quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Não se pode privatizar o Estado



A igualdade dos cidadãos perante a lei é uma das grandes conquistas da democracia e do estado de direito. Segundo o artigo 24º da constituição, ninguém pode ser beneficiado ou prejudicado por razões designadamente de raça, género, origem, religião ou convicções políticas e ideológicas. A administração pública do Estado em particular deve tratar com isenção e imparcialidade os utentes. Em nenhuma situação os recursos públicos e o poder do Estado deverão ser colocados ao serviço de grupos. Não se pode privatizar o Estado.


Apesar dos 22 anos de democracia, persistem em Cabo verde sinais de uso ilegítimo dos recursos do Estado para benefício de alguns. Nos momentos eleitores chovem denúncias vindas das forças da oposição que dão conta desses abusos. Nas eleições presidenciais denúncias do mesmo teor vieram mesmo de dentro do partido no governo. Círculos próximos de uma das candidaturas não deixaram dúvidas quanto a casos de favorecimento da outra próxima do chefe do governo e quanto a ameaças de represálias dirigidas a seus apoiantes. A partidarização do Estado é assumida pelo próprio chefe governo com o discurso de há que acabar com os “jobs for the boys and girls”. Nos períodos eleitorais são notórios os casos de directores gerais, de presidentes de institutos e de administradores de empresas públicas que se candidatam a deputado pelo partido no governo.


A ideia da coisa pública e do interesse público parece não ter ainda criado raízes profundas. Razões para isso provavelmente serão encontradas no processo de criação do Estado logo após a independência. No regime de Partido/Estado não havia muitas distinções entre o Estado e o partido. O partido geria os recursos do Estado como lhe convinha. Era a força dirigente da sociedade e do Estado. Os funcionários prestavam provas de conhecimento do programa partidário e juravam fidelidade ao partido. Ultrapassar a cultura organizacional diligentemente construída durante esses quinze anos e induzir uma atitude de servidor público a milhares de funcionários não podiam ser tarefas fáceis nem rápidas. É evidente que, mesmo em democracia, ir-se-ia manter, por muito tempo, o risco de, face a estímulos bem precisos, se regressar aos maus costumes de favorecimento de correligionários e de punição de adversários políticos.


Sentiu-se o velho impulso de discriminação na discussão no parlamento dos estatutos dos combatentes da liberdade da pátria, uma proposta de lei do governo. Só foram considerados presos políticos os que foram presos durante o regime colonial. Os que também por razões políticas foram presos, torturados e condenados durante a ditadura do partido único não foram considerados merecedores, como os outros, da solidariedade da nação cabo-verdiana na forma de uma pensão mensal de 75 contos. A lei, em 2013, optou por seguir as restrições impostas originariamente em 1989 nos estatutos para uma pessoas se qualificar como combatente. Naturalmente que na época o partido único não ia reconhecer os adversários políticos que mandara prender. Estranho é que mais de vinte anos, e já na democracia, haja quem não os continua a reconhecer e, agora, com o poder do Estado nas mãos continue a privá-los de qualquer compensação pelos males sofridos.


Na lei de nacionalidade, ainda em discussão no parlamento, pode-se notar a canalização de recursos públicos para alguns seguindo critérios não conformes com o princípio constitucional da igualdade. Da leitura da proposta fica-se a saber que no estrangeiro há detentores de passaportes cabo-verdianos que não têm nacionalidade e não estão inscritos na Conservatória dos Registos Centrais. Em nenhum momento o governo explica como nas embaixadas e consulados se deixou a administração do Estado contornar a lei e emitir passaportes a quem não tinha preenchido todos os requisitos legais. Nem dá a conhecer qual foi a motivação para um acto tão grave e se realizaram inquéritos para apurar responsabilidades. Limita-se a propor que se passe uma esponja como se nada tivesse acontecido. A gravidade do acto, porém, mantém-se. Não se pode esconder que a posse de passaportes nacionais, entre outras regalias, habilita ao voto nas eleições legislativas e nas eleições presidenciais. Em mãos erradas ou comprometidas podem ser instrumentos de fraude eleitoral e de fragilização da legitimidade democrático do poder político no país. É algo muito sério.


A forma como se faz política em Cabo Verde dá a impressão que nem os princípios e valores da constituição são definitivos e que tudo continua em conflito permanente. Justifica-se o partido único, diminui-se a democracia, lança-se a década de noventa contra décadas anteriores e posteriores e evocam-se adversários antigos para melhor apresentar-se como vítima e impedir compromissos e normalidade democrática. Em tal ambiente é difícil o Estado,a administração pública e seus funcionários manterem-se isentos e imparciais e virados essencialmente para a consecução do interesse público. Romper o ciclo vicioso é fundamental para que o Estado deixe de servir interesses específicos, privados, em detrimento do interesse público.


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 27 de Novembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Tapar o sol com a peneira



A Sra. Ministra de Finanças, na semana passada, num seu tom característico de quem estava a dar uma grande novidade ao país, revelou que a TACV constitui um “grande risco fiscal” (orçamental). Logo de seguida passou a enumerar as medidas já prontinhas que de imediato irão ser tomadas para sanar a situação. Até parece que os problemas da transportadora aérea são de hoje e que perante eles o governo vai reagir em tempo, com firmeza e celeridade. A realidade, como todos sabem, é completamente outra.


De há muito que existe um entendimento oficial, apoiado pelo Banco Mundial, de que a TACV deve ser privatizada. Com a privatização previa-se imprimir uma nova dinâmica à empresa e evitar que se tornasse uma futura carga para os contribuintes. O Governo, porém, talvez por razões ideológicas, nunca quis seguir esse caminho. Passaram os anos, as dificuldades da empresa cresceram não obstante os sucessivos conselhos de administração nomeados. Em Junho de 2009 o FMI fez uma forte chamada de atenção ao governo em relação ao risco orçamental que as grandes empresas estatais, em especial à TACV e a ELECTRA representavam. O Governo prometeu então, também em tom energético, tomar medidas. Hoje é o que se vê: A ELECTRA para resolver os seus problemas aplica preços de energia dos mais caros do mundo; a TACV debate-se com enormes constrangimentos. Ninguém deve mostrar-se surpreendido. Está-se a colher o que foi semeado.


O governo esforça-se por apresentar a situação actual de crescimento raso e desemprego elevado como efeito de forças exteriores que escapam ao seu controlo. Assim como não assume que o facto de não ter privatizado a TACV e de ter renacionalizado a ELECTRA contribuiu em grande medida para a situação actual das duas empresas e também não reconhece que não se precaveu devidamente para a diminuição da ajuda externa, no fim do período de transição para país de rendimento médio. A realidade é que com ou sem crise internacional haveria quebra nos donativos e empréstimos concessionais. Por isso, a queda em 45% da ajuda orçamental, anunciada também pela ministra, não deve constituir surpresa.


Um governo mais prudente faria a sua estratégia passar pela melhoria da competitividade externa e do ambiente de negócios na perspectiva de reorientar a economia para exportação de bens e serviços e atrair investimento directo estrangeiro. Os fluxos gerados substituiriam as transferências no âmbito da ajuda externa. Os índices baixos de Cabo Verde nos relatórios da competitividade do Fórum Económico Mundial e no Doing Business do Banco Mundial dão conta dos esforços insuficientes do governo nessas matérias. Agora culpa-se a crise mas é facto que a crise actual não significa falta de dinheiro. O capital está ai, porém só se move para onde pode extrair retornos aceitáveis.


O Orçamento do Estado começa a ser discutido no Parlamento a partir de quinta-feira e o mais provável é que se vá continuar a tentar tapar o sol com a peneira. Tudo indica que, a exemplo do que se passou na execução do Orçamento do Estado de 2013, uma boa parte do previsto em investimento e despesas várias não se vai concretizar. Em ambiente de abrandamento da dinâmica económica dificilmente se conseguirão receitas suficientes para equilibrar as contas. Seria de esperar que nesta fase, em que já se atingiu os limites do endividamento público, o investimento privado substituísse o investimento do Estado. Mas o estado do sector privado nacional, paradoxalmente exangue no fim de um programa de centenas de milhões de contos na infra-estruturação, impede-o fazer. Segundo o último Relatório da Política Monetária do BCV, os bancos estão relutantes em dar crédito aos privados. Percebem que há riscos macroeconómicos derivados da dívida elevada e dos défices públicos e preferem emprestar ao Estado via títulos e bilhetes do Tesouro em vez ceder crédito para a habitação, para o consumo e para o investimento a indivíduos, famílias e empresas.


A situação difícil em todas as ilhas mas principalmente as como S.Vicente e Sal, mais abertas ao exterior, não parece alarmar o suficiente o governo. Prossegue impávido com as mesmas receitas políticas que até agora falharam nas transformações prometidas. A propensão por medidas avulsas e de impacto popular imediato dificulta uma actuação compreensiva e estratégica da governação que melhor habilitasse o país a confrontar os desafios actuais e do médio e longo prazo. A atitude dos governantes que mais conviria ao país neste momento devia ser aquela que fizesse dos níveis de emprego, de rendimento e de qualidade dos seus concidadãos a bitola para se sentirem legitimados e gratificados no seu trabalho.


Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 13 de Novembro de 2013 Humberto Cardoso

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Incongruências

O discurso do governo sobre os clusters é do mais desconcertante. Começou por propor quatro (mar, aeronegócios, tecnologias de informação e comunicação, praça financeira), depois acrescentou mais três (agronegócios, energias renováveis e turismo). Nenhum se constituiu até agora e parece que um já ficou pelo caminho, a praça financeira, no meio das atribulações que vieram a público sobre os bancos offshore e a Bolsa de Valores. Mas os governantes em cada inauguração de alguma infra-estrutura não se cansam de anunciar o progresso futuro que virá da dinâmica dos clusters. Não se tem é notícias das empresas privadas que iram constituir os clusters e da procura externa de bens e serviços que justificará a existência, a sustentabilidade e a dinâmica deles.

No outro dia, o Primeiro Ministro numa visita ao porto da Praia considerou que o investimento que está a ser feito “é um passo firme na efectivação do cluster do mar a partir da cidade da Praia”. Uma afirmação algo estranha considerando que a localização geográfica é chave para a constituição de clusters e S. Vicente tem sido apresentado como a base do futuro cluster do mar. Aliás foi com essa justificação que se instalou o Núcleo Operacional dos Assuntos do Mar na ilha e se transferiu a sede da Guarda Costeira. Tendo S. Vicente as suas próprias instalações portuárias não fica muito claro como é que investimentos no porto de outra ilha irão potenciar a actividade das empresas aglutinadas à volta do Porto Grande.

Clusters, de acordo com Michael Porter, são constituídos por empresas que interligam entre si num misto de cooperação e competição que lhes permite responder como eficiência e efectividade às necessidades dos mercados. São marcados pela geografia na medida em que se localizam onde há muito do chamado conhecimento táctico acumulado ao longo de gerações nas pessoas e as instituições. Lugares onde se desenvolveu uma cultura de confiança e de conhecimento mútuo que permitem trocas de conhecimento formais e informais, que facilitam a inovação e o empreendedorismo e que favorecem o gosto pelo risco.

Por estas e outras razões não se criam clusters a belo prazer de quem governa. Casos de sucesso não são muitos e clusters que conseguem impor-se e prosperar como Silicon Valey, Route 128 em Boston, Hsinchu park em Taiwan, Silicon Wadi em Israel e Daedeok Park na Coreia do Sul não foram criados pelo governo. As probabilidades de insucesso aumentam sempre que o processo é dominado pela retórica do tipo que faz tradução directa de barragens em agro-negócios, de aerogeradores entregues chave na mão em cluster de energias renováveis e de mais betão nos portos em cluster do mar.

Abundam exemplos um pouco por todo o mundo de muitos milhares de milhões gastos em parques tecnológicos, parques industriais que depois são abandonados sem que as promessas anunciadas com pompa e circunstância nos lançamentos da primeira pedra e nas inaugurações se concretizassem. Erros do género repetem-se porque para muitos governos é mais fácil mostrar betão, obras grandiosas e infra-estruturas futuristas. E como não as conjugam com as reais vantagens do país e não as fazem acompanhar de investimento sério nas pessoas e instituições em conhecimento, em capital social e numa nova atitude perante os desafios do mundo moderno transformam-se em dívida pesada e em símbolos da frustração crescente da população.

No mundo de hoje a presença forte e diária dos governantes na comunicação social faz com que muitas vezes a governação se transforme num exercício de relações públicas, de ilusionismo e em certos momentos de manipulação pura. Uma deriva desta natureza sempre que se verificar deve ser combatida pelos próprios políticos com sentido de Estado e de responsabilidade mais apurado e pelos cidadãos e pela sociedade civil com uma vigilância activa mais activa da vida política nacional.

Cabo Verde, um micro Estado de parcos recursos, tem que saber arrepiar caminho e não persistir no erro e nas falhas na implementação de políticas. Paga-se caro a arrogância nas questões públicas. Por outro lado, tem que saber reagir com vantagem às mudanças constantes que se verificam no mundo e não deixar-se seduzir por ilusões que podem dar conforto no momento mas não trazem prosperidade nem felicidade.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 13 de Novembro de 2013