumentar a prosperidade partilhada. Daí o projecto ter uma componente habitacional e outra de protecção social para além do que especificamente apresenta no sector da educação em matéria de reforma curricular, formação de professores e desenvolvimento de competências para a empregabilidade. A sensação de déjà-vu que acompanha esse tipo de cerimoniais faz pensar que mais se está a administrar uma espécie de paliativos para a situação sócio-económica difícil do que a romper com o círculo vicioso que impede resultados no desenvolvimento do capital humano à altura dos investimentos feitos.

Em 2019, já se tinha avançado com um projecto também do Banco Mundial de 10 milhões de dólares para a melhoria do sector da educação e formação. Outros projectos de vários milhões financiados pela cooperação internacional têm sido implementados ao longo de décadas. Anualmente fatias apreciáveis do Orçamento do Estado atingindo somas de mais de 10 milhões de contos em 2021, cerca de um quinto do total do OE, têm sido aplicadas no sector. Não obstante todo esse esforço, os resultados não têm sido os melhores. Segundo estudos feitos pelo Banco Mundial em 2019, Cabo Verde quando comparado com os países vizinhos destaca-se pela falta de capital humano com as competências alinhadas com as necessidades do mercado. Também foi em Cabo Verde entre os países da CEDEAO que as empresas apontaram a falta de capital humano qualificado como o maior constrangimento ao crescimento da economia e ao desenvolvimento.

Curiosamente Cabo Verde destaca-se ainda pela negativa por pertencer a uma pequena lista de países que não tem dados internacionalmente comparáveis de resultados de aprendizagem. É dos poucos países do mundo que não aparece no Índice de Capital Humano produzido pelo Banco Mundial. De acordo com o referido estudo do BM, foi em 2019 que através do projecto de melhoria da educação e formação se implementou um dos primeiros sistemas de avaliação nacional do ensino para leitura e matemática no 2º e 6º do ensino básico. A grande questão que salta logo à vista é como é que o país se permitiu investir tanto no sector da educação, incluindo não só verbas do Estado como também a contribuição financeira das famílias e o esforço e a expectativa dos pais e alunos, sem que se tenha procurado avaliar o grau de eficiência, qualidade e de satisfação com que todos esses recursos e toda a energia dos envolvidos estavam a ser aplicados.

Hoje é geralmente assumido que os recursos humanos constituem a base da riqueza das nações. Países podem ter mais ou menos recursos naturais e até estratégicos, beneficiar ou não de outros factores como geolocalização privilegiada ou ter uma história que lhes dificulta ou facilita na relação com o resto do mundo, mas todos têm um potencial a explorar e a expandir nas suas gentes. A rapidez e o nível de prosperidade que conseguirem atingir irá depender do investimento feito nos recursos humanos, em particular na qualidade do sistema de ensino a todos os níveis e no sistema de formação profissional. É isso que lhes permite adquirir conhecimento, aumentar a competitividade e produtividade e inovar nos produtos, processos e tecnologias para se desenvolverem e serem bem-sucedidos num mundo em que a economia cada vez mais se baseia no conhecimento.

Países pequenos e de sucesso como Singapura e Estónia e vários outros sem grandes recursos naturais são exemplos de uma aposta forte e mundialmente reconhecida na qualificação dos seus recursos humanos. Para um país como Cabo Verde a escolha devia ser óbvia até porque praticamente não tem outros recursos. Infelizmente ficou-se por uma visão estreita que acabou por se fixar na massificação do ensino e por se preocupar fundamentalmente com o acesso, seja no básico, secundário e universitário. De acordo com o estudo do BM, ao nível secundário não se deu suficiente atenção aos resultados da aprendizagem nem às taxas de repetência e de abandono escolar. Ainda segundo o documento o sistema de formação profissional é fragmentado e funciona movido pela oferta, mas sem estar alinhado com as oportunidades de emprego e a procura do mercado. A exemplo de outros sistemas ligados aos recursos humanos pouca atenção é dada aos resultados em termos de qualidade e empregabilidade afectando directamente os muitos jovens que não terminam o ensino secundário e procuram outras alternativas. E sem uma parceria estreita com o sector privado a formação profissional fica na dependência de doadores para a sua sustentabilidade.

A prioridade de Cabo Verde devia ser a qualidade dos seus recursos humanos e nesse sentido primar pela excelência do seu sistema de ensino. Aliás, é o que se esperaria quando se escolhe como patrono do Dia do Professor o doutor Baltasar Lopes da Silva. Seguindo o seu exemplo em toda a gente e especialmente entre os jovens e os professores devia-se cultivar o gosto pelo estudo e pela procura de conhecimento. Este sábado, dia 23 de Abril, Baltasar Lopes completaria 115 anos e certamente que lá do alto gostaria de saber que os professores não só lutam pelos seus direitos e respeitabilidade da sua profissão como se posicionam na linha de frente do combate pela qualidade do ensino em Cabo Verde. Um combate que incentive a excelência, tanto na prestação do professor como do aluno, valorize o mérito e contribua para inverter a falta de qualidade no ensino que, segundo o estudo do Banco Mundial, também resulta de níveis baixos de qualificações dos professores.

Neste dia 23 de Abril, que é também dedicado ao Livro, devia-se renovar o esforço para acabar com a situação que vem de há mais de quatro décadas em que as crianças e jovens mal fazem uso de manuais e livros nos seus estudos. Aliás, várias gerações de professores passaram pelos mesmos constrangimentos e não é de estranhar que continuando a existir carências de manuais, livros e bibliotecas o gosto pela leitura esteja em queda livre. Urge quebrar esse círculo vicioso porque sem hábito de leitura e de estudo não há como o país realmente desenvolver-se e prosperar recorrendo ao único recurso que realmente tem que sãos os seus homens, mulheres, crianças e jovens. Para fazer isso, a vontade é apenas nossa assim como a responsabilidade de a não fazer. Projectos e milhões podem ajudar, mas só se existir vontade e perseverança para seguir esse caminho e um sentido de dignidade para não continuar na dependência dos outros. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1064 de 20 de Abril de 2022.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Democracia vs. autocracia

 

A resistência corajosa do exército e da população ucraniana à ofensiva russa tem sido servido de inspiração para muitos que se revêem nos ideais da liberdade e da democracia.

Na sequência de invasão e com as manifestações de solidariedade sem precedentes com a Ucrânia renovou-se a convicção de que os países democráticos devem responder com firmeza às incursões agressivas das autocracias. Em alguns sectores mais optimistas até se considerou que com a nova euforia à volta dos valores democráticos mesmo nas democracias seria possível pôr um travão ao avanço de forças iliberais tanto da extrema direita como da extrema esquerda, algumas delas com ligações ao presidente Putin. As eleições recentes na semana passada na Hungria e na França vieram, porém, demonstrar que a realidade é mais complexa do que se pensa.

É verdade que sentimentos de indignação e de solidariedade por causa da guerra têm estado na base da unidade de propósitos das democracias em matérias como sanções económicas e financeiras, apoio aos milhões de refugiados e fornecimento em tempo de armas para conter o ímpeto russo e eventualmente empurrar as suas forças para além das fronteiras internacionalmente reconhecidas. Seria um desenvolvimento extraordinário que esses sentimentos também tivessem um impacto na política interna das democracias, quase todas elas, em maior ou menor grau, com sintomas de crise no quadro do que se convencionou chamar de recessão democrática. As eleições referidas, que na Hungria deram a Viktor Orbán a sua quarta maioria folgada e na França colocaram a candidata da extrema direita, Marine Le Pen na sua melhor posição de sempre para a conquista da presidência na segunda volta, vieram desfazer qualquer ilusão a esse respeito.

Também nos Estados Unidos o apoio ao partido republicano não parece ter sido beliscado pela proximidade de Putin a vários dos seus dignatários, a começar por Donald Trump, nem por posturas populistas que contribuem para descrédito das instituições como as evidenciadas na confirmação pelo Senado da Juíza Ketanji Jackson. São exemplos que contrariam a hipótese aventada por alguns analistas de que a solidariedade com a Ucrânia fosse o ponto de partida para um novo entusiasmo pelos valores liberais, reminiscente dos anos 1989-90 da queda do Muro de Berlim e do fim do império soviético, que contribuísse para pôr um travão à deriva populista nas democracias.

A crise da democracia e das suas instituições têm certamente outras causas que levam as pessoas a não se sentirem representadas e a se verem impedidas de uma participação efectiva. A frustração e o ressentimento que daí resulta torna-as alvo de discursos políticos que em regra trazem à baila humilhações imaginárias, fomentam sentimentos anti-elitistas, alimentam teorias conspirativas e xenófobas e fazem apologia do chefe único, autêntico e cuja vontade confunde-se com a vontade do povo. Não espanta, pois, que regimes autocráticos estejam em ascensão e que mesmo nas democracias derivas iliberais sejam tentadas.

Vários desenvolvimentos recentes como a globalização, as novas tecnologias de informação e comunicação e as redes sociais facultaram às pessoas plataformas para interagirem, se informarem, produzir informação e se associarem numa escala nunca antes atingida. Se em termos globais os resultados da globalização têm sido extraordinários na diminuição do número de pobres e no aumento da riqueza produzida, a verdade é que tem aparecido disparidades enormes tanto à escala mundial como nacional e local. O resultado para uns tem sido degradação dos níveis de vida com diminuição do estatuto social e baixa de expectativa em relação ao futuro. Para outros é a marginalização económica e social com risco de serem apanhados nos círculos viciosos da pobreza e pobreza extrema. Ainda para muito poucos tem sido o acumular de uma fatia muito grande da riqueza nacional aumentando a desigualdade social e pondo em causa o contracto social.

O mal-estar, malaise, que é criado depois contribui para a violência social, a criminalidade, a corrupção, o cinismo na política e finalmente o descrédito das instituições. Aparentemente nem a situação de crise existencial como foi recentemente a pandemia da covid-19 consegue mobilizar a energia colectiva necessária para a ultrapassar com o menor custo possível. Em países como os Estados Unidos da América com quase um milhão de mortes em cerca de seis milhões em todo o mundo viu-se como a desinformação desenfreada, atitudes anti-ciência, boicotes de instituições, partidarização do uso de máscaras, teorias de conspiração contra vacinas terão contribuído para o que claramente configura como um numero excessivo de mortes. Ciente dessa situação certos países autocráticos fazem apologia do seu sistema político, supostamente mais eficientes e mais capazes na gestão das crises. Mesmo nas democracias já há forças políticas que abertamente clamam por restrições de direitos, limitações na independência da justiça e maior escopo de acção das forças de segurança para restaurar a ordem ou mesmo a “civilização”. Putin é popular nesses círculos.

Também em Cabo Verde os efeitos da crise da democracia se fazem sentir. Nota-se a erosão das instituições com particular enfoque no parlamento, mas afectando em maior ou menor grau os outros órgãos de soberania e as câmaras municipais. As crises sucessivas, as persistentes vulnerabilidades do país e a crescente dependência do Estado não favorecem um ambiente propício para se reverter a situação. Aos partidos políticos do arco do poder cabe uma maior responsabilidade. O problema é que afectados pelo populismo prevalecente dificilmente terão energia, motivação e foco para fazer o caminho inverso.

O PAICV provavelmente ciente que os desaires eleitorais em boa medida se devem a opções populistas na formulação de políticas e na escolha de dirigentes no seu congresso da semana passada optou por uma política mais conciliatória considerando os extraordinários desafios do país e uma nova abordagem na composição dos seus órgãos dirigentes. A recusa do presidente da câmara municipal da Praia em participar nos órgãos do partido assim reformulados poderá sugerir outros entendimentos e futuros problemas considerando que as eleições autárquicas em 2024 precedem as legislativas de 2026.

O MpD enquanto partido do poder estará sujeito a uma maior pressão para defender a sua actual maioria autárquica e concorrer para um terceiro mandato. Dificilmente a tendência será de mudar o que já existe. Quaisquer alterações de fundo provavelmente irão acontecer na convenção posterior às autárquicas de 2025 e não em 2023. De outros partidos, como a realidade eleitoral do país já demonstrou, fica-se em geral pelo mimetismo do que já se viu em política populista e se assistiu em alguns países.

O grande problema é que Cabo Verde com as incertezas actuais, a pesada dívida pública e os efeitos de crises sucessivas, seca, covid-19 e alta de preços de energia e alimentos não pode esperar para 2026 para melhor se ajustar para enfrentar os desafios. O caminho passará por aprofundar a democracia consciente de que há mais “que nos une do que o que nos separa”. Deriva autocrática é que não é solução. Os primeiros quinze anos de país independente foram elucidativos a esse respeito. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1063 de 13 de Abril de 2022.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Segurança, um activo estratégico

 

Na semana passada no âmbito de um seminário sobre “operações especiais de prevenção criminal” a Polícia Nacional veio confirmar a percepção de insegurança sentida no país e em particular na Cidade da Praia no ano de 2021. Segundos os dados apresentados pela PN, a criminalidade aumentou em cerca de 33% em relação ao ano 2020.

As razões, de acordo com o ministro da Administração Interna, têm a ver com “a retoma da vida social e económica e o aumento da conflitualidade social”. Entretanto, não se explicita que mecanismos, ambientes ou lugares são os mais propícios ao crime e como combatê-lo para evitar que o regresso a uma certa normalidade não se traduza logo no aumento da criminalidade.

Na comunicação feita ao público, as autoridades trouxeram à baila, talvez pela primeira vez, o papel das armas em circulação no país como um dos factores facilitadores do crime. O Procurador-Geral da República na sua intervenção considerou que o número de ocorrências criminais com armas de fogo é preocupante pela dimensão destas cidades e pelas dimensões do país. Dias antes, a 27 de Março, dois polícias tinham sido baleados quando responderam a uma ocorrência num dos bairros da capital. Na população há muito que existe a percepção do risco acrescido representado pelo uso de armas de fogo nos assaltos e em outros crimes. Não se viu ao longo dos anos o que deviam ser acções efectivas das autoridades em retirar armas da circulação. Menos ainda foi visto um esforço legislativo, regulamentar e operacional para desarmar a população a exemplo do que outros países fizeram quando confrontados com ondas de criminalidade violenta.

É notório o desencontro entre os dados oficiais da criminalidade e a percepção de insegurança pelos cidadãos. As pessoas sentem que há mais assaltos com armas de fogo, mas dos dados apresentados fica-se a saber que “no ano findo a PN apreendeu menos 81 armas artesanais do que em 2020, menos 69 armas convencionais e menos 5.660 munições”. Diz-se que os actuais dados da criminalidade, como que a contramão, interromperam o “ciclo de cinco anos (2016 a 2021), em que consecutivamente se registou diminuição acentuada das ocorrências criminais no país”. A realidade é que a percepção de insegurança persistiu ao longo dos anos com picos, por exemplo, em 2019 que levaram o então Presidente da República a chamar a atenção das autoridades no Dia de Defesa Nacional e na mensagem de Ano Novo para a necessidade de restaurar a tranquilidade e obrigou a embaixada americana a alertar os cidadãos americanos para o aumento de assaltos na Cidade da Praia.

Perante mais um aumento da criminalidade no país não se pode ficar pelo simples aprimoramento das abordagens anteriores que até agora não conseguiram diminuir a sensação de insegurança das pessoas. Segundo o ministro da Administração Interna, pretende-se pôr um foco nas operações especiais de prevenção criminal no quadro de uma estratégia de “frente e inovadora”, visando, sobretudo, a questão que tem que ver com as armas. Para o bem de todos é de desejar que desta vez tenham boa sorte em pôr em prática a estratégia. Um bom começo foi o encontro organizado para discutir essas operações especiais de prevenção do crime em que participaram magistrados do ministério público e magistrados judiciais. Espera-se que depois a responsabilidade pela insegurança não fique diluída nas justificações do tipo a polícia prendeu, mas o tribunal pôs em liberdade. Cabo Verde é um Estado de Direito democrático e todos querem ter a garantia que a polícia actua de acordo com a lei e no estrito respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e que os tribunais são independentes na administração da justiça.

A verdade é que ambientes facilitadores de crimes são por natureza complexos e nem sempre susceptíveis de serem tratados com certas abordagens policiais que fazem lembrar tácticas militares e provocam reacções negativas das comunidades. Em muitos casos depois de megas operações policiais não se vêem apreensões de armas ou de outros produtos ilegais e não se fazem prisões que justifiquem o aparato. A repetição dessas operações agrava a situação porque como não há colaboração das pessoas, não há trabalho prévio de inteligência e os eventuais infractores conseguem escapar, enquanto outras pessoas inocentes são apanhadas na rede e ficam ressentidas com buscas e inquirições que consideram despropositadas.

Constatações similares foram feitas noutras paragens a partir da implementação das políticas de tolerância zero ou da teoria de “broken-window” que levaram a situações de abusos de pessoas e hostilidade das comunidades visadas. Hoje, procura-se fazer uma intervenção mais compreensiva que não fica pela acção policial, envolvendo outras entidades, designadamente o poder local, a sociedade civil e também a própria comunidade. É entendimento de muitos que indo por essa via a acção policial na prevenção do crime ganharia muito em eficiência e eficácia. Os recursos são limitados e nem o uso da tecnologia via sistemas de videovigilância sofisticados pode compensar por deficiências de organização, de estratégia e de colaboração voluntária da comunidade e de outras entidades.

A segurança é um bem necessário e um activo estratégico para o desenvolvimento. Depende essencialmente da vontade do país para ser garantido. Recursos substanciais têm sido investidos no sector sem que haja diminuição da percepção de insegurança da população em particular nos centros urbanos. Com as incertezas do mundo actual o futuro vai depender muito da capacidade de se conseguir realizar o sonho de ter um país de paz e morabeza e aberto ao mundo. Para isso impõe-se uma maior atenção em relação à qualidade dos investimentos e à escolha dos objectivos e prioridades para o sector. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1062 de 6 de Abril de 2022.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Visão e perseverança

 

Os efeitos da guerra na Ucrânia já se fazem sentir terrivelmente nos preços de todos os produtos a começar pelos combustíveis e bens alimentares. Inaugura-se um novo período de preços voláteis em produtos essenciais devido a tensões geopolíticas e a escassez no mercado a ponto de ruptura de stocks por razões que têm a ver com a diminuição da oferta na origem e por constrangimentos logísticos no transporte e na distribuição.

A tendência para o aumento dos preços já vinha do período da pandemia da covid-19. A guerra, as sanções económicas e financeiras e as tentativas de isolamento da Rússia só a agravou. A crise económica assim gerada tem uma abrangência tal que não deixa nenhum país incólume. Num pequeno país insular e arquipelágico os efeitos tendem a multiplicar-se ainda mais.

Reconhecendo a nova realidade, o governo tomou algumas medidas para diminuir o impacto da subida dos preços dos produtos petrolíferos e alimentares entre as quais a suspensão temporária do mecanismo de fixação de preços dos combustíveis entre Abril e Junho. Nesse período vai-se manter o preço do gás butano e do combustível para a produção de electricidade, enquanto os outros produtos ficarão sujeitos a ajustes até 5%. Já na resposta à alta de preços devido à pandemia já se tinha tomado medidas no sentido da baixa do IVA para energia de 15% para 8%, e de majoração às empresas em 30% dos custos de energia e água e aumento da tarifa social de 30 para 50%. Não se sabe é até quando esta conjuntura de alta de preços vai durar e se haverá recursos que permitirão por tempo mais longo amortecer o choque do aumento dos preços.

Na resolução do governo está-se a contar com alguns mecanismos de compensação para o diferencial entre o preço real e o praticado incluindo impostos e eventual escalonamento e diluição do remanescente a pagar em doze meses. Prevêem-se outras medidas se não houver uma mudança da conjuntura, mas dificilmente vai-se evitar que os aumentos de preços, a persistiram, não serão repassados para os consumidores, afectando a economia no seu todo e diminuindo o poder de compra das populações. A questão que agora se coloca – perante o que claramente se configura como um choque externo que vem em cima de um outro, a pandemia da covid-19 – é em que medida o país se tem preparado para esse tipo de contingências.

É verdade que não era fácil prever a invasão da Ucrânia e o seu impacto no mundo, mas de há muito que se sabe da transição energética que deve ser feita para que as alterações climáticas já manifestas não ganhem proporções catastróficas. Noutros países esse processo é extremamente complexo e com passagens faseadas de carvão ou fuel para gás natural e depois para as energias renováveis. Em Cabo Verde, com o potencial existente na energia o solar e na eólica e a menor dependência numa industrialização de base em combustíveis fósseis, o processo poderia talvez ter sido mais directo e expedito. Vários foram os projectos virados para uso e exploração da energia do sol e do vento que tiveram financiamento ao longo de décadas. Os resultados é que são diminutos em relação aos investimentos feitos.

Segundo o governo, as renováveis constituem 18% da energia actualmente disponível, mas com os financiamentos já acordados com o Banco Mundial espera-se 30% em 2030, e a partir de 2030, 50%. Não se pode dizer que o que existe actualmente e mesmo o que se projecta para o médio prazo seja uma posição adequada ou confortável em termos energéticos, em particular para fazer face a eventuais choques externos. Faz falta uma estratégia clara e assumida por todos para se conseguir a maior independência energética possível. De há muito que isso devia ser óbvio, considerando os preços extremamente altos da energia que enfraqueçam o poder de compra das pessoas e que aumentam os custos das empresas e diminuem a competitividade do país. Acrescenta-se a isso o facto de a transição energética para as renováveis ser algo globalmente incontornável e quem primeiro por aí enveredar mais possibilidades teria de aproveitar as oportunidades abertas no novo mercado energético.

Não agindo de forma compreensiva para as energias renováveis acaba-se por ficar com uma espécie de manta de retalho de projectos que não “somam” para dar o resultado que devia ser expectável de tantos milhões gastos. Em 2010 foram cerca de 30 milhões de euros de uma linha de crédito português que foi investido em parques solares na ilha do Sal e em Santiago. Deviam “produzir 4% do total da energia que existe na rede, mas está a produzir cerca de 1,5% para rede” segundo o então director do CERMI numa entrevista a este jornal em Setembro de 2017. A Cabeólica que segundo o ministro da Indústria e Energia é responsável por quase 20% da energia consumida na rede tem parques eólicos em Santiago, S. Vicente, Sal e na Boa Vista e funciona com um contrato “take or pay” que muitos consideram oneroso para a Electra. Na comemoração dos seus dez anos não se ficou a saber se vai investir para alargar ou criar mais parques eólicos ou se vai continuar com o mesmo contrato, não obstante os efeitos da pandemia na economia e a alta de preços dos combustíveis fósseis. Até agora o consumidor cabo-verdiano ainda não sentiu os efeitos dos investimentos feitos nas energias renováveis nos preços de electricidade.

Também quando não há essa perspectiva abrangente fica-se com um handicap duplo. Nas negociações com os parceiros a tendência é para adoptar a agenda e as prioridades que acompanham a promessa de financiamento sem a devida interligação e encadeamento com o já existente criando ineficiências várias. Por outro lado, sem uma visão própria não se contempla soluções a partir de uma gestão criteriosa de recursos próprios como por exemplo quando a cooperação luxemburguesa teve que financiar painéis fotovoltaicos no valor de cerca de 15 mil contos para que a Assembleia Nacional pudesse poupar 27% da sua factura de energia eléctrica. O uso generalizado de energia fotovoltaica nos serviços do Estado há muito que deveria ter sido feito e com recursos endógenos. Afinal, os serviços funcionam principalmente durante o dia quando o sol brilha e os painéis podem produzir electricidade suficiente para as necessidades das instalações.

Os ganhos teriam sido múltiplos e transversais como por exemplo na factura paga à Electra que diminuiria, nos postos de trabalho para instalação e a manutenção que seriam criados para os jovens formados no CERMI e noutros centros em todas as ilhas e, possivelmente, em menos combustível importado. Considerando ainda o peso do Estado nas compras de painéis solares talvez outras entidades e particulares interessados acabassem por ser beneficiados com preços mais baixos desse tipo de equipamento. O exemplo do parque fotovoltaico da Caixa Económica que em seis meses poupou mil contos na factura da Electra como veio em 2019 relatado neste jornal é ilustrativo a este propósito. Não se tinha, de facto, de esperar por um projecto do Banco Mundial para fazer, com recursos próprios e para criar poupanças múltiplas e dinamizar uma actividade com futuro, o que há muito se deveria ter encetado em nome de mais segurança energética para o país e de uma energia mais barata para todos.

Como nas energias renováveis, também noutros sectores o país precisa engajar-se com agenda própria e prioridades bem definidas. Em certos domínios como segurança, educação com qualidade e sistema de saúde competente e eficaz, que são pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento do país, nada pode substituir a vontade própria da nação e dos seus governantes em conseguir resultados significativos e sustentáveis. Ter visão própria e ser perseverante é fundamental para vencer a batalha do futuro nestes tempos de incertezas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1061 de 30 de Março de 2022.