sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Qualidade. Debate sempre adiado

Educação foi mais uma vez tema de debate no Parlamento. Desta feita foi no âmbito da interpelação ao governo visando confrontá-lo com as suas promessas eleitorais. A opção do governo pelo estudo das línguas, das ciências, das tecnologias e da matemática como via de se chegar a uma economia de conhecimento foi aflorada durante a interpelação, mas rapidamente deixada para trás. Matérias com maior impacto político designadamente carreira e contractos dos professores, bolsas de estudo para os jovens, isenção de propinas e problemas salariais das cozinheiras das cantinas acabaram por monopolizar as atenções e exacerbar as opiniões. Depois disso não ficou muito espaço para se discutir a educação que realmente o país precisa para construir um futuro de desenvolvimento.
É hoje ponto assente a importância central da educação em qualquer estratégia de desenvolvimento, particularmente quando o ponto de partida é o de um país pequeno insular e com uma economia ainda dependente da generosidade internacional. Países pequenos e/ou insulares que se têm distinguido na corrida para o desenvolvimento posicionam-se todos como países de top nos rankings internacionais no domínio da língua, das ciências e da matemática. Nos testes do PISA, Singapura, Macau, Irlanda, Finlândia e Estónia estão entre os que mais brilham. O caso de Singapura, que com somente dez anos mais de independência do que Cabo Verde conseguiu erguer-se para os primeiros lugares, apesar das enormes dificuldades, entre as quais ser uma sociedade constituída por três grupos étnico-linguísticos, devia interpelar a todos.
Em Cabo Verde, ao longo de décadas investimentos importantes foram feitos na educação pelo Estado e pelas famílias, mas os resultados ficaram muito aquém do desejado e do prometido. Quando os lugares no Estado começaram a escassear e a economia não se mostrou capaz de absorver os que das escolas saíam para o mercado de trabalho devia-se ter concluído que o país tinha ido pelo caminho errado. Em vez de focar na educação, como fez a Singapura, para desenvolver a economia e elevar a qualidade de vida e os rendimentos das pessoas, só se viu na educação um meio para mobilidade social via preenchimento de lugares no Estado. O país não ficou mais competitivo, os postos de trabalho que obteve a partir do capital externo são em geral dos mais básicos nos hotéis e nas fábricas e não conseguiu criar nem acumular capacidade intelectual, criativa e empresarial satisfatória. Em consequência, o desemprego manteve-se alto e a mobilidade social diminuiu, aumentando as desigualdades sociais.
Na implementação de políticas de educação a preocupação maior tem sido na massificação do ensino. Nos primeiros 15 anos o foco manteve-se no ensino primário. Nos anos noventa passou para o secundário e proliferaram liceus por todo o país. Na última década o país passou a gabar-se de ter dez universidades. E não se quer ficar por aí. De todas as ilhas vêm revindicações de  autarcas e políticos locais para se criar escolas superiores. Aparentemente a democratização do ensino continua a trazer ganhos políticos. A luta pela qualidade do ensino é que nunca conseguiu granjear apoio sustentado. 
Intermitentemente há declarações públicas a chamar a atenção para a qualidade mas, em geral, não passa disso. Enquanto noutros países no fim do ano lectivo a sociedade e a comunicação social engajam-se na avaliação dos resultados aqui dificilmente consegue-se acesso aos dados e a apreciação final normalmente deixada para o início do novo ano escolar é quase sempre superficial e sem consequências. Privilegiam-se as inaugurações, entregas de kits e iniciativas controversas como o ensino bilingue e estudos de empreendedorismo. Qualidade como Singapura demonstrou depende muito de se ter um bom e motivado professor. Daí o grande investimento da Cidade-Estado na qualificação dos seus professores e o esforço dirigido para elevar o prestígio e o estatuto social da profissão de forma a atrair os melhores.
Em Cabo Verde discutir a qualidade de ensino pode facilmente levar a acusações de que se está a atacar os professores. Não é por acaso que qualquer debate sobre educação acaba por exclusivamente incidir sobre questões sindicais e de carreira dos professores ficando de lado a questão da qualidade. Ninguém quer perder no jogo de arremesso político que pode surgir da discussão. Todos porém acabam por perder porque nada de substancial se altera, ficando a percepção geral aquela já manifestada pelo presidente da república da “qualidade insatisfatória global do nosso sistema de ensino”.   
A par da falta da qualidade no ensino, também se constata a sua inadequação em relação às necessidades do mercado. O número crescente de licenciados desempregados que se juntam aos jovens saídos do secundário e que não encontram ocupação é prova disso. Não poucas vezes criam-se cursos por expedientismo, pelo prestígio ou porque é lucrativo. Envereda-se por exemplo pelo curso caro de medicina quando cursos de enfermagem e em geral de serviços auxiliares de saúde são de grande procura mundial e de possível articulação com uma estratégia de turismo de saúde. Dispersam-se os estudantes por disciplinas de valor prático duvidoso quando menos horas são dispensadas nas ciências e matemática e não se promove o ensino de programação, o “code” que é universalmente reconhecido como base de várias profissões com futuro. Deixam-se perder competências e capacidade em formação designadamente no domínio do mar que depois fazem falta e não potenciam vantagens competitivas que o país angariou ao longo dos tempos e que continuam relevantes hoje.
Articular educação, economia e desenvolvimento revela-se cada dia mais crucial na vida das nações. Também em Cabo Verde devia ser a via privilegiada para um futuro de prosperidade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 791 de 25 de Janeiro de 2016.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

2017 em perspectiva

Depois de 2016 que foi um ano improvável tudo aponta que 2017 será um ano de incertezas. No calendário começou há duas semanas, na realidade vai começar a delinear-se a partir de 20 de Janeiro com a tomada de posse de Donald Trump no cargo de presidente dos Estados Unidos da América. A vitória inesperada do sim no referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia e posteriormente a vitória de Trump sobre Hillary Clinton contra todas as previsões provocaram uma desorientação geral. A perspectiva de ter um presidente na Casa Branca diferente de qualquer outro que alguma vez exerceu tal cargo num tempo em que tanto no mundo depende da América é fonte de muita ansiedade em todos os continentes.
Muito do que antes se tomava como garantido nas relações internacionais e em termos comerciais e de segurança das nações de repente já não parece tão certo. A nível nacional a dificuldade em fazer previsões, em antecipar acontecimentos e em reconhecer sentimentos e paixões fortes de parte significativa da população puseram em estado de crise os mídias, observadores diversos, empresas de sondagem e as elites. Aperceberam-se do golfo profundo que as separava do homem e da mulher comuns. Nas instâncias supranacionais e em particular na União Europeia deu-se conta de que as populações nos estados nacionais ressentem-se do poder emanado de Bruxelas e que estão ávidas de reivindicar para si outra vez o poder de decidir o seu próprio governo, quais sãos as prioridades a seguir e qual o caminho a percorrer até à prosperidade. Não é à toa que slogans como resgatar glórias passadas ou imaginadas, proteger-se de fluxos de refugiados, precaver-se contra imigrantes e repor valores antigos e cristãos têm sido altamente mobilizadores  em vários países da Europa mas também no Estados Unidos, no Brasil, no resto da América Latina e mesmo em África. Por todo o lado propõe-se fazer o respectivo país grande outra vez.
A emergência de Trump na cena mundial já se mostrou transformacional e ele ainda não tomou as rédeas do Poder. Parafraseando Marx tudo o que parecia sólido esvaiu-se no ar. Mudaram as relações entre  os Estados Unidos, a China e a Rússia. Aparentemente há uma aproximação com a Rússia, não obstante a invasão da Crimeia e a intervenção russa na Ucrânia e na Síria, enquanto com a China parece que se entrou em rota de colisão seja em termos de comércio seja em termos de liberdade de circulação no Mar da China. Com a Europa e com a Aliança Atlântica, a NATO,  o que era tido como inabalável na contenção da Rússia já não parece tão certo na sequência das declarações de Trump. Incerteza também passou a germinar na relação dos EUA com o Japão e a Coreia do Sul criando ansiedade e abrindo caminho para futuros focos de tensão no Extremo Oriente e no Pacífico. Para alguns observadores o bombardeamento cruel que aconteceu em Alepo, na Síria, perante a quase indiferença geral pode já estar a antecipar o que virá a seguir se se concretizar o desengajamento do mundo por parte dos Estados Unidos como prometeu Donald Trump.
Muito do improvável que está a acontecer deve-se à globalização e suas consequências no desemprego, no aumento da desigualdade social, na estagnação dos rendimentos da esmagadora maioria da população e no problema dos refugiados e dos migrantes particularmente nos países mais desenvolvidos. O facto da mesma globalização ter tirado da miséria muitas centenas de milhões de pessoas, ter criado uma classe média significativa em países como a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul e a Turquia e ter inundado os países desenvolvidos de produtos e crédito barato não conseguiu diminuir a hostilidade de vários sectores da população nos EUA e na Europa que reclamam por medidas proteccionistas, pelo regresso das indústrias deslocalizadas e pela construção de barreiras contra os migrantes. A vitória de Trump e a possibilidade de vitória de outros dirigentes populistas e da extrema-direita na França, na Holanda e na Itália ao longo do novo ano criam dúvidas sobre qual será a dinâmica da economia mundial em 2017 se se concretizarem os impulsos proteccionistas. Uma não reeleição de Angela Merkel em Setembro agravaria ainda mais a situação internacional. Ninguém consegue prever o que acontecerá ao euro se os cenários de vitória dos populistas se materializarem e quais serão as consequências globais de um agravamento no diferendo comercial entre os Estados Unidos e a China que já está a desenhar-se no horizonte.
Para Cabo Verde, uma pequena economia aberta e dependente de fluxos diversos que vêm principalmente da Europa em particular do turismo, as incertezas para o ano 2017 não auguram nada de bom. O crescimento da economia vai depender bastante da procura externa e dos investimentos desses países que se puder canalizar para aqui. A cooperação tanto com os Estados Unidos como com a Europa cada vez mais tem uma componente de segurança. No caso do progressivo desengajamento do mundo por parte de Donald Trump e de uma reorientação da Europa para conter a Rússia não se sabe se Cabo Verde continuará a merecer a mesma atenção que actualmente tem. O facto de também estar em jogo o futuro do euro não é boa notícia. Até agora o acordo cambial tem sido uma âncora para nossa estabilidade macroeconómica. Já sabemos que 2017 é um ano de incertezas. Vamos esperar que nos surpreenda pela positiva preparando-nos para o pior, mas na expectativa do melhor.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 790 de 18 de Janeiro de 2016.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

13 de Janeiro, 26 anos depois

Na próxima sexta-feira comemora-se os 26 anos do 13 de Janeiro e, pela primeira vez, o Dia da Liberdade e Democracia será celebrado com uma sessão solene da Assembleia Nacional. Finalmente depois de várias tentativas em fazer o parlamento assumir o feriado nacional, criado por lei 16 anos atrás, vai-se conseguir que todos os órgãos de soberania se reúnam para assinalar o dia que marcou o início da caminhada para a construção da II República.
No dia 13 de Janeiro de 1991 teve lugar um episódio único na história de Cabo Verde e na vida de todas as gerações de caboverdianos. Todos dirigiram-se às urnas e livremente puderam escolher de entre os candidatos apresentados nas listas de partidos diferentes os seus representantes. Com a escolha dos representantes mostraram preferência por um programa de governação e deram indicação de quem deveria formar governo para conduzir o país nos cinco anos seguintes. Esse acto simples de votar fez de todos eles pela primeira vez cidadãos plenos na sua própria terra.
Anteriormente já se tinha votado em Cabo Verde. Votou-se na I República Portuguesa e também no Estado Novo. No processo de descolonização acordado com Portugal votou-se a 30 de Junho de 1975 para criar uma assembleia que além de redigir uma Constituição devia proclamar a Independência Nacional. Depois em 1980 e em 1985 voltou-se às urnas para eleger candidatos da lista do partido único. Em nenhum dos casos descritos o ambiente envolvente fora de liberdade ou de pluralismo. Mas depois do 13 de Janeiro todas as outras votações - 19 de Dezembro de 1995, a 14 de Janeiro de 2001, 5 de Fevereiro de 2006, 6 de Fevereiro de 2011 e 20 de Março 2016 – foram livres e plurais. O 13 de Janeiro marca, de facto, uma nova era, distinta de qualquer outra vivida no passado. Passou-se para uma era de real e completa participação política dos cidadãos, de governo pelo consentimento, de alternância política e de subordinação do Estado ao primado da Lei.
Como bem se pode imaginar, o 13 de Janeiro não caiu do céu. Depois de 15 anos de partido único o regime debatia-se com uma economia em fase de estagnação e sobressaltava-se com as movimentações de fora que culminaram na queda do Muro de Berlim e que pré-anunciavam a derrocada em cadeia de partidos e regimes de inspiração leninista. A direcção do regime ensaiou uma manobra de antecipação com a chamada abertura política de 19 de Fevereiro de 1990. A partir daí a sociedade, já desperta para a actividade política, entrou num crescendo de entusiasmo que nos meses finais do ano lançou um novo partido para uma vitória estrondosa nas eleições marcada para o 13 de Janeiro.
Para que o dia das eleições acontecesse todos os participantes tiveram que aceitar as regras do jogo e conviver com as tensões que o embate político plural sempre provoca. Foi uma caminhada sublime porque nunca dantes percorrida e que também na comemoração do 13 de Janeiro merece ser relembrada e tomada como exemplo. Demostra que é possível, na diversidade de posição e fazendo valer os interesses das partes, chegar a compromissos, negociar e contribuir para o que, num determinado momento, se afigura ser o melhor para o país. Deve-se sempre poder recorrer à memória desse momentos para não se cair na intransigência estéril ou sucumbir à tentação e à arrogância de sozinho já ter a solução perfeita para tudo.
26 anos depois o entusiasmo que acompanhava a “Terceira Vaga” da democracia está a ceder lugar ao cepticismo e ao cinismo. Mais facilmente se tende a acreditar em quem suscita paixões, acusa outros dos males nacionais e pretende oferecer soluções simples para questões complexas do que em quem aposta na livre troca de ideias, vê a importância da política e dos partidos políticos na manutenção do ambiente institucional actual e na construção do futuro e acredita na importância de regras aceites pelas partes como base essencial de confiança e de solidez das instituições. Por isso é que restaurar o parlamento para o centro da vida política do país é essencial para o futuro da democracia. É ali que com calma, lucidez e perseverança deve-se procurar valer todas as posições mas sempre atentos às regras de funcionamento que são a base para a renovação da confiança de todos no trabalho parlamentar.
Levar o parlamento a celebrar com a devida pompa e solenidade o 13 de Janeiro pode ser um passo essencial para se inaugurar uma nova forma de fazer política em Cabo Verde. A diversidade de posições e o embate de pontos de vista que proporciona são os ingredientes necessários para se evitar que se materialize uma deriva em direcção ao populismo e à demagogia - as duas ameaças que a democracia enfrenta nos dias de hoje. Mesmo sendo recente, a democracia pode encontrar em momentos da sua concretização prática a energia e a certeza de que tanto precisa para continuar a consolidar-se e a oferecer ao caboverdiano as possibilidades da cidadania plena e as garantias fundamentais para o exercício da liberdade. Para os políticos, a homenagem que agora se faz a Mário Soares deve-lhes servir de lembrança que apesar do aparente cinismo e hipocrisia que parece dominar as sociedades modernas certos elementos de referência mantêm-se de pé. E com eles que é que se avalia quem na memória colectiva ficará para a posteridade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 789 de 11 de Janeiro de 2016.