segunda-feira, 27 de julho de 2020

Ir além do espectáculo

As perspectivas para Cabo Verde no futuro próximo não são boas. Do que se vem ouvindo do VPM e Ministro de Finanças em múltiplas declarações públicas e do que várias vezes tem sido realçado ao longo da semana nos webinars organizados no quadro do chamado exercício “Cabo Verde Ambição 2030” não ficam muitas dúvidas quanto às consequências negativas da pandemia da covid-19 sobre o país.
O impacto esperado mas já sentido em vários sectores virá directamente via redução brusca da actividade económica nacional em virtude das medidas de distanciamento social e de confinamento e da decisão em fechar as fronteiras indirectamente a partir da redução das exportações de bens e serviços, dos fluxos turísticos, das actividades de aviação e globalmente da contraccão no comércio internacional.
Prevê-se que o PIB diminua este ano entre os 6,8 e os 8,5%. Espera-se uma quebra brusca nas receitas dos impostos e nas receitas geradas pelo turismo que passam de 43 milhões de contos para 15 milhões. Supõe-se que irão desaparecer 20 mil empregos e que a dívida pública poderá já no próximo ano elevar-se para valores quase insustentáveis de mais de 150% do PIB. Entretanto, com a quase paralisação da economia aumentou o desemprego, diminuíram os rendimentos e milhares de pessoas viram-se forçadas a regressar às suas ilhas de origem para se ampararem junto das famílias neste momento de dificuldades. A reacção do Estado e do governo direccionada tanto para assegurar algum rendimento às pessoas e às famílias como para garantir a sobrevivência de alguma capacidade empresarial no país conseguiu em parte amortecer o choque, mas não é sustentável a prazo. A ajuda externa não é infinita e há limite no uso que se pode fazer dos recursos do INPS.
A esta simples verdade deve-se acrescentar que a saída do imbróglio só pode ser equacionada a partir da retoma da actividade económica. Agir nesse sentido não pode depender da disponibilização de uma vacina, que, na melhor das hipóteses, só acontecerá no próximo ano. Nem tão pouco deve-se esperar que a confiança entre as pessoas, actualmente afectada por constrangimentos e restrições diversas impostos pela pandemia, por si só se restaure ao nível anterior. Há que ser proactivo e contribuir com medidas estratégicas e encadeadas para que isso aconteça e esperar que na sequência se verifique a almejada circulação de pessoas, bens e capitais, crucial para a criação da riqueza das nações. Para isso uma outra atitude ter-se-á que exigir do Estado, da sociedade, das pessoas e das empresas.
Para começar, dever-se-á abandonar o ilusionismo que acompanha a prática política em Cabo Verde. A realidade pura e dura do país deverá ser encarada sem lirismos e sentimentalismos e com mais honestidade para que os passos que terão que ser dados para diminuir a vulnerabilidade e a precariedade sejam seguros e sustentáveis. A tentação de virar para dentro e construir soluções para o futuro a partir dos parcos recursos do país e do seu mercado exíguo e fragmentado deve ser posta de lado definitivamente agora que a acção do coronavírus veio demonstrar que a insistência nessa atitude perpetua vulnerabilidades e condena muitos a uma precariedade facilmente exposta por qualquer choque externo. Os hábitos adquiridos em conjugação com a adopção do modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa devem ser identificados e combatidos de forma a se romper com o modelo e construir o futuro numa outra base. No mesmo sentido deve-se fazer melhor uso dos fluxos externos para que, com ganhos de eficiência e eficácia na utilização dos meios disponibilizados, finalmente se poder libertar da dependência da generosidade dos outros.
O VPM e ministro das Finanças, Olavo Correia, na entrevista de domingo à televisão pública foi muito claro a dizer que, para o país avançar, a atitude das pessoas e das instituições tem que mudar. Na sua opinião não deverá haver xenofobia em relação ao investimento e aos investidores externos. Chamou a atenção para a impossibilidade de economias de escala num país com uma pequena população e mercado fragmentado. Propôs fazer de Cabo Verde um país-plataforma para poder posicionar-se como um exportador de bens e serviços e estar em condições de suportar um crescimento robusto da economia e criação de empregos de qualidade no horizonte de 2030. Ficou-se porém por saber, talvez porque não questionado nesse aspecto, o quão distante ainda o país e as suas gentes estão de ter as competências necessárias para isso e o que nos últimos quatro anos foi feito para se preencher essa disparidade entre o real e o ideal. Também seria de maior importância que se soubesse qual o grau de dificuldade de mudar realmente a atitude das pessoas e das instituições e o que se teria que fazer para a materializar.
Claramente que não é fácil. Mudar a atitude, trocar o chip e fazer diferente têm sido slogans dos sucessivos governos sem que nada de essencial se tenha verificado. Nem com a pandemia se consegue descortinar mudanças significativas na atitude das autoridades, das instituições e das pessoas. Mesmo face à covid-19 nota-se que ainda se toma governar por fazer política espectáculo a partir de anúncios, visitas, inaugurações e seminários. Também viu-se os costumeiros sinais de autismo nas instituições na gestão da resposta à pandemia omitindo-se nalguns casos e adiando para demasiado tempo decisões sobre testes, criação de equipas de rastreio epidemiológico e instalação de mais laboratórios apesar de repetidos apelos. Na população há sinais que parecem configurar uma espécie de dissonância cognitiva que nem a realidade de um vírus altamente contagioso consegue romper, como se viu da peça emitida pela televisão com jovens na praia de Santa Maria na Ilha do Sal . A partir do diálogo surreal com o repórter compreende-se por que se mostra tão difícil quebrar as cadeias de contágio. Com a maior desfaçatez negam a existência da doença ou negligenciam os seus sintomas sem consideração alguma para o facto que para haver retoma da economia na ilha tem que se acabar primeiro com a transmissão comunitária da doença.
Infelizmente o desencontro entre o discurso, a narrativa e a realidade não é apanágio só de alguns. A prática do ilusionismo na política por demasiado tempo deixou marcas que para serem ultrapassadas vão exigir doses maciças de realismo, uma maior aderência aos factos e um renovado amor pela ciência. Neste momento de crise sanitária, mas que já se percebe que será económica, social e até humana seria de importância fundamental que a honestidade e a verdade se sobrepusessem a qualquer tentação de se continuar a iludir a realidade dos problemas que o país tem a enfrentar. Cabo Verde tem que poder retomar o turismo e as exportações fazendo os ajustes necessários e planeando para o futuro no sentido de maior resiliência desses sectores. Se como diz o VPM o plano de negócios da CVA já não é aplicável há que encontrar uma solução e não permitir que a companhia aérea continue a ser um sugador sem fim de recursos públicos.
Nada porém será feito se não se controlar a epidemia no país e baixar os casos de transmissão para os níveis exigidos pela Europa. A economia cabo-verdiana funciona fundamentalmente com a União Europeia e falha-se gravemente quando não há conformidade com as normas estabelecidas. Sem ilusionismos, dissonâncias cognitivas e outras fugas da realidade deve-se encarar as dificuldades do país e proceder à mudança de atitude que todos parecem reconhecer como essencial para se ter o envolvimento de toda a sociedade no esforço de desenvolvimento do país. Há que se demonstrar a todo o tempo que governar não é mandar, mas sim pensar estrategicamente, servir e responsabilizar-se pelos resultados obtidos.
Humberto Cardoso

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Confiança, o ingrediente crítico

Inicia-se hoje, dia 15 de Julho, uma segunda fase de desconfinamento com a abertura total da circulação aérea e marítima entre as ilhas de Cabo Verde. As restrições tinham sido impostas primeiro pelo estado de calamidade declarado para a Boa Vista a 26 de Março e depois pelo estado de emergência com efeito sobre todo o território nacional a partir de 30 de Março.
A primeira fase de desconfinamento aconteceu a 29 de Maio e, a par com a retomada da circulação entre algumas ilhas e de alguma euforia das pessoas por se verem menos condicionadas nos contactos sociais, notou-se em pouco tempo um aumento do número de casos confirmados de covid-19. A partir de 15 de Junho focos de contágio surgiram na ilha do Sal e em S.Vicente e foram confirmados casos em S.Nicolau e em Santo Antão. Segundo o director nacional da Saúde em conferência de imprensa nesta segunda pode-se distinguir dois momentos na epidemia da covid-19 em Cabo Verde. O primeiro que abrange o estado de emergência em que os casos semanais oscilavam entre os 60 e 84 e um outro com o fim do confinamento em que o número de casos fica no intervalo 126 e 180 com um pico na semana de 22-28 de Junho de 341 casos.
É provável que na sequência da liberação da circulação inter-ilhas e o fim de outras restrições designadamente no acesso às praias se vá entrar numa terceira fase de desconfinamento com consequências imprevisíveis considerando que em Santiago, a ilha mais populosa, ainda a epidemia está activa e no Sal, onde muitos esperam sair da ilha, continua galopante a transmissão comunitária. Não será muito fácil evitar um recrudescer de casos de covid-19 no país e o alastramento para as ilhas até agora poupadas. Tendo em conta os custos que tudo isso pode acarretar para a situação sanitária do país é de se perguntar como se comparam com os benefícios esperados da retoma de circulação inter-ilhas praticamente nos mesmos moldes que existiam anteriormente. Entretanto o país continua sem ligações com o exterior tendo ficado fora da lista de países autorizados a voar para a União Europeia. Um constrangimento que poderá prolongar-se se o país não se mostrar capaz de diminuir para números aceitáveis os casos diários de contágio ou ver-se confrontado com o agravamento da situação sanitária nas ilhas.
Dias atrás o director geral da OMS em várias intervenções públicas foi muito claro a dizer que no futuro próximo não há regresso ao velho normal e que se o básico do controlo da infecção que passa por testar, rastrear, isolar e fazer quarentena não for conseguido a pandemia só vai ficar pior. Também apontou como constrangimentos sérios a politização da pandemia e o envio de mensagens contraditórias que acabam por se tornar em factor de divisão e contribuem para minar a confiança das pessoas nas autoridades sanitárias. A verdade é que por todo o mundo, em maior ou menor grau, dificilmente os actores políticos resistem à tentação de tirar benefícios político-partidários da luta contra a pandemia. Todos a partir do seu ponto de vista e posicionamento no sistema tendem a mostrar o quão importante é o seu contributo para o sucesso na contenção da pandemia. O problema não é a política em si, que em democracia tem que se fazer para conseguir resultados que sirvam o interesse geral, mas as tácticas utilizadas que acabam por criar divisão, confusão nas orientações dadas para se evitar o contágio e alimentam expectativas irrealistas quanto à forma como resolver a crise sanitária. Prejudica-se enormemente aquilo que o Dr. Tedros Ghebreyesus considera o ingrediente crítico de qualquer resposta à pandemia: confiança.
Em Cabo Verde parte das dificuldades com que se depara na contenção da pandemia tem a ver com a colaboração da população. As autoridades queixam-se de que as orientações quanto ao distanciamento social e uso das máscaras não estão a ser seguidas com suficiente rigor. Também consideram que muitos, em particular os jovens, mostram-se displicentes nessas matérias e continuam a organizar festas, idas às praias e a fazer outros ajuntamentos sem preocupação com a transmissão do coronavírus, convictos de que ou não serão afectados pela doença ou então que os sintomas serão ligeiros. O problema talvez advenha de ainda em grande medida não se ter conseguido transmitir às pessoas a real gravidade da covid-19. E isso normalmente acontece como diz o director geral da OMS quando não se comunica claramente com os cidadãos e que não se desenvolve uma estratégia compreensiva focalizada na supressão de transmissões. O que está a acontecer em particular na ilha de Santiago e na ilha do Sal de facto não é tranquilizador nem transmite confiança. Pergunta-se se o que aparentemente resultou na contenção de casos na Boa Vista e em S.Vicente não tem aplicação nas outras ilhas.
Com a proximidade das eleições, a questão de confiança, crucial para a luta contra o coronavírus, tende a ficar mais difícil. A sociedade polariza-se e simplesmente não se consegue o engajamento total da população indispensável para o combate vitorioso contra a pandemia. Tudo fica ainda mais complicado se achas são deitadas na fogueira como aconteceu na última reunião plenária da Assembleia Nacional. Foram levadas para debate e votação matérias potencialmente fracturantes sem suficiente concertação das partes e ignorando que se tratava de legislação que exige dois terços dos votos dos deputados. A descredibilização das instituições e dos seus titulares que daí resulta certamente que não contribui para se manter a frente unida contra a pandemia nem transmite uma imagem de autoridade a quem deve liderar no combate ao vírus. Pior ainda quando, como aconteceu, as divisões não ficaram pelas traduzidas nos posicionamentos de cada partido e saltaram para a rua e pelas redes sociais em acusações e agressões verbais contra membros do mesmo partido. Daí foi um passo para se dar o salto e fomentar o confronto aberto entre naturais de diferentes ilhas.
No mundo inteiro enfrenta-se neste momento a pandemia provocada pelo coronavírus. É reconhecido por todos a necessidade de uma acção conjunta para debelar os efeitos da doença. Os países que menos sucesso têm tido nessa luta são os onde é maior a polarização política e mais dividida a população quanto ao distanciamento social. Cabo Verde não está bem colocado entre os países com maior sucesso no combate ao vírus. Precisa de mais unidade, melhor liderança e mais sabedoria em lidar com a crise sanitária. Devia tomar como exemplo o Ruanda que realmente viveu divisões profundas no seu seio, mas depois conseguiu unir-se para dar combate ao vírus e integrar a lista exclusiva de países com voos para a União Europeia. Infelizmente nem com a ameaça de uma pandemia consegue-se ter foco para, parafraseando Mario Cuomo, ex-governador de Nova Iorque, deixar cair a “poesia” da campanha eleitoral para se dedicar à “prosa” da governação.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Fuga em frente

Cabo Verde celebrou no passado dia 5 de Julho o quadragésimo quinto aniversário da sua independência em circunstâncias únicas. As comemorações aconteceram num momento de pico da epidemia da Covid-19 e numa semana em que os números de casos confirmados no país aproximam-se dos mil e quinhentos, na ilha do Sal e em Santa Cruz o contágio dá sinais de acelerar e só nas ilhas do Fogo e da Brava ainda não se registam casos.
A pandemia constitui um choque global deixando a nu os problemas da pobreza, desigualdade e discriminação. Nenhum país é poupado. Não sendo excepção, seria de esperar que Cabo Verde usasse a data de 5 de Julho, que devia ser de unidade nacional, para assumir o quanto se tem ficado aquém de outros países insulares similares em matéria das metas de crescimento, do emprego, da educação e da saúde. Podia-se aproveitar para uma demonstração de unidade e firmeza para realmente se mudar de rumo na condução do país de modo a que deixe de ser tão vulnerável e dependente da generosidade externa.
Infelizmente tirando a disposição das personalidades e convidados nas cerimónias, cumprindo com as regras de distanciamento social, ficou-se pelo habitual ritual dos discursos a reconhecer mais uma vez que valeu a pena a independência nacional e a demonstrações de gratidão pelos que, como foi dito no acto da proclamação da independência, “se bateram na Guiné e estavam prontos e decididos para o combate armado em Cabo Verde”. O Presidente da República ainda reconheceu que Cabo Verde podia estar melhor, mas não elaborou muito para além dessa constatação. O facto de Cabo Verde ter um rendimento per capita três vezes menor que as Maurícias ou quatro vezes menor que das Seychelles, economia menos diversificada, níveis de educação e de saúde inferiores a esses países que têm praticamente os mesmos anos como países independentes não parece ser motivo suficiente para uma reflexão séria e honesta sobre a trajectória do país nos últimos 45 anos.
Nem a ameaça da pandemia sobre as populações vulneráveis, agravando a precariedade geral das pessoas, mostra-se suficiente forte para impedir que se continue a meter a cabeça na areia e a proclamar que Cabo Verde é um caso de sucesso e que bateu todos os prognósticos que o tinham como inviável. A ajuda externa e o hábito de se recorrer à generosidade internacional sempre que há secas, inundações, erupções vulcânicas epidemias ou alterações climáticas parece que tem o efeito de perpetuar o gosto pelo ilusionismo em que tudo é possível sem custo e sem um esforço colectivo para diminuir a dependência e lançar verdadeiramente as bases de um desenvolvimento sustentável. Nem a perspectiva de ver a dívida pública subir para níveis insustentáveis no mundo pós covid-19, com Cabo Verde e Angola a competirem pelos lugares cimeiros entre os países africanos mais devedores, consegue que se caia na realidade de um país dependente e frágil.
Há quem alimenta ainda a esperança que um dos choques externos venha a ter um efeito transformativo e finalmente ponha o país e os seus governantes numa outra relação com a realidade. O coronavírus parecia talhado para esse fim considerando as consequências graves sobre a saúde, o rendimento actual e as perspectivas de futuro que está a ter ao nível planetário. Paradoxalmente em muitos países não se verifica esse impacto transformativo. Talvez porque nalguns os governantes ciosos de demonstrar que venceram a luta contra o vírus apressaram-se a desconfinar. Noutros, os governantes desvalorizaram a situação e tardaram a reagir. Noutros ainda, a ineficácia da actuação centralizada do Estado dificultou a identificação dos problemas, impediu a coordenação e actuação atempada e não potenciou os recursos humanos e materiais existentes. Em todos esses casos as consequências notam-se imediatamente na resistência das pessoas em seguir as orientações das autoridades e em aceitar as recomendações feitas. Casos confirmados tendem a aumentar particularmente nos locais onde só um elevado nível de colaboração poderia substituir a falta geral de condições para se fazer distanciamento social e manter padrões aceitáveis de higiene.
No caso de Cabo Verde vê-se que se perdeu o potencial efeito transformativo da pandemia do coronavírus quando se persiste na mistificação do passado sem querer saber das origens das fragilidades do país e da sua perpetuação até ao presente e ainda se força uma descolagem da realidade com o convite à discussão da agenda “Cabo Verde Ambição de 2030”. Ou seja, lança-se uma névoa sobre o passado e faz-se uma fuga para o futuro. Nessas circunstâncias é evidente que lidar com o presente fica extremamente difícil. Exemplo disso é o ir e voltar atrás nas decisões sobre a circulação aérea e marítima na ânsia de propiciar o regresso da “normalidade” anterior correndo o risco de facilitar a transmissão do vírus para as ilhas mais desprotegidas, como aliás aconteceu. No mesmo sentido é a precipitação sobre o futuro da CVA e da TACV com pronunciamentos oficiais de garantia que vai continuar mesmo quando já não parece possível seguir o modelo de negócios do hub do Sal e se quer voltar aos voos étnicos e também com decisões em manter o leasing de três aviões praticamente inactivos durante a pandemia. Surpreendente ainda é o anúncio que se vai generalizar o ensino à distância e que para isso vão alocar verbas no orçamento rectificativo de 311 mil contos para “hardware” e sistemas de comunicação incluindo a compra anunciada pelo primeiro-ministro de 10 mil televisores e tablets. E como seria de esperar, para o “software”, ou seja, a criação de conteúdos e preparação dos professores fica-se por uma pequena verba de 21 mil contos.
Espanta a rapidez com que se fez a avaliação da experiência no ensino à distância nestes meses de covid-19 a ponto de se estar a investir nesta escala para a generalizar. É de se perguntar por que nunca se tinha pensado nisso apesar de as tecnologias da televisão de há muitas décadas terem sido generalizadas pelo mundo fora. Também é de se perguntar em que pé fica a luta pela qualidade e excelência. Será que mais uma vez vão ser sacrificadas em nome de um ensino massificado, do básico ao universitário, que, como todos hoje reconhecem, não serve o país. Muito menos poderá constituir a base para a economia do conhecimento que a agenda Cabo Verde Ambição 2030 supostamente propõe. A fuga em frente que se está a protagonizar configura ser mais uma reedição do jogo que se vem repetindo ao longo dos 45 anos de independência no qual a ênfase é colocada nos meios disponibilizados por parceiros internacionais ou mobilizados através da dívida pública em detrimento dos resultados na vida das pessoas e do retorno adequado dos investimentos feitos.
Fazer deste assalto do coronavírus um momento transformativo para o país deveria ser a oportunidade que supostamente todas as crises facultam. Infelizmente tudo indica que não vai acontecer e que vão continuar a reproduzir-se as vulnerabilidades e precariedade que a pandemia veio revelar com acuidade. E assim é porque como uma vez disse George Santayana “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 971 de 8 de Julho de 2020.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Risco moral

Sempre que se desencadeiam crises sejam elas financeiras, económico-financeiras ou de outra natureza – como é actualmente a pandemia provocada pelo coronavírus – e que medidas são tomadas para mitigar os seus efeitos, vem à tona a questão do “risco moral”. Interroga-se se os que de uma forma ou outra contribuíram para a crise não estão a ser os maiores beneficiários das medidas tomadas na sua contenção.
Aparentemente beneficiam das novas facilidades como infusão directa de dinheiro no sector privado, linhas de crédito com juros bonificados e garantias estatais para além de outras facilidades de liquidez proporcionadas pelos bancos centrais, sem que tenham assumido qualquer responsabilidade pelos prejuízos causados. O grosso do custo entretanto fica com quem perdeu o negócio ou o emprego, viu as suas poupanças desaparecerem e o seu futuro ficar difícil com as incertezas criadas. Também ninguém desconhece que em última instância, quando os efeitos da crise e o impacto da sua mitigação vão somar à dívida pública, são os contribuintes a assumir o fardo deixado pela incúria governativa e pelas falhas da regulação.
A questão do risco moral foi nos últimos 25 anos introduzida com a crise financeira asiática de 1997, retomada com a crise dos “hedge funds” em 1998 e denunciada veemente na sequência da crise de 2008 que começou por ser financeira para logo se revelar como crise económica, crise da dívida soberana e crise social. A indignação geral, quando se constatou a forma como muitos banqueiros e investidores saíram da crise mais ricos com os seus bónus e dividendos enquanto a generalidade das pessoas lutava contra o desemprego e a perda de rendimentos, serviu para lançar descrédito sobre as democracias.
O resultado foi a crise de representação que se seguiu, a descredibilização das instituições, a investida contra as elites e o progressivo desencanto com a globalização. Não espanta pois que nos últimos anos por todo o mundo tenha aumentado o fascínio pelas soluções populistas e pelos seus líderes mesmo quando se revelam autocráticos e incompetentes. A mover as pessoas estaria a percepção que uma elite cada vez mais rica beneficiava de um ambiente de progressiva globalização e de mais desregulação e que, quando algo corria mal, a carga e o infortúnio recaiam sobre a maioria, aumentando ainda mais a precariedade e as incertezas.
A resposta à crise provocada pela covid-19 foi ainda mais drástica do que nas crises anteriores. A urgência em quebrar cadeias de transmissão levou à quase total paralisação da economia e ao desemprego súbito de milhões de pessoas. As medidas de política tomadas por vários países, designadamente os três trilhões de dólares nos Estados Unidos, os 750 mais 800 bilhões de euros nos países da União Europeia e um trilhão de dólares no Japão juntos com estímulos de muitos bilhões feitos pela China e outros países não vão impedir que a economia mundial entre numa grande recessão económica só comparável à grande depressão dos anos trinta do século XX. Mesmo não havendo no caso uma elite que inequivocamente estivesse na origem da crise ou a tivesse facilitado, não se deixará de colocar a questão de quem irá beneficiar mais dos enormes estímulos feitos e se as medidas tomadas vão no sentido de criar as condições para uma retoma mais rápida ganhando todos ou se desproporcionalmente vão favorecer os «suspeitos do costume».
Há quem como a economista Mariana Mazzucato num artigo recente no Project Syndicate queira reduzir o risco moral associado às medidas anticrise e insista que sejam condicionadas. Sugere que se obrigue o Estado e o sector privado a agir e a investir de forma estratégica para conseguir um crescimento que atinja o maior número de pessoas. O objectivo é, recuperando rendimentos e diminuindo desigualdades sociais, se restaure o pacto social que mantém as democracias vivas, viáveis e dinâmicas e se ponha um travão às derivas populistas e autocráticas.
Nos países em desenvolvimento o problema de diminuição do risco moral coloca-se talvez com maior urgência. As dificuldades encontradas por esses países na busca de um desenvolvimento sustentável indicia as ineficiências já existentes na utilização de recursos próprios e dos recursos conseguidos via doações, empréstimos concessionados no âmbito da ajuda externa bilateral e multilateral. Ineficiências essas que se traduzem na apropriação por alguns de parte significativa dos fundos disponibilizados levando a desigualdades sociais gritantes, a par com a persistente vulnerabilidade e precariedade das populações que deles deviam beneficiar. As consequências desse estado de coisas tornam-se particularmente evidentes sempre que acontece algum choque externo sob a forma de secas ou inundações, baixa no preço internacional do principal produto de exportação ou súbita quebra na pujança económica dos principais parceiros. A pobreza aumenta, a dívida pública dispara e a pressão para se conseguir mais ajuda externa ganha um outro ânimo. Infelizmente ineficiências várias tendem a manter-se e os ciclos são repetidos ficando a população cada vez mais vulnerável enquanto as desigualdades aumentam e se aprofunda a polarização social.
Em Cabo Verde os três anos de seca consecutivos de 2017-2019 vieram comprovar o elevado grau de vulnerabilidade das populações rurais designadamente em Santiago, Santo Antão e Fogo. De pouco terá servido o programa do Banco Mundial que desde 2005 investiu na luta contra pobreza mais de 110 milhões de dólares ou as centenas de milhões de dólares investidos nos campos de Cabo Verde na mobilização de água, na construção de barragens, em sistemas de irrigação e nas múltiplas acções de formação e apoio directo ou indirecto às pessoas. Alguns terão tido ganhos, mas não as populações visadas. A questão que se coloca é se desta vez vai ser diferente.
A pandemia pôs o turismo que representa 25% do PIB em suspensão pelo menos por alguns meses. A necessidade de confinamento deixou milhares de pessoas que antes viviam da actividade informal numa situação de precariedade única. Os que que até Setembro vão beneficiar do novo regime de layoff simplificado com o salário reduzido a 70% vão ter que lidar com a incerteza sobre a continuidade futura da actividade em que actualmente labutam. O país não tem uma posição nas cadeias de valor internacional que lhe permita reactivar exportações de bens e serviços logo que findo os constrangimentos nos transportes se verificar a retoma da procura internacional. Quer isso dizer que não é certo que no pós covid-19 o país esteja em melhor posição de diminuir o défice orçamental, baixar a dívida pública e retomar os equilíbrios macroeconómicos indispensáveis ao desenvolvimento sustentável.
O facto de vir a receber grande volume de ajuda externa – o orçamento rectificativo prevê, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, um montante de 144 milhões de euros que, ao que tudo indica, vai ser canalizado para garantir algum rendimento à população e liquidez à economia – não significa, como não significou antes, que investimentos adequados serão dirigidos estrategicamente para garantir expansão económica rápida no futuro. A tentação é como das outras vezes de se deixar incorrer em risco moral tomando como garantido que haverá sempre ajuda externa e repetir a forma de fazer as coisas que invariavelmente tem beneficiado uma minoria, deixando largas franjas da população numa situação de precaridade. A gravidade desta pandemia e o impacto único que está a ter o mundo é um forte aviso que não há muito espaço para esse tipo de comportamento e que de há muito passou o tempo para uma mudança de rumo e de atitude. Tomar uma resolução firme nesse sentido seria a melhor forma de celebrar os 45 anos de independência nacional que se completam no próximo dia 5 de Julho.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020.