segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Não mais embalar o povo com estórias

 Foi notícia no dia 12 de Setembro a declaração do presidente da república a tomar a data como “início das comemorações do centenário de Amílcar Cabral”. De imediato, a comunicação social pública surgiu na sua onda de costume a tecer loas à figura do líder do PAIGC e à luta de libertação na Guiné-Bissau secundada pela Fundação Amílcar Cabral a clamar por gratidão eterna dos cabo-verdianos para com os “libertadores”.

Ora, o 12 de Setembro não é reconhecido como feriado nacional para ser objecto de declarações oficiais e sabe-se que decisões em matérias de comemorações nos países com o sistema político de feição parlamentar são fundamentalmente do executivo. Em Cabo Verde, por exemplo, já foram tomadas sob a forma de resolução do governo (Resolução 27/2006 de 26 Junho, Centenário da Claridade) e em Portugal também as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril foram determinadas por resolução do governo (Resolução 70/2021 de 4 de Junho.

Talvez ciente de um faux pas, ou lapso do PR a ultrapassar os seus poderes, apareceram posteriormente outras vozes a perguntar o que é que o governo e o parlamento iriam programar para essas comemorações. São perguntas que procuram preencher o vácuo criado e servem certamente para pressionar os outros órgãos de soberania a agir no sentido pretendido e de acordo com o quadro já estabelecido. Nas declarações do PR quer-se que ainda hoje Amílcar Cabral, o líder fundador e ideólogo do PAIGC, seja força inspiradora para realizar os sonhos daqueles que lutaram pela independência. Isso poderá ter sentido em projectos totalitários, mas não numa república assente nos princípios da soberania popular, no pluralismo de expressão e no respeito pelos direitos e liberdades individuais.

De facto, a procura do bem comum nas sociedades livres resulta do processo democrático e não da concretização dos sonhos de alguns. Aliás, do conhecimento histórico e da experiência própria em Cabo Verde, sabe-se no que dá seguir por esse caminho. O desastre do que foi o regime de partido único na Guiné-Bissau e o atraso que representou para Cabo Verde – até hoje Cabo Verde é um dos países mais atrasados em comparação com outros pequenos estados insulares, os SIDS - resultaram do projecto do PAIGC que, como se veio a constatar ao longo de década e meia, era mais um projecto de poder de alguns, camuflado em projecto de libertação.

A recomendação do PR de seguir Cabral no “pensar com as nossas próprias cabeças” também não faz muito sentido. No contexto em que foi expressa a frase adequava-se aos regimes políticos previstos que posteriormente seriam estabelecidos pelo PAIGC na Constituição da Guiné-Bissau de 1973 e na Constituição de Cabo Verde de 1980. Nesses regimes não há pluralismo, apenas se prevê um partido político e os direitos fundamentais são exercidos como a lei ordinária no momento determinar. Forças do conformismo ideológico, ameaças de ostracismo social e o perigo de exílio ou mesmo de eliminação física garantem que “pensar com as nossas próprias cabeças” passa a significar, de facto, “pensar com a cabeça do partido, ou seguir a linha do partido”.

O ponto de partida do regime democrático é outro. Ninguém tem a verdade absoluta e assegura-se a possibilidade de haver pensamento independente, não se inspirando em figuras históricas de matriz ideológica totalitária, mas sim num ambiente político de liberdade de expressão e liberdade de informação, de pluralismo e de alternâncias pacíficas de governos. Também não cabem num quadro democrático apelos que se abeiram da idolatria do tipo que Amílcar Cabral nos permita mobilizar energias, capacidades e competências para a realização dos sonhos daqueles que lutaram pela independência (...)

Diz-se amiúde que os países ou nações precisam dos seus mitos fundadores para terem uma identidade própria, para manter vivo o espírito de união na resposta às ameaças existenciais e às adversidades e também para renovar os laços comuns com vista à construção de um futuro de prosperidade. Tem sido essa a mensagem passada em vários países africanos para justificar a veneração oficial dos chamados “libertadores e pais da independência” e inculcar nas gerações sucessivas o dever de gratidão eterna para com eles. Uma gratidão que na generalidade dos casos, e em primeiro lugar, os desresponsabiliza dos regimes ditatoriais implantados, dos sofrimentos indiscritíveis infligidos e do enorme atraso provocado por governação desastrosa e corrupta.

A situação crítica que se vive em vários países da África dá conta do embuste que isso foi, da mesma forma como noutras paragens a desagregação da Jugoslávia depois da morte do marechal Tito e da União Soviética com o fim do regime do partido comunista, o partido demiurgo que produzia Pais dos Povos. A Guiné-Bissau, no dia 24 de Setembro, vai completar cinquenta anos que adoptou a constituição que criou o regime de partido único e logo de seguida por Lei nº 4/73 proclamou Amílcar Cabral Fundador da Nacionalidade. Pelas vicissitudes da história desse país nas décadas seguintes não se poderá dizer que a narrativa da nação forjada na luta, do partido como factor de cultura e do líder do partido como fundador da nacionalidade contribuiu para criar identidade, espírito de união e laços comuns que poderiam tirar a Guiné-Bissau do grupo dos países mais pobres do mundo. Muito pelo contrário.

Pior acabou por acontecer em Cabo Verde quando também se instituiu o partido único e, por uma publicação no B.O. de 7 de Julho de 1975, suplemento, que se convencionou chamar de Lei, se proclamou Amílcar Cabral como fundador e militante nº1 do PAIGC (artigo 1º) e como Fundador da Nacionalidade (artigo 2º). O povo das ilhas, que de há muito tinha uma identidade e uma consciência da nação que já era traduzida designadamente na sua língua, música e literatura, ganhava um PAI por imposição política. Explica claramente as razões desse primeiro acto do poder nas ilhas uma frase atribuída ao filósofo, economista e sociólogo alemão Karl Marx: “Se você conseguir isolar as pessoas de sua história, elas poderão ser facilmente persuadidas”. O partido único durou 15 anos e só terminou com a chamada terceira vaga da democracia que deitou abaixo, nos fins dos anos oitenta e início de noventa, regimes autoritários e totalitários em todos os continentes.

Com a adopção da Constituição de 1992, Cabo Verde erigiu-se numa república não baseada em sonhos ou projectos de poder de alguns, mas sim num sistema de princípios e valores que tem o seu fundamento no respeito pela dignidade humana e no reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos individuais. As democracias liberais e constitucionais, com os seus valores de pluralismo, tolerância e de promoção da inclusão têm demonstrado que é possível fortalecer a ideia de nação, conviver com o multiculturalismo e desenvolver o espírito cosmopolita sem comprometer a liberdade e a prosperidade. Não há, portanto, necessidade de se inspirar em figuras históricas com lastro ideológico datado para reforçar os laços necessários à construção do futuro comum. É preciso não mais cortar o povo da sua história porque ninguém mais o embala com estórias para lhe roubar a liberdade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1138 de 20 de Setembro de 2023.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Acelerar o desenvolvimento com inovação e inclusão no digital

 

Na semana passada a transição para o digital mereceu atenção em vários fóruns do mundo como uma das grandes questões da actualidade. Na cimeira dos G20, no dia 9 de Setembro, a Índia, que presidiu o encontro, pôs o foco na necessidade da construção de uma Infraestrutura Digital Pública, DPI em inglês, que nas palavras do primeiro-ministro indiano Modi deve servir enquanto veículo de inovação e de inclusão como acelerador para se atingir os objectivos de desenvolvimento sustentável, ODS.Ou seja, a criação de uma espécie de plataforma (India Stack) sobre a qual diferentes entidades públicas ou privadas poderão desenvolver aplicativos para aceder a documentos de identificação, sistemas de pagamentos e dados governamentais e fornecer a utentes e consumidores um conjunto de serviços que vão de subsídios de segurança social a aplicações para crédito.

Na Estónia, um dos países com maior taxa de digitalização no mundo (99%), o primeiro-ministro cabo-verdiano participou no início da semana numa Cimeira Digital, em Tallinn, sob o tema “Reforço da Democracia” e prometeu envidar esforços para fazer de Cabo Verde uma Nação Digital. Aqui na Cidade da Praia no sábado numa reunião da IDC-África o tema foi também a transição digital em África. No final do encontro, o vice-primeiro-ministro, que é também ministro da Economia Digital deixou promessas de Cabo Verde ter os serviços públicos prestados de forma remota e digital até 2026 em 60 por cento (%) e até 2040 superior a 80 %.

Não se ficou a saber qual é a taxa actual de digitalização, mas até pelas metas definidas vê-se que o país claramente deixou-se atrasar no que devia ter sido uma prioridade nas políticas públicas para servir as pessoas, ter ganhos de eficiência e melhorar a sua competitividade, considerando a sua condição de país arquipélago, de população dispersa e de dificuldade de transporte. E não foi por desconhecimento porque de há muito, desde primeiros anos deste século que já eram visíveis oportunidades que se abriam com a noção de Cyber Island, uma ideia na época (2003) comungada pelas Maurícias e já cavalgada em força pela Estónia. Tempos em que se falava das back offices, call centres e das Business Processing Operations (BPO).

Também não foi por falta de acção porque desde os finais dos anos noventa com a RAF e posteriormente com o NOSi deram-se passos importantes no domínio da digitalização e da governação electrónica. Até promessas de exportação das experiências e de software desenvolvido no país e por técnicos nacionais se materializaram. Da mesma forma houve a possibilidade de criar um ambiente adequado de formação e troca de experiência onde pôde florescer capacidades e o gosto de inovar cujo potencial ficou evidente no trabalho de valor então realizado. Faltou talvez visão mais ampla, estratégias mais consistentes e acções encadeadas que resultassem numa abrangência maior de serviços cobertos pelo e-government, mais produtos e serviços disponibilizados ao público, mais oportunidades para o sector privado da economia digital e um estímulo maior para o desenvolvimento do capital humano no domínio do digital.

Infelizmente, não funcionou o que poderia ter sido um acelerador para o desenvolvimento do sector digital. Para um país remoto, longe dos principais mercados, sem recursos naturais e com população espalhada pelas ilhas e com um grave problema de desemprego entre os jovens, a possibilidade de criar e vender produtos e prestar serviços via Internet devia ser vista como uma via rápida e inclusiva para impedir a pobreza de ser uma fatalidade. De facto, pela própria natureza da Internet, consegue-se contornar os constrangimentos da geografia no emprego, passar ao lado das restrições colocadas pelo mercado exíguo e fragmentado, evitar o isolamento que põe obstáculos para se chegar ao conhecimento e a trocas profícuas de experiências e coloca dificuldades várias no acesso a serviços públicos rápidos e a sistemas de pagamentos atempados. Não ter compreendido isso e agido em consequência provavelmente fez da aposta no digital mais uma das várias outras oportunidades perdidas ou mal aproveitadas na história do país.

Saber fazer o melhor da insuficiência de recursos, de constrangimentos vários e até de desgraças naturais ou outras põe muitas vezes o criativo e o inovador numa posição excepcional de oferecer soluções para problemas que outros países não anteciparam e não conseguem dar uma resposta rápida e efectiva quando são por eles confrontados. É o que aconteceu com o App ucraniano DIIA que foi desenvolvido como resposta aos problemas graves que surgiram com a invasão russa. A guerra deslocou milhões de pessoas, deixou muita gente sem emprego e sem rendimento e criou dificuldades extraordinárias para, entre outras coisas, os cidadãos acederem aos serviços do Estado, para levar aos vulneráveis os subsídios da segurança social e para proceder a transacções essenciais numa economia funcional. O aplicativo do telemóvel dá a possibilidade de acesso a 120 serviços do Estado que vieram suprir as insuficiências criadas pela situação de guerra.

Para isso, houve que reorganizar os serviços, combater a corrupção, promover a transparência e promover a cibersegurança nas ligações com o Estado e garantir a estabilidade do sistema de pagamentos. Para além desses ganhos o App DIIA tornou-se um produto de exportação que até a Estónia com sistema sofisticado de e-government o está a utilizar. É atractivo também para outros países que enfrentam ineficiências várias e têm problemas de responsabilização e prestação de contas na administração local e central do Estado.

Perante este exemplo, pergunta-se que soluções inovadoras para os problemas específicos de Cabo Verde derivados da sua pequenez, dispersão da população e localização poderiam servir para os outros. O mesmo, aliás, podia aplicar-se para eventuais soluções criativas encontradas para problemas de energia renovável, produção e utilização eficiente de água numa terra árida, mas de intensa irradiação solar, ventos fortes e rodeado de mar. A grande questão é por que não se seguiu esse caminho de investir profunda e apaixonadamente no desenvolvimento do capital humano e por que, com visão e estratégia bem temperada pelo pragmatismo, não se procurou tirar partido das dificuldades para construir resiliência no país e para criar e inovar no sentido de dar sustentabilidade ao desenvolvimento preconizado. Deixou-se talvez seduzir por demasiado tempo pela ajuda externa, quase sempre demasiadamente focada numa matéria ou com agenda própria, em relação à qual não se soube responder com uma visão própria.

Uma resposta que deveria resultar em criar capacidade própria em termos científicos e tecnológicos que implicaria um sector privado nacional que se quereria envolvido na implementação dos projectos de milhões que, por doações, ajudas concessionais e créditos são disponibilizados ao país para o seu desenvolvimento. Assim já se poderia falar com mais certeza e propriedade em atingir taxas de penetração cada vez maiores na transição energética e no domínio da economia digital. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1137 de 13 de Setembro de 2023.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Rigor no exercício de funções gera confiança

 Daron Acemoglu no seu famoso livro “Por que falham as Nações” procurou provar a importância das instituições na riqueza das nações. Quando são extractivas não incentivam as pessoas a conseguir mais educação e formação, a poupar e a investir, a inovar e adoptar novas tecnologias.

Perpetuam o subdesenvolvimento acompanhado de grandes desigualdades sociais. Quando, pelo contrário, são inclusivas propiciam a criação de riqueza e tornam real a possibilidade de prosperidade geral.

De acordo com o mesmo autor, se por um lado são as instituições económicas que determinam se um país se torna rico ou fica pobre, por outro lado, é a política e as instituições políticas que determinam que tipo de instituições económicas tem realmente o país. A realidade histórica confirma que as democracias e as instituições económicas inclusivas permitem criação sustentável de riquezas durante décadas seguidas. Já nos estados autocráticos com instituições extractivas pode haver crescimento, mas não com sustentabilidade.

Só democracia, porém, não chega. Para ter sucesso há que cuidar da qualidade das instituições. Nesse sentido, é fundamental o processo político, ou seja, a forma como se faz política e o grau de engajamento dos actores políticos em contribuir para que as instituições funcionem em pleno. Tem que haver garantia que os direitos de todos são respeitados, que a lei democraticamente produzida é cumprida e os conflitos dirimidos de forma justa e eficaz. Caso contrário, instala-se um mal-estar que pode levar à desesperança e às suas consequências no enfraquecimento do tecido social, na criminalidade e em criar urgência para emigrar.

A crise das democracias nos últimos tempos tem sido acompanhada de crescente crispação e polarização política dando voz ao populismo extremo, aumentando o cinismo em relação à política e aos políticos e descredibilizando as instituições. Se na Europa e nos Estados Unidos mudanças geopolíticas, sinais de desglobalização e os efeitos da policrise actual forçaram uma espécie de refocagem no sentido de defesa da democracia e da ordem liberal, em outras partes do globo, designadamente na África, a situação tende a piorar. Aumenta a pressão migratória face ao que configura ser a incapacidade dos regimes políticos de criar emprego e garantir um futuro aos seus cidadãos. Nos últimos tempos o ressurgimento de golpes militares em vários países do continente deixa entrever algum desencanto com a democracia.

Em Cabo Verde, sente-se a apreensão de muitos em relação ao futuro. É palpável a pressão para emigrar e os efeitos de saída de mão-de-obra qualificada já se notam em vários sectores de actividade. Combater o mal-estar é urgente e passa fundamentalmente pela melhoria do processo político. Como assinalou Acemoglu, a diminuição da crispação e um maior engajamento da classe política no reforço das instituições são essenciais para ter instituições inclusivas capazes de promover a criação de riqueza.

Infelizmente, o que mais se vem assistindo sob a capa do jogo político-partidário é a erosão das instituições. O ano político anterior foi profícuo nesse sentido. Durante meses seguidos o foco esteve sobre os tribunais judiciais. Das abordagens feitas não ficava claro se a intenção era a realização da justiça ou se era a descredibilização do sistema. Culminaram nas tentativas de pôr em causa o Tribunal Constitucional chegando ao ponto de peticionar o presidente da república para convocar uma sessão extraordinária da Assembleia Nacional. Ainda bem que o PR indeferiu a petição dizendo que não se pode convocar o parlamento para apreciar um acórdão do tribunal constitucional e seus eventuais efeitos.

Depois vieram as irregularidades na gestão dos fundos do ambiente e do turismo. Mas a preocupação em obter ganhos tácticos na disputa político-partidária fazia dos exercícios de fiscalização política simples oportunidades para arremesso político. Não se notava grande vontade de esclarecer factos e tomar medidas para não acontecerem situações similares. Aparentemente alguma cumplicidade transversal aos partidos impede que se ponha em causa o ambiente de campanha permanente que caracteriza a política cabo-verdiana. Não é à toa que o palco para esse tipo de jogo é o plenário da Assembleia Nacional e não as comissões especializadas, onde se podia ir ao âmago das questões e responsabilizar quem de direito.

Seguiram-se questionamentos do Tribunal de Contas num tom partidário que não deixaram de parte os processos e procedimentos como são julgadas as contas do Estado e a forma como os juízes são nomeados. Tudo parece ser válido como pedra de arremesso mesmo quando se tem o poder de iniciativa legislativa para fazer mudanças e melhorias nas instituições, sem que, no entrementes, sejam descredibilizadas. Agora parece que é o Instituto Nacional de Estatísticas. Pouco antes foram as autoridades administrativas independentes que estavam na berlinda. Amanhã será o que melhor for conveniente na jogada política do momento. O que parece escassear é a preocupação com o funcionamento e a integridade do sistema democrático no seu todo e com a necessidade de haver confiança dos cidadãos para se garantir a sua sustentabilidade.

Ao indeferir a petição, o PR relembrou o princípio de separação dos poderes e deixou claro que o poder judicial está cometido exclusivamente aos tribunais. De facto, para que haja respeito pelo princípio da separação dos poderes importa que todos os órgãos de soberania cumpram plenamente com as suas competências: nem mais, nem menos. O governo como órgão executivo e detentor dos meios do Estado para dirigir a política interna e externa do país deve ser alvo por excelência da atenção fiscalizadora de todos, em particular do parlamento, dos partidos e da sociedade, com vista a se manter estritamente dentro das suas competências. Não deve colocar-se na posição de minimizar e desvalorizar o papel do parlamento e da oposição e muito menos de interferir com a independência dos tribunais. A garantia do exercício pleno da cidadania depende disso, assim como o direito da busca da felicidade.

A confiança dos cidadãos, dos agentes económicos e da sociedade em geral não se baseia apenas, na expressão do constitucionalista Vital Moreira, no exercício correcto da função política do poder executivo do governo. Depende também do exercício da sua função administrativa no quadro do qual imperam os princípios de isenção, imparcialidade e igualdade de tratamento de todos os utentes. Quaisquer sinais de partidarização ou de interferência política em entidades administrativas estatutariamente autónomas ou independentes podem minar a confiança na existência de um terreno nivelado para todas as iniciativas dos indivíduos, de justa concorrência para os operadores e de abertura para inovações e recompensa do mérito demonstrado. No mesmo sentido vai a complacência com situações que podem configurar conflitos de interesses ou levantar suspeições de tráfico de influência.

Muitos dos confrontos, que depois se transformam em meros exercícios de arremesso político e acabam por desgastar as instituições, podiam ser evitados, se houvesse da parte do governo a preocupação por cumprir, estritamente nos termos da lei, com a sua função administrativa. A postura do governo e dos governantes nas relações com entidades autónomas e independentes e outros órgãos de soberania deviam traduzir essa preocupação. Com isso, certamente que várias fontes de crispação poderiam desvanecer e mais confiança nas instituições e no futuro do país teriam os cidadãos. Vamos esperar para ver o próximo ano político. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1136 de 6 de Setembro de 2023.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Assegurar a integridade das actividades governamentais

 

O dia 1º de Agosto marcou o início da concessão por quarenta anos dos sete aeroportos e aeródromos de Cabo Verde. A Cabo Verde Airports, S.A. constituída pela Vinci e pela ANA substituiu a empresa estatal ASA na gestão dos aeroportos. O processo foi desencadeado em 2017 quando o governo, através do vice-Primeiro-ministro e ministro de Finanças, afirmou que “temos que ir à procura de quem tem mercado, tem capital, [tem know-how] e conhece todos os ‘stakeholders” para que, no espaço mais curto de tempo, possa alterar o quadro em Cabo Verde. Isso não será possível apenas com a prata da casa”.

Agora que a concessão se concretizou não deixou de espantar e até de criar alguma celeuma o facto de, no espaço de dias, dois destacados administradores da ASA terem sido contratados para posições cimeiras na empresa privada que passou a gerir os aeroportos. Afinal, contrariamente ao que se pensava, parece que não falta “prata da casa para alterar o quadro em Cabo Verde”. Quadro esse caracterizado em entrevista do PCA da ASA a este jornal, em Novembro de 2018, nestes termos: O negócio dos aeroportos não é rentável e durante muito tempo “não houve grande necessidade de recurso a uma gestão mais criteriosa dos aeroportos de modo a torná-los rentáveis”. E tal acontece “porque há o dinheiro da FIR [Oceânica] que naturalmente subsidia os aeroportos”, o que tem “contribuído para que a gestão pura dos aeroportos tenha sido colocada em segundo plano”. Ou não sendo o caso, ou seja, há sim “prata da casa”, como se deve proceder para evitar eventuais portas giratórias entre o público e o privado, de forma a não levantar suspeitas de prejuízo ou secundarização de interesses públicos em negociações com privados, incluindo privatizações, fornecimentos de serviços, consultadorias etc.

Em Cabo Verde ainda persiste um forte preconceito contra a iniciativa privada e um deficiente entendimento da importância crucial do investimento directo estrangeiro (IDE), no que representa de capital, know-how e mercado, para o país se desenvolver. Por isso, é de toda a importância que exista um quadro legal e ético que regule e oriente a contratação de ex-políticos e ex-gestores públicos por empresas que foram por eles tuteladas, reguladas ou supervisionadas de alguma forma. Mesmo nos países mais desenvolvidos há essa preocupação e é patente, por exemplo, nas orientações dos países da OECD para o emprego pós-serviço público. Procura-se evitar que contratações sirvam nomeadamente para pagar serviços prestados, ainda quando ocupando posições no sector público, para uso de informação privilegiada e para aproveitamento como lobista e facilitador no acesso aos centros de decisão político-administrativos.

Já existe no país, em particular para autoridades reguladores independentes e para órgãos de supervisão como o Banco de Cabo Verde, impedimentos para contratação pelas empresas reguladas durante um “período de nojo” que devem respeitar. Outros conflitos de interesses, para os quais poderá não haver enquadramento legal, mas que porventura colocarão questões éticas, deverão merecer atenção especial e eventualmente alguma orientação para os colmatar via código de conduta e um ethos próprio e um sentido de responsabilidade. Em vários momentos no passado houve situações que configuraram conflito de interesses como são entendidos no quadro da boa governança pública e mesmo empresarial. Pelas proverbiais portas giratórias passaram ministros para empresas tuteladas, políticos para autoridades reguladoras independentes e gestores públicos para empresas fornecedoras de bens ao sector público e concessionárias de serviço público e para empresas de consultadoria com lobbying à mistura.

É verdade que ninguém deve ser prejudicado nas suas possibilidades de emprego e de carreira por se ter disponibilizado para servir como gestor público. O que não se pode é ser absolutamente livre, como parece sugerir o comunicado do governo divulgado na sequência da notícia da presença dos ex-administradores da ASA na comissão executiva da Cabo Verde Airports, S.A. A estranheza geral que isso causou é um sinal de como a própria imagem do Estado e das negociações que conduz com entidades privadas em matérias e dossiers cruciais para o país pode ser afectada por dúvidas sobre a transparência e a lisura dos processos.

Um cuidado extra devia-se ter neste processo de concessão dos aeroportos considerando as dificuldades e complicações que se tem tido na concessão dos transportes marítimos e o falhanço recente da parceria com a Icelandair que obrigou à renacionalização da TACV. Impõe-se que a exemplo de outros países com preocupações de “good governance, public and corporate” que se criem regras que permitam fazer essas transições sem que fique prejudicado o interesse público e o interesse dos indivíduos no seu desenvolvimento profissional.

Cabo Verde precisa que os seus esforços de reforma do sistema público incluindo privatização e concessão sejam bem-sucedidos. A competitividade do país e o aumento da produtividade nacional dependem disso. Sem avanços nessa direcção não é possível falar de criação de mais postos de trabalho, de empregos mais bem remunerados, de oportunidades de desenvolvimento profissional que não passem pela emigração e de menor dependência do Estado dos indivíduos e da sociedade civil.

Para isso, porém, é fundamental que o Estado e os governantes, em geral, transmitam a confiança que as políticas e as reformas, por todos consideradas indispensáveis para a sustentabilidade futura da economia nacional, estão a ser conduzidas com o interesse comum em mira. Para essa confiança também é crucial que uma ética e um ethos de serviço público dos intervenientes estejam a ser salvaguardados a todo o momento. Sinais de descaso no processo levam inevitavelmente à descredibilização das instituições e consequente perda de confiança na integridade das actividades governamentais. O país não pode permitir-se esse “luxo”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1135 de 30 de Agosto de 2023.