segunda-feira, 26 de abril de 2021

Estabilidade para combater a pandemia

 

As eleições legislativas de 18 de Abril saldaram-se pela vitória do MpD que obteve maioria absoluta dos deputados na Assembleia Nacional de Cabo Verde.

A configuração das forças políticas no parlamento não se alterou muito em relação ao que tinha saído das eleições de Março de 2016. O MpD perdeu dois deputados, um que foi aumentar o número de deputados do PAICV para 30 e outro que foi juntar-se aos três anteriores da UCID perfazendo quatro deputado. As outras três forças políticas que concorreram não conseguiram lugares no parlamento e em alguns casos mostraram não ter suficiente representatividade, número de apoiantes e uma organização democraticamente funcional que rigorosamente os qualificasse como partidos políticos. Com estas eleições, inicia-se um novo ciclo governativo sob o signo da estabilidade suportada por uma maioria parlamentar que mesmo mais estreita é suficiente para garantir governo nos próximos cinco anos. Goradas ficaram as expectativas dos pequenos partidos e de alguns segmentos de opinião de conseguir maiorias relativas que obrigassem a mais diálogo entre as diferentes forças.

A opção clara do eleitorado cabo-verdiano foi de garantir estabilidade e continuidade governativa. Vê-se isso nos resultados eleitorais que mostram o partido no governo a ganhar em todos círculos eleitorais com excepção da ilha do Fogo e dos círculos das Américas, da Europa e da África. Nota-se na inversão surpreendentemente cedo no sentido de voto em círculos eleitorais que incluem municípios como a Cidade da Praia onde em Outubro último o PAICV tinha ganho as autárquicas. Também é impressão que se tem quando a população faz orelhas moucas aos múltiplos apelos para acabar com a bipartidarização e continua a dar os votos aos dois grandes partidos e a confinar a UCID a S.Vicente.

Na origem dessa posição do eleitorado estará provavelmente a situação de pandemia que se vive no país e que se tornou pior com o aproximar da data das eleições. Quando aumentam as incertezas e a precariedade da vida se torna mais evidente, a atitude das pessoas não é de aventurar com alternativas de governação e com lideranças não testadas. O slogan da campanha do MpD “Cabo Verde no caminho seguro” procurou traduzir e reforçar esse sentimento das pessoas. No mesmo sentido foi a estratégia de personalização da campanha no primeiro-ministro e de contrapor a sua figura enquanto homem de Estado à da líder de oposição, convidando o eleitorado a escolher quem lhe oferecia mais segurança. O facto da presidente do PAICV ter aceite o repto e ter centrado muito na sua pessoa não terá ajudado a posição do seu partido enquanto alternativa ao governo.

Para o país esse foco nas personalidades não constituiu ganho algum e, pelo contrário, foi oportunidade perdida ter a campanha eleitoral das legislativas focada nos líderes dos dois grandes partidos. Não se deu tempo suficiente para se debater a situação real do país e as políticas que poderiam diminuir as vulnerabilidades, enfrentar a precariedade progressiva de vários sectores e preparar o país para o futuro incerto criado pela pandemia da covid-19 e pelos seus efeitos nos diferentes sectores da vida política, económica, social e cultural. Privilegiou-se no discurso o desfilar de promessas na linha do que se vinha fazendo antes da pandemia e assumindo sem talvez o dizer que o “pós” será uma simples continuidade do “antes”. As críticas atiradas nos dois sentidos mais parecem ajuste de contas com os legados de governações passadas do que uma procura de vias para resolver os problemas do país.

Em retrospectiva, pode-se constatar que a meio de todo esse “ruído” acabou-se por sobrepor o sentimento generalizado das pessoas de que era preciso manter a governação actual e não deixar-se levar por apelos patéticos para se fazer experimentação com “gerigonças” e maiorias relativas. Vencida a tentação de ir por outros caminhos, é fundamental que se tire todas as ilações da opção feita: primeiro deve-se ter em conta que a garantia dada de uma maioria estável nos próximos cinco anos não é para ser tomada simplesmente como selo de aprovação de políticas passadas. Na prática, trata-se de um ambiente criado para com tranquilidade e serenidade se encontrar novas vias para os problemas que o país enfrenta tanto internamente como na relação com o mundo.

Também há que procurar ver na pequena diferença entre a maioria e as forças da oposição que saiu das eleições um convite para mais diálogo e mais convergência entre as forças políticas na procura de soluções duradoiras para o país nestes tempos de incertezas. Por outro lado, o facto de os pequenos partidos terem conseguido expressão mesmo que pouco significativa em quase todos os círculos eleitorais não deixa de ser um aviso. Se as principais forças políticas não encontrarem forma de conjuntamente trabalhar e encontrar solução para os problemas do país outras propostas mais complicadas poderão ganhar terreno alimentadas pela vitimização, ressentimento e sentimento de marginalização.

A grande dificuldade em se tomar as eleições como uma oportunidade para um novo começo normalmente tem a ver com a tentação de se manter o espírito de campanha mesmo quando ela cessa e é preciso governar. A maioria eufórica com a vitória sente-se confiante e legitimado com tudo o que disse e fez e não tem muita disposição para relembrar o que o velho político dizia: campanha faz-se com poesia, mas governa-se com prosa. Resultado, continua-se muitas vezes a bater na oposição como se as eleições já não tivessem sido ganhas e perde-se a oportunidade de avançar com reformas profundas, quando ainda o espírito de mudança está no ar e as resistências abaladas com o choque do novo ainda não se entrincheiraram. Já a minoria muitas vezes ressentida tende a confundir o papel de oposição como o de uma força de bloqueio. Estando a maioria saída das eleições com a responsabilidade pela governação do país cabe-lhe fazer um esforço maior de ultrapassar a crispação pós-eleitoral e fazer convergir as vontades com vista à consecução do interesse geral.

Essa responsabilidade em momentos únicos como os que se está a viver com a pandemia da covid-19 ganha uma dimensão extraordinária. Há que assumi-la em peso e com urgência. Da parte da oposição normalmente a demissão do líder após a derrota abre as portas para uma nova abordagem das políticas e pode levar à revitalização do partido, preparando-o para os desafios do futuro. O pior que pode acontecer é fazer o partido refém do líder derrotado e não deixar campo nem para revitalizar o partido, nem para conseguir dialogar e negociar com o partido no governo medidas de política de grande alcance e impactantes para o futuro do país.

A história da alternância política em Cabo Verde não tem sido pródiga em gerar amplos consensos que permitam ao país dar saltos no seu desenvolvimento e na sua competitividade. As eleições de 18 de Abril foram especiais nesse sentido e convidam a uma outra atitude e um outro foco na resolução dos problemas do país. Que o convite dirigido seja aceite é expectativa geral de todas as partes. Que assim seja!!

Humberto Cardoso

 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1012 de 21 de Abril de 2021.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

“O que podes fazer por teu país”

 

​Já nos últimos dias antes do voto de 18 de Abril que vai determinar o rumo do novo ciclo governativo no país a grande questão a pôr aos cabo-verdianos devia ser similar à colocada por John Kennedy na sua tomada de posse como presidente dos Estados Unidos da América, em Janeiro de 1961: “Pergunta não o que o teu país pode fazer por ti, mas o que tu podes fazer por ele”.

De facto, os tempos actuais marcados pela pandemia do coronavírus e pela recessão económica global e pelo contínuo descrédito das instituições nas democracias clamam por outra atitude das pessoas. Querer-se-ia uma atitude que fosse mais altruística e tivesse como base a crença num destino comum e não aquela que prevalece hoje e é egoísta, do tipo “cada um por si”, e orienta-se para extrair do Estado o máximo, sem olhar a meios.

Nos pequenos países frágeis e sem recursos como Cabo Verde a mudança no sentido apontado por Kennedy é claramente mais urgente. Sem mais cooperação entre as pessoas, mais engajamento cívico e mais esforço individual e colectivo para elevar a qualidade e os níveis das competências produzidas no sistema de ensino e formação dificilmente se conseguirá estar à altura dos extraordinários desafios que o futuro comporta. Infelizmente, os sinais vindos de todos os lados, especialmente nos momentos eleitorais em forma de promessas de campanha e propostas de políticas, vão no sentido contrário. Tendem a consolidar e a revalidar a condição de dependência do Estado e a postura de feroz concorrência entre indivíduos e grupos para acesso aos recursos.

Cabo Verde está numa encruzilhada com um futuro desafiante e incerto como diz o FMI e o mais normal é que houvesse um apelo ao engajamento de todos para que com um outro espírito o país possa enfrentar as dificuldades do mundo pós-covid e preparar-se para aproveitar oportunidades que eventualmente surjam. Nesse sentido o discurso que menos se deveria ouvir é o que faz crer que a salvação está no Estado a funcionar paternalisticamente como antes a “realizar sonhos” de uns e a contemplar outros com ganhos. Já se vai na segunda eleição deste ciclo eleitoral que se iniciou em Outubro último com as autárquicas e não há sinal que o discurso vá mudar. A pandemia pode até estar a dar sinais que poderá agravar-se numa nova onda provavelmente induzida por uma variante mais contagiosa do vírus como vem acontecendo na Europa e na América nestes primeiros meses de 2021. Mas ninguém parece dar atenção especial a isso para além de se repetir as já habituais recomendações de uso da máscara, distanciamento social e higienização pessoal e do espaço físico.

A verdade é que pelo que se tem visto neste ano sem paralelo de pandemia do coronavírus e de recessão global nada parece suficientemente forte para alterar as formas de estar, de pensar e de fazer política neste país. A crispação política não baixou de intensidade para criar espaço para compromissos fundamentais num momento único de grandes constrangimentos tanto no país como no mundo. Não se deu pausa às reivindicações laborais e às greves e ameaças de greve particularmente no sector público como se não tivesse qualquer relevância a paralisação de sectores importantes da economia como o turismo com reflexo no desemprego de milhares de pessoas, perda de mais de 40% das receitas do Estado e diminuição drástica das exportações.

Nem tão pouco se fez um compasso de espera para perceber o que poderá ser o mundo pós covid-19 antes de continuar a promover os mesmos projectos de infraestruturas, de criação de plataformas, hubs ou clusters, de expansão de portos e aeroportos e de terminais de cruzeiros. Com promessas novas como levar o ensino superior a todas ilhas deu-se mais um impulso à deriva de se ver Cabo Verde como nove países multiplicando as dificuldades já existentes e diminuindo a possibilidade de potenciar devidamente a diversidade das noves ilhas. É evidente que na insistência em fazer o mesmo apesar de mudanças profundas a verificarem-se a nível local e global o mais provável é que se esteja a perder a oportunidade de avançar com reformas que noutras circunstâncias seriam mais difíceis. Um exemplo são os transportes, seja o aéreo, o marítimo e o interurbano que em todo o lado vão ser alvo de reformas por forma a poder se adaptar às exigências de viajar no “novo normal”. Aqui tudo ficou praticamente como estava. As crises têm sempre custos, mas ficam mais caras quando as oportunidades que eventualmente ofereçam não são aproveitadas.

A campanha eleitoral devia incluir momentos únicos para a apresentação e discussão de propostas para se adaptar o país aos rigores dos novos tempos. Seriam ocasiões certas para mobilizar vontades para se fortalecer os alicerces da nação e com novas perspectivas adequar o país de instrumentos necessários para construir prosperidade sustentável. Não é, porém, fácil fugir do que sempre se fez. Numa certa perspectiva podia-se até considerar normal que os partidos do chamado arco do poder não conseguissem afastar muito do tipo de discurso e de promessas que reconfirmam no essencial o modo de funcionamento do país enquanto economia pequena e frágil e dependente da ajuda externa. Esse é o paradigma na base do qual o Estado vem funcionando há décadas e que já se provou no essencial resistente a intenções reformistas vindas de todos os quadrantes.

Estranho é o facto de pequenos partidos aparentemente sem qualquer possibilidade de ganhar as eleições, se juntarem ao coro dos que fazem promessas nessa mesma linha. Acabam por exagerar nas medidas propostas só para se diferenciarem e supostamente ficarem em posição de criticar, mas sem acrescentar praticamente nada de novo. Pontualmente dão guarida a sentimentos anti-sistémicos que de uma forma ou de outra procuram descredibilizar as instituições da democracia representativa e do Estado de Direito constitucional. A verdade é que não se revelando portadores de políticas alternativas, nem conseguindo afirmar-se como partidos de protesto, acabam por ser ignorados pelo eleitorado. Aconteceu nas autárquicas e poderá verificar-se outra vez nas legislativas.

As pessoas no meio dessas lucubrações partidárias, que em geral se mostram aquém dos enormes desafios que se colocam ao país, não vêem como outra saída se não a de se desenrascarem e com sorte ou com os contactos certos serem bem-sucedidos num sistema que por si próprio tende a reproduzir a dependência de todos em relação ao Estado e a manter a posição sobranceira e paternal do Estado em todos os domínios da vida do país. Quando as dificuldades aumentam, como acontece actualmente com a pandemia, tudo fica muito pior. Inflectir a situação significaria cortar com uma espécie de “cinismo cívico” que alguns anos depois da independência se instalou no país após o desencanto com o regime de partido único.

Dizia-se amiúde que “militância dja kaba” para justificar ausência de sentido de serviço público e “N ka mata Cabral” para fugir a qualquer tipo de responsabilidade. Ou seja, legitimava-se atitude de tudo ir buscar ao Estado que detinha os recursos, fazia os favores e propiciava os acessos. Deixar para trás esse cinismo que até hoje perdura é fundamental para se ter de facto um Estado de Direito com servidores a todos os níveis cumpridores de uma ética republicana. Passa por responder ao apelo de John Kennedy de uma outra relação com o país e o Estado que reforce a confiança nas instituições, valorize a auto-responsabilidade e a autonomia individual e promova a cooperação entre as pessoas. São os ingredientes que se precisa para construir uma comunidade mais forte e resiliente e que mesmo nas maiores dificuldades sempre encontrará vias para prosperar e ser livre.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1011 de 14 de Abril de 2021.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Evitar erros que levam gerações a corrigir

 Recorrentemente em Cabo Verde a questão da autonomia das universidades, da qualidade do ensino e da capacidade de investigação e produção científica é trazida à discussão pública.

O país diz-se detentor de cerca de dez universidades, mas é impressão generalizada que o impacto do ensino superior é ainda bastante fraco. Em particular não parece contribuir para elevação do nível do debate na esfera pública, nem se mostra capaz de propiciar às instituições do país expertise em várias áreas de forma sistemática e perceptível como seria de esperar. O que as pessoas notam em relação ao papel das universidades vai de encontro em grande medida com o que ficou exposto na resolução do congresso dos doutorados realizado a 11 de Março em Mindelo quando diz que “a falta de um projecto universitário que valorizasse desde a sua génese a função criativa da Universidade impediu a emergência de uma comunidade científica em Cabo Verde”.

Para os participantes no congresso a falha vem de longe, em particular na universidade pública, a Uni-CV, segundo os quais “foi marcada na sua génese pelo facto de o corpo docente ter sido recrutado de entre professores formatados nos anos 1975-1980 nas escolas do Partido Único”. Acrescentam ainda que a “corrupção sistémica” que daí resultou “conseguiu asfixiar a crítica aos poderes públicos pela Academia” e que a “centralização da autoridade académica na administração universitária converteu a instituição em mera extensão da administração pública, retirando-lhe a função de Casa do Saber”. Não é nada que se desconhecia considerando o que se sabe do processo de instalação do ensino universitário nos últimos anos.

Em alguns momentos, por altura de eleição para o cargo de reitor, ou em artigos de jornal, questões semelhantes foram levantadas, mas como de há muito se tornou habitual em Cabo Verde são logo desvalorizadas ou esquecidas, ou varridas para “debaixo do tapete”. Entretanto recursos públicos consideráveis são gastos em manter tal sistema sem que se vislumbre retorno adequado que os justifique. Também milhares de estudantes e seus familiares investem parte importante dos seus rendimentos e muito das suas esperanças de uma vida melhor sem de facto qualquer garantia de atingir os seus objectivos particularmente quando escasseiam empregos do Estado a exigir licenciatura, o mercado de trabalho não é suficientemente dinâmico e as qualificações existentes não são as mais procuradas por potenciais empregadores. Com o país a viver uma pandemia sem precedentes podia ser uma oportunidade para a Uni-CV desempenhar um papel de relevo como acontece em outros países. Aqui, pelo contrário, está-se por saber o papel da universidade em apoiar o esforço de combate ao coronavírus e as contribuições no estudo da epidemia, sua evolução e seu impacto nas populações.

Este jornal em vários editoriais e reportagens ao longo dos últimos dez anos procurou chamar a atenção para a problemática que rodeou todo o processo de instalação do ensino universitário. Já em 2010 este semanário alertava que as universidades enquanto bastiões do conhecimento, do ensino superior e da investigação precisam para realizar a sua missão da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e de ser funcional num quadro de autonomia administrativa e financeira e independência do poder político. E que a forma como foi criada a universidade pública de Cabo Verde determinou que muito do que se esperava de uma instituição de ensino superior fosse sacrificado. Compreende-se a motivação e a urgência expressas nos alertas que se sucederam vindos de diferentes quadrantes. Tratava-se de uma instituição nova chamada a desempenhar um papel crucial para vida de gerações de jovens e a ser central para o desenvolvimento do país enquanto produtor e disseminador do conhecimento e criador do ambiente propício para a inovação. Se falhasse em realizar a sua missão como tudo parece indicar os estragos seriam consideráveis e os custos para reverter a situação teriam que ser suportados por gerações.

Infelizmente o que aparentemente acabou por acontecer com a universidade pública é análogo ao que vem acontecendo com outras instituições no país e com a generalidade da administração pública. A dependência do país da ajuda externa, o historial de partidarização da administração pública a partir das suas origens no partido/Estado e a presença forte do Estado na economia entre outros factores garantiram que se reproduzisse ao longo de décadas, não obstante as tentativas de reforma, a figura do Estado centralizador, burocrático e pouco sensível às necessidades dos utentes. Com a crescente incapacidade do sector privado nos vários domínios, seja industrial, seja o do turismo e dos serviços em ganhar proeminência e em inflectir a posição do Estado no topo da proverbial “cadeia alimentar” a tendência de muitos tem sido de encontrar a melhor forma de se colocarem sob a sombra protectora do sector público.

Naturalmente que isso tem consequências tanto pelo impacto sobre as instituições e a administração pública no que concerne à composição dos órgãos, nível de funcionamento e comprometimento com o serviço público como sobre o tipo de discurso e de campanha eleitoral que é produzido no processo de acesso ao poder político. A situação de crise que se vive actualmente devido à Covid-19 só agrava a tendência e torna mais saliente essa evolução negativa no seio das instituições. A cada dia que passa fica mais difícil tentar inflectir o caminho de uma certa desinstitucionalização, quase sempre acompanhada de centralização do poder no chefe e a transformação de outros titulares de cargos ou dirigentes em variantes de facilitadores, bajuladores e vendidos. E isso acontece quando precisamente a pandemia em todo o mundo veio relembrar a importância de se ter um Estado competente, comprometido com a verdade dos factos e congregador de vontades para mitigar os efeitos das crescentes desigualdades sociais, combater os efeitos das alterações climáticas e garantir a sustentabilidade do processo de desenvolvimento.

Para um pequeno país como Cabo Verde deixar-se levar num processo em que as suas instituições enfraquecem ou não estão à altura do que é delas esperado como parece acontecer com a universidade pública é de uma gravidade enorme. De facto, não há muito espaço para cometer erros que levam gerações a corrigir particularmente quanto desafios como pandemias, alterações climáticas e dívida pública em crescendo podem constituir uma mistura potencialmente perigosa nos próximos anos. Neste sentido é de maior importância identificar as razões profundas por que reformas não são feitas, instituições enfraquecem e descredibilizam-se e elementos da sociedade civil não conseguem sair de uma espécie de modorra para forçarem mudanças.

No processo talvez se descubra – parafraseando o economista Paul Samuelson que não se importava com quem escrevia as leis de uma nação conquanto ele pudesse escrever os manuais escolares – que a raiz do problema esteja no que em termos de princípios e valores e de perspectiva histórica da nação cabo-verdiana é passado às novas gerações através designadamente do sistema de ensino. Tudo indica que há uma tensão entre o substracto cultural inculcado e os valores vertidos na Constituição e nas leis e o resultado não tem sido positivo para as instituições, para a cidadania e para a própria democracia. Para se ter mudança, há que encarar isso frontalmente como fizeram os participantes do segundo congresso dos doutorados na resolução que trouxeram a público. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1010 de 7 de Abril de 2021.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Futuro desafiante e incerto

 

O FMI na sua última comunicação sobre as perspectivas económicas de Cabo Verde para o futuro próximo foi peremptório a dizer que se mantêm desafiantes e incertas. Para começar, a Covid-19, em 2020, provocou uma contracção de 14% da economia. Parou praticamente tudo, seja o turismo, a aviação e a exportação de vários bens e serviços.

O resto da economia nacional limitou-se a concentrar no fornecimento do essencial para o país funcionar mesmo quando a braços com estados de emergência e outros graus de confinamento. Nunca se tinha visto algo semelhante. Em 2009 na sequência da crise financeira de 2007/2009 a contracção da economia tinha sido de 1,3% do PIB e, aquando da retoma, depois de um primeiro ano de 2010 com 4% de crescimento, seguiram-se quase cinco anos de estagnação com a taxa do crescimento do PIB à volta de 1%. A expectativa de todos é que esse padrão não se repita e que o crescimento retome a dinâmica iniciada a partir do último trimestre de 2015 e que perdurou até Março de 2020.

O FMI, apesar de prever que o país possa crescer 5,8% do PIB em 2021 e que o crescimento a médio prazo chegue a 6%, não deixa de constatar que os riscos de uma evolução no sentido negativo são reais considerando a pandemia do coronavírus e a suas ramificações globais. Na sua comunicação faz qualquer avanço na economia depender de vários factores de entre os quais uma retoma mundial, o aumento do turismo e de investimentos, a execução de projectos de infraestrutura já identificados, reformas estruturais decisivas no Estado e no sector empresarial do Estado, acesso de pequenas e médias empresas ao crédito e políticas de apoio à estabilidade macroeconómica em particular em sede da gestão orçamental e da dívida pública. Alguns desses factores são externos e dependem de como irá ser o novo normal nas relações entre países, em como as viagens vão ficar condicionadas e em como vão ser reorganizadas as cadeias de valor e estruturados os canais de aprovisionamento de bens essenciais e estratégicos.

Os outros factores, aqueles que dependem do país, constituem provavelmente uma complicação maior. Pô-los a funcionar exigiria “reformas estruturais decisivas” como diz o FMI, reformas que implicariam a despartidarização do aparelho do Estado, descentralização e desburocratização dos serviços e adopção generalizada de uma cultura de serviço público e de um ethos de servidor público que até agora se revelaram praticamente impossíveis de implementar. E sem elas não há redefinição do papel do Estado para além da sua função na reciclagem da ajuda externa, nem diminuição dos custos de contexto que retira competitividade à economia, nem uma aposta consequente e estratégica na potenciação dos recursos do país a começar pelos recursos humanos que devia ser o pilar fundamental do desenvolvimento.

O falhanço na realização dessas reformas estruturais terá contribuído para que depois da crise financeira de 2008 a entrada de fluxos externos em doações e empréstimos só tenha feito crescer a dívida externa para cerca de 120% do PIB sem que a economia por largos anos conseguisse descolar. E quando depois de 2015 a conjuntura internacional se tornou mais favorável com todas as grandes economias e em particular a União Europeia a crescer as taxas do PIB aumentaram consideravelmente de uma média de 1% nos anteriores 5% até que chegou a pandemia. Provavelmente não atingiu os 7% que tinham sido previstos devido a ineficiências várias, à produtividade baixa e à fraca competitividade derivadas da ausência de reformas em sectores-chave e também a prioridades trocadas em matéria de investimento público e de recursos humanos.

Compreender as dificuldades com que a economia cabo-verdiana se depara e os constrangimentos que tem que vencer para poder crescer a taxas que permitam retirar pessoas da pobreza extrema, diminuir as vulnerabilidades das populações e abrir o caminho para uma prosperidade que chegue a todos é fundamental para a paz e a concórdia na sociedade cabo-verdiana. Há quem aponte um crescimento acima de 7% como meta a atingir para que esse desiderato seja possível. Falta é identificar os obstáculos para lá chegar e mobilizar vontades para os ultrapassar. É verdade que se até agora não se conseguiu fazer as reformas estruturais que se impõem é por não ser tarefa fácil e também por se tratarem de medidas que provavelmente mexem com interesses entrincheirados ou que não são de imediato populares em alguns sectores. Não se pode deixar de notar é que, com tentativas de reforma sucessivamente fracassadas, mais longínqua se torna a possibilidade de realizar uma mudança de fundo com impacto visível na eficácia da acção do Estado. Em simultâneo e contribuindo para ineficácia estatal nota-se também o crescente poder de corporativismos diversos que já se tornaram em verdadeiros empecilhos para quem tem legitimidade democrática para governar.

A política devia ser a via para se debater como ultrapassar as dificuldades referidas. Infelizmente cada vez mais passa-se a impressão é de que se quer o poder para tentar manipular o status quo a favor de clientelas próprias sem uma grande preocupação com a realização do interesse geral. O ambiente de crispação que se instala na esteira do que parece uma autêntica corrida para abocanhar recursos do estado não deixa espaço para posições mais equilibradas. Períodos eleitorais deviam ser momentos cruciais para se dar o passo em frente. Por isso a urgência devia ser maior em procurar reconhecer onde estão os obstáculos e inventariar vias para os ultrapassar.

O FMI ao caracterizar como desafiantes e incertas as perspectivas de Cabo Verde no futuro próximo chama a atenção para não se tomar os tempos que vêm aí como algo seguro e previsível e confiar que simplesmente se pode recomeçar do ponto onde se ficou há um ano atrás. Dificilmente será assim e o facto de o coronavírus constituir uma ameaça global ninguém pode ter a pretensão de ficar aquém dos seus efeitos devastadores. Em Cabo Verde reina a crença que a solidariedade é mais forte em momentos de desgraça porque é preciso cooperação de todos para minorar os estragos e encontrar uma saída. Em tempos de pandemia as pessoas, os candidatos e os partidos deviam se mostrar mais abertos ao diálogo político que pode levar a soluções duradoiras e consistentes e mobilizar energias para fazer as reformas que todos esperam.

Nos tempos que correm não há, porém, certeza que depois da tempestade venha imediatamente a bonança. Mais uma razão para apelos à solidariedade ao longo do processo eleitoral que vai culminar nas eleições legislativas de 2021. A democracia e a liberdade vão depender dos muitos problemas colocados no dia-a-dias e de como as reformas foram encetadas e as soluções foram encontradas. Do sucesso nas reformas, de um renovado papel do Estado e de um maior foco em construir pontes entre as pessoas irá depender a prosperidade geral, o rendimento individual e familiar e maior proximidade na relação entre as pessoas. As eleições de 18 de Abril deviam ser pretexto para uma nova abordagem dos problemas de Cabo Verde. Vamos esperar que seja desta. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1009 de 31 de Março de 2021.