segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Ir além do corporativismo

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em 2016, num discurso proferido no início do ano judicial em Portugal disse que desde os fins dos anos noventa a Justiça está sob um escrutínio mais apertado dos portugueses. Clamam por uma justiça menos lenta e mais acessível e o país, por sua vez, precisa de uma justiça mais eficaz no dirimir de conflitos, na defesa dos direitos e em fazer cumprir obrigações legalmente estabelecidas para ser mais competitivo e atrair mais investimento privado nacional e estrangeiro. A atenção recente sobre a justiça seguiu-se a períodos em que o foco sobre os problemas do regime democrático inaugurado com o 25 de Abril recaía algures: nos primeiros tempos era ultrapassar a relação com os militares de Abril, depois foi abrir a Constituição para suportar uma economia de mercado e por último a necessidade de integração na Europa. Com as energias concentradas nos centros políticos de decisão deixou-se evoluir por si próprio o poder judicial sem o acompanhamento que os tribunais como órgão de soberania e fundamentais para o sistema democrático e para o Estado direito mereciam. O resultado, como notado no último Painel sobre a Justiça na União Europeia (2017), Portugal está entre os países com a justiça mais lenta: “A Justiça portuguesa demora, em média, 710 dias para resolver processos cíveis, comerciais e administrativos nos tribunais da primeira instância, sendo apenas ultrapassada pela do Chipre, que ascende aos 1085 dias”
Situação análoga terá acontecido em Cabo Verde, uma democracia ainda mais jovem em que a edificação das instituições democráticas revelou-se algo mais complexa porque realizada num ambiente pressionado para fazer a mudança na continuidade tendo como “parceiro” no papel de força política de oposição o partido que durante 15 anos encarnou o regime anterior. A actividade política necessária para garantir a estabilidade política e ao mesmo tempo realizar as reformas profundas que se impunham no processo de transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado concentrou grande parte da atenção dos sujeitos políticos e da sociedade em geral. Como em Portugal, o poder judicial em Cabo Verde, que todos agora em democracia queriam que fosse independente e sem estar sujeito a interferências estranhas, pôde durante muitos anos navegar “abaixo do radar” do escrutínio público. Nesse quadro persistiu a lentidão da justiça conhecida por todos e aproveitada por muitos para conseguir a impunidade em muitas situações com prescrições de casos e com impossibilidade prática de execuções, de despejos e de cobranças de dívidas. Quantas vezes cidadãos e operadores económicos prejudicados nos seus interesses na relação com o Estado também não ficaram com forte impressão que agentes ou entidades públicos aproveitaram-se da esperada lentidão da justiça para não os ressarcir nos seus direitos.
Hoje, depois de anos de estabilidade democrática e de alternâncias dos partidos no governo, há mais tempo para um olhar mais profundo e escrutinador sobre o sector da justiça particularmente porque insiste em não responder com resultados às expectativas das pessoas. Depois de anos a pedir meios e recursos diversos, a sua eficácia não se alterou significativamente com perdas para as pessoas, para as empresas e para o país que se vê sem competitividade e sem atractividade para o capital estrangeiro tão fundamental para o crescimento económico e para a criação de empregos e para a expansão das exportações de bens e serviços. O empoderamento das magistraturas com alargamento das suas competências na gestão e disciplina dos magistrados e das secretarias judiciais e as transferências de meios correspondentes não teve os resultados esperados. A percepção que faltava um esforço consequente e comprometido ganhou força quando todos se aperceberam que não conseguiam pôr de pé um serviço de inspecção dos juízes e das secretarias judicias essencial para efectiva gestão dos mesmos. Parece que os conselhos se acomodaram durante anos à falta de vontade dos magistrados em servirem como inspectores por razões de natureza pessoal, de amizade, familiaridade ou proximidade mas que naturalmente são tomadas por qualquer outra pessoa como sinal de desresponsabilização em relação ao serviço público a que são obrigados. Vinda a público, esta falha grave quanto à inspecção judicial foi a pedra no charco que deitou tudo a perder e atraiu críticas de vários quadrantes, algumas justas e outras nem tanto. As pessoas apercebiam que, se os magistrados enquanto corpo não se sentiam pressionados para se avaliarem, como iriam mostrar uma atitude diferente quando fosse de melhorar a produtividade e de aprimorar o comprometimento na prestação de serviço público.
Nos anos que se seguiram à revisão constitucional de 2010 assistiu-se ao reforço do espírito corporativo na magistratura judicial em sintonia com as alterações constitucionais no sentido de maior autonomia e independência do poder judicial. De facto, o STJ passou a ser constituído só por magistrados judiciais, o CSM ganhou maioria absoluta de magistrados e já podiam ser remunerados por funções de docência prestados a outrem. Foi alterada significativamente a relação com o governo através do Ministério de Justiça com a autonomia administrativa e financeira dos conselhos de magistratura que passaram a ter orçamento próprio que já atinge no orçamento de 2018 o valor de várias centenas de milhares de contos. Apesar do afã em transferir poderes e recursos não se verificaram os progressos na administração da Justiça que era esperada.
Neste particular, também os outros componentes do sistema, a polícia, o ministério público e a ordem dos advogados não se têm mostrado muito diferentes. Todos muito ciosos das suas prerrogativas, em geral, não têm ou são incipientes os mecanismos internos de inspecção com capacidade para avaliação de mérito ou de reavaliação de métodos ou técnicas ou planos de acção. Respondem com tiques corporativos às críticas ou exigências de melhor prestação e não poucas vezes defendem-se passando a culpa de uns para os outros ou queixando-se da falta crónica de meios. Ultrapassar este estádio em que a relação com o poder mostra-se mais no sentido de usufruto e menos de exercício é fundamental para que haja convergência de forças e de vontades que podem fazer tudo acontecer com profissionalismo e com responsabilidade. É isso que o país e as pessoas esperam de quem mesmo não sendo eleito exerce funções vitais para a salvaguarda da democracia e do Estado de Direito. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 830 de 25 de Outubro de 2017.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

À procura de economias de escala

Cabo Verde tem um problema central de escala. O relatório da Competitividade 2017 põe o país na posição 137 em 138 países quanto à dimensão do seu mercado, tanto interno como o externo. É um facto que a dimensão do país, a pequenez da sua população e a sua posição geográfica afastada dos grandes centros dinâmicos da economia mundial tornam extremamente complexa encontrar uma via rápida para o desenvolvimento. Tal constrangimento nem sempre foi tido em devida conta pelos governantes ao longo dos anos. Perdeu-se tempo com modelos de desenvolvimento com base na substituição de importações, não foram aproveitadas no tempo certo as oportunidades de exportação que existiam no quadro do Sistema Geral de Preferências e evitou-se como se praga fosse o turismo que poderia trazer procura externa necessária para a dinâmica da economia. Há mais de 25 anos que se assumiu que o caminho deve ser outro, que o país tem que se focar na produção de bens e serviços, expandir os mercados e tornar-se competitivo para poder desenvolver e prosperar.

Saber que é assim, não significa porém que se queira fazer para que aconteça. A via aparentemente mais fácil da reciclagem da ajuda externa foi a miragem que não deixou que a orientação do país fosse mais consequente em contornar o problema estrutural de mercado exíguo. Não se insistiu com políticas de atracção de investimentos externos que além de capital e tecnologia trouxesse mercados, nem se procurou no quadro de uma perspectiva estratégica mobilizar um fluxo externo forte de pessoas na condição de turistas, de visitantes, ou de pensionistas. Não estranha que cresça cada vez mais a sensação de que se esticou a corda demais e que hoje com a dívida pública pesadíssima, reformas estruturais por fazer, custos elevados de factores, um capital humano aquém do exigível e sérias dificuldades em certas empresas estatais a economia não avance com a rapidez que seria de esperar. As sucessivas quebras de eficácia em sectores-chave da vida do país designadamente nos transportes aéreos, segurança, justiça, saúde, educação, transportes marítimos, passam a impressão de que se atingiu um limiar preocupante que para não ser ultrapassado irá exigir outra atitude e outro comprometimento para se ter uma inflexão positiva no rumo que as coisas parecem estar a tomar.
Caso paradigmático do que está a passar é a questão à volta dos transportes marítimos inter-ilhas que tem dominado as conversações entre os armadores e governo. A realidade actual é que as ilhas padecem de um sistema de transporte marítimo que com regularidade, custos justos e segurança as liguem por forma a que o país deixe de ter o mercado fragmentado, imprevisível e dominado por ciclos de carências e abundâncias que na prática inviabilizam muita actividade económica ou deixam-na basicamente na condição de actividade de subsistência. De facto, sem um mercado interno unificado pelas verdadeiras auto-estradas ligando as ilhas que seria ter uma carreira regular a baixo custo não é possível potenciar para além da subsistência básica o pouco que ainda o país consegue produzir e movimentar para o mercado. Muito menos pensar em aproveitar-se da procura gerada pelo turismo em particular nas ilhas orientais para dar o salto para actividades económicas que realmente tragam rendimento significativo às famílias e sejam capaz de criar e garantir empregos em número suficiente para debelar o desemprego, há muito estrutural em Cabo Verde.
Como se pode constatar das queixas dos armadores e também dos utentes, é claro que uma primeira e grande dificuldade em ter transportes frequentes a custos razoáveis entre as ilhas está relacionado com o volume de mercadorias e de passageiros que o país consegue movimentar nas actuais circunstâncias. O mercado pequeno faz com que as ligações sejam infrequentes e caras. A falta de regularidade inibe a produção de mercadorias e prejudica o estabelecimento da relação de compra e venda que poderia hipoteticamente justificar maior frequência e custos mais baixos. Romper este círculo vicioso com subsídios, concessões de linha e eventualmente outros mecanismos, designadamente taxas e facilidades portuárias mais ajustadas devia há muito ser uma prioridade das políticas do país. Particularmente quando se está em presença de mercados potenciais em expansão rápida nas ilhas do Sal e da Boa Vista que bem podiam ser explorados se dado o empurrão inicial com sentido estratégico. O país precisa urgente que o turismo tenha cada vez maior capacidade de arrastar o resto da economia viabilizando mais iniciativas económicas, criando mais emprego e aumentando o rendimento disponível.

A consciência de que é preciso criar escala em termos de mercado, de volume de carga e de movimentação de passageiros, deve guiar a actuação das autoridades no seu esforço de aumentar rapidamente o impacto que o turismo tem sobre o resto da economia e também de diminuir as assimetrias regionais pela via da potenciação da capacidade produtiva de cada ilha. Dificilmente, porém, se conseguirá fazer isso se se continuar com o que é aparentemente a tendência actual de abrir completamente os portos da ilha do Sal e da Boa Vista ao tráfego internacional. A diminuição de carga na cabotagem que implicará com a chegada de contentores directamente do exterior certamente que não irá contribuir para o abaixamento do preço e aumento da regularidade do tráfego inter-ilhas. Os produtores nacionais terão sérias dificuldades em competir com fornecedores designadamente das Canárias que chegam directamente aos mercados turísticos dessas duas ilhas. Para o Estado, a consequência será manter indefinidamente subsídios para a cabotagem sob pena de ver aumentar ainda mais as assimetrias. Globalmente para a economia nacional significará menor participação da produção nacional, menos crescimento, mais migrações internas e desemprego persistente.
A realidade histórica do desenvolvimento económico não postula sucesso no desenvolvimento nos países que abriram completamente o seu mercado interno aos operadores estrangeiros deixando vulnerável o empresariado nacional. Em países com mercados pequenos a situação é mais complexa porque há situações em que há mercados imperfeitos e outras onde há falha completa do mercado e o Estado tem que intervir. No caso de Cabo Verde, a actuação do Estado devia pautar-se por uma actuação flexível e inteligente no sentido de ultrapassar as imperfeições do mercado, de ajudar na superação da fraqueza do empresariado local e de criar condições para o melhor aproveitamento das oportunidades. Infelizmente, não tem sido assim como bem testemunha o programa Casa para Todos e projectos similares. Às estratégias dos outros há que responder com uma estratégia própria que garanta a realização e sucesso do empresariado nacional nas condições restritivas do mercado existente no país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 829 de 18 de Outubro de 2017. 

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Inquietações

O início do novo ano político ficou marcado pelo caso dos manuais escolares que dominou o debate público tanto nos órgãos de comunicação social como nas redes sociais e em outros espaços informais. Os erros flagrantes, as dificuldades do ministério da Educação em se explicar e o protorganismo do primeiro-ministro ao longo do episódio garantiram que a atenção do país nele se fixasse até o momento em que as autoridades cederam e retiraram os manuais com promessa de uma nova edição revista. O incidente, na sequência de outros que têm deixado as pessoas algumas vezes perplexas e outras vezes apreensivas, acabou por criar uma certa inquietação. A alternância de governo em 2016 tinha alimentado a esperança que se ia fazer diferente, pôr fim ao ilusionismo e focalizar-se na criação de riqueza e prosperidade geral. Um caminho que exigiria mais eficiência na utilização dos recursos e maior eficácia em obter resultados. A inquietação vem da percepção de que se estará a perder tempo, recursos e oportunidades quando o país, por todas as razões já sobejamente conhecidas, pouco espaço tem para manobra.
Martin Wolf, o economista chefe do jornal Financial Times, num artigo recente, deixou claro que economias que não crescem são as em que a liderança se caracteriza em  insistir num  pensamento mágico, falha em criar incentivos que motivam as pessoas a criar riqueza, menospreza a importância das instituições em garantir esses incentivos e não reconhece a importância central do investimento privado nacional e estrangeiro na dinamização da economia. Ora, em Cabo Verde nos últimos anos viveu-se muito à custa do discurso mágico, os incentivos visaram mais aumentar a dependência do Estado, a segurança jurídica e institucional ficou muito aquém do desejável e ninguém procurou traçar uma estratégia de atracção de investimento externo, deixando-se levar pelo que era oferecido pelos operadores como aconteceu em sectores como o turismo, indústrias e transportes. Os resultados não podiam ser os melhores e depois de mais de cinco anos de crescimento médio à volta de 1% é que aparecem sinais de que poderá subir patamares superiores como o já verificado no crescimento do PIB em 2016 de 3,8% e a previsão do FMI para 2017 em 4%.
 Uma nota de aviso está porém presente nas projecções nos anos seguintes até 2022. Só se projecta que o crescimento passe para 4,1% do PIB em 2018 e aí se mantenha até 2022. Compreende-se que para as instituições de Bretton Woods não haja grandes expectativas de crescimento se se tiver em conta que o ambiente de negócios e a competitividade actual do país assim como foi avaliado pelo Forum Económico Mundial o situa no grupo dos piores entre os 138 países do relatório. Romper com este estado de coisas não é fácil, mas é o que se espera do actual governo para que o país atinja os níveis de crescimento económico necessários para realmente debelar o desemprego, combater a pobreza e manter viva a esperança da mobilidade social e prosperidade futura. Aliás, a promessa do crescimento de 7% para se poder criar os 45 mil postos de trabalho foi feita com essa convicção. Por isso que a reacção nem sempre satisfatória do governo em termos comunicacionais e mesmo de oportunidade perante percalços diversos tem trazido alguma inquietação. Há nas pessoas uma percepção profunda de que o país está numa encruzilhada e que para poder ultrapassá-la é fundamental uma liderança com visão e determinação e com capacidade para congregar vontades na consecução dos objectivos propostos. 
Mais do que nunca as pessoas querem ver eficácia na acção governativa mesmo quando não concordem totalmente com as políticas ou tenham uma perspectiva política partidária diferente. Por isso é que as críticas ou pontos de vista diferentes não devem ser considerados “barulho” por quem governa e que ninguém deve reclamar que seu partido é Cabo Verde como se os outros também não o fossem nesta república democrática e plural. É num ambiente de pluralismo em que os direitos da oposição são respeitados e que diferentes instituições do Estado cumprem na plenitude com as respectivas competências  que se tem maior probabilidade de acertar com o caminho certo. Parafraseando Martin Wolf, evita-se o pensamento mágico, os incentivos não são contaminados por interesses particulares e dão garantia de estabilidade e de previsibilidade e ainda constrói-se a confiança necessária para que nacionais e estrangeiros queiram investir e por essa via contribuir para a criação da riqueza.
A crise que atravessa as democracias modernas tem servido de munição para certos sectores de opinião que sempre tiraram grande satisfação em apontar falhas ao que chamam democracia formal. Os alvos preferidos são os partidos, o parlamentarismo, o sistema eleitoral proporcional e faz-se apologia dos mecanismos da democracia directa e de formas presidencialistas de governo. O apelo ao populismo e ao “sistema do homem forte” e do “chefe” não limitado por instituições e normas está sempre aí presente. Até se reclama que seria mais eficaz por não obrigar aos procedimentos constitucionais tidos como perda de tempo e limitativos de acções de governação. A realidade histórica porém demonstra que tais derivas desembocam invariavelmente em tirania, maior desigualdade social e mais pobreza.
 Os partidos podem ter muitos defeitos, mas são eles que cristalizam as alternativas dentro do sistema, quem no presente ou no futuro os eleitores podem exigir responsabilidade e quem pode fornecer referência ideológica, recursos organizacionais e suporte político activo a governantes e forças de oposição no jogo democrático essencial para levar o país para o melhor caminho. O caso já paradigmático de Donald Trump nos Estados Unidos demonstra como a eficácia da governação é negativamente afectada quando se governa sem o respaldo do partido e se procura refugiar ou em pretensas soluções tecnocráticas ou em esquemas de quero, posso e mando. Dá para pensar o que não vai bem em Cabo Verde e que leva a uma inquietação generalizada e à preocupação com alguma falta de eficácia do governo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 828 de 11 de Outubro de 2017. 

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Tirar as palas

Saiu mais um relatório de competitividade publicado pelo Fórum Económico Mundial e Cabo Verde continua entre o grupo dos países menos competitivos do mundo. No ano passado a posição era de 110/137 países e este ano continua no número 110 entre 138 países sendo ultrapassado por países da África subsaariana como o Senegal, o Quénia, as Maurícias e Ruanda. O índice de competitividade de 3.8 registado em 2016 manteve-se em 2017 sugerindo que não houve alterações de fundo nos factores que podiam ter tornado a economia mais competitiva. O maior constrangimento aos negócios continua a ser o acesso ao crédito, mas de 2016 para 2017 a ineficiência da burocracia do Estado passou para o segundo lugar e a inadequação da educação e formação da mão-de-obra começou a pesar mais, enquanto factores como taxas e regulamentos de imposto tornavam-se menos impeditivos à actividade empresarial. A caminhada prometida pelo Governo para colocar Cabo Verde entre os primeiros cinquenta países mais competitivos do mundo não parece que tenha começado com a dinâmica que seria de esperar.
Os relatórios do Fórum Económico Mundial colocam Cabo verde entre os países intermédios em matéria de desenvolvimento cujo crescimento depende cada vez mais da eficiência com que se souber gerir os recursos naturais e humanos, as suas infraestruturas, os investimentos e as oportunidades. Segundo a sua avaliação, a dinâmica económica já não provém simplesmente da injecção de recursos como acontece nos países menos desenvolvidos nem ainda está em posição de fazer da inovação o grande motor do crescimento como fazem os países mais desenvolvidos. A fase actual é de luta pela eficiência a todos os níveis, num combate permanente contra o desperdício de recursos e má utilização de meios disponíveis e a favor de uma maior produtividade e eficácia em tudo. É evidente que isso, para ser possível, exige uma outra postura do Estado, da administração pública, das câmaras municipais e de outras entidades públicas   orientadas para os resultados, avessa à apropriação indevida de bens públ icos, facilitadora de iniciativas geradoras de riqueza e contrária ao tráfico de influência  e a práticas assistencialistas e indutoras de dependência.
Para se avançar nesse caminho há que primeiro confrontar a realidade do país tal qual ela é. Há que ir para além dos ilusionismos que práticas políticas estabelecidas insistem em reproduzir. Há que ir além da forma de governar que, dependente da ajuda externa, fica sem margem de manobra e adopta as soluções dos financiadores em detrimento de uma estratégia própria. Há que ir além da prática já enraizada nas instituições do país de se auto-servirem em nome de políticas de redistribuição em vez de servir o processo que leva à criação de riqueza e à prosperidade. Há que ir além da prática de varrer os problemas para debaixo do tapete esperando que se resolvam por si só ou que miraculosamente desapareçam. Há que confrontar interesses corporativos e outros instalados em vários sectores que beneficiam do status quo e resistem às mudanças em detrimento dos muitos que continuam excluídos de uma economia que não consegue criar postos de trabalho suficiente e de qualidade. Há ainda que romper com o eleitoralismo que ameaça condicionar todos os actos das autoridades do país e que não deixa planear para o médio e longo prazo como se os governantes não tivessem recebido mandatos de quatro e cinco anos ao fim dos quais seriam avaliados pelo povo.
Um país frágil e dependente como Cabo Verde devia exigir posturas realistas e pragmáticas dos seus governantes. Infelizmente, diferentemente do que se passou noutros espaços com constrangimentos similares aos de Cabo Verde como as Seicheles, Singapura e Maurícias, os governantes cabo-verdianos insistiram em ser avaliados pela sua capacidade de trazer recursos via ajuda externa ao país e não pela direcção do país num caminho que o faria menos dependente, mais próspero e com desenvolvimento sustentável. O exercício do poder nestas circunstâncias e a sua sustentabilidade dependem da reprodução do modelo de dependência. Para disfarçar que realmente querem isso, alimentam a sociedade com visões de desenvolvimento em que aparecem clusters, hubs, praças financeiras, plataformas digitais e em que se repete mais uma vez a importância geoeconómia e geoestratégica do país como o grande recurso que pode pôr tudo em marcha. Anos passam, as mesmas balelas voltam com outras roupagens, sem que se veja medidas essenciais para se caminhar na concretização serem tomadas de forma compreensiva. Entretanto, o que se esperaria que fosse essencial, é descurado como acontece em particular com a segurança, com as ligações entre as ilhas e com a educação que devia a ser a grande aposta do país.
O que aparentemente se passou os novos manuais escolares é típico do que demasiadas vezes acontece. Há um financiamento estrangeiro, muitas vezes com condicionalismos na sua aplicação, e no afã de o aproveitar não se dá a devida atenção aos custos escondidos que depois paga-se caro. Já aconteceu várias vezes nos últimos tempos com o programa “Casa para Todos” e com as muitas obras públicas feitas com crédito português supostamente concessional. Conhecem-se alguns custos dessa aventura: a dívida pública muito acima dos 100% do PIB, o sector empresarial nacional destroçado e os custos de manter estruturas de viabilidade bastante duvidosa, sem falar nas expectativas frustradas. Como agora a reacção perante a evidência é de se desvalorizar as críticas, seguido de contrapô-las aos erros similares cometidos no passado para as neutralizar e ainda de questionar os motivos de quem as faz. Como se pode imaginar, persistindo num caminho semelhante, não há como obter num diálogo aberto e sem tabus uma perspectiva real do país dos extraordinários constrangimentos que dificultam as reformas nem mobilizar e traçar um rumo que poderá tornar o país mais eficiente, mais competitivo e mais produtivo. Sem isso, porém, ficaremos a vegetar entre os países menos competitivos do mundo com dificuldades imensas em atrair o investimento externo indispensável e em prestar os serviços com qualidade que a economia particularmente ligada ao turismo tanto necessita. Sair do círculo vicioso das culpas que paralisam o país e libertar-se das que encobrem a realidade é fundamental para se dar às pessoas o que mais querem: liberdade, segurança e educação.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 827 de 04 de Outubro de 2017. 

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Dever de memória

No passado dia 25 de Setembro assinalou-se o vigésimo quinto aniversário da Constituição de 1992. Nesse dia, 25 anos atrás Cabo Verde consagrou com uma nova ordem constitucional a vontade expressa nas eleições de 13 de Janeiro de 1991 de viver em liberdade e em democracia. No novo quadro jurídico político o país tem vindo a construir e a consolidar as suas instituições democráticas merecendo de vários observadores avaliação positiva. Os anos da Constituição têm sido de estabilidade governativa, sem crises institucionais graves e já se verificaram as duas alternâncias no poder que na opinião do cientista político Samuel Huntington dão um sinal inequívoco do grau de consolidação democrática já atingido.
Evidentemente que ainda não se pode dizer que é uma democracia madura. As instituições denotam fragilidades várias designadamente no exercício efectivo das suas competências e na assunção das responsabilidades. A sociedade civil sob o impacto de uma cultura de dependência do Estado não mostra a autonomia necessária. A comunicação social privada ainda está por se afirmar e sem capacidade para competir com os órgãos estatais que além de beneficiarem de transferências múltiplas do Estado ainda abocanham parte considerável do pequeno e fragmentado mercado publicitário. A completar o quadro, a persistência de espaços de actuação sem a devida fiscalização democrática em que o exercício do poder se mostra caprichoso, imprevisível e mesmo perverso retira alguma confiabilidade e eficácia à acção política e faz dos cidadãos uns descrentes nos procedimentos democráticos, tornando-os presa fácil de populismos diversos.
O facto de, para além da conferência sobre Democracia e Constituição proferida pelo constitucionalista Jorge Miranda, a convite do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais (ICJS), não haver qualquer iniciativa das instituições da república, nem dos partidos políticos ou de associações e universidades para comemorar o vigésimo quinto aniversário da Constituição pode ser visto como mais um sinal de que nem tudo está realmente bem. O esquecimento selectivo de um marco tão importante num país em que quase todos os dias se referenciam datas internacionais disto e daquilo e em que se fazem programas de comemoração da independência que perduram meses seguidos não é normal. Noutras democracias é o contrário que acontece. Procura-se cumprir o que alguns chamam de dever da memória em relação aos eventos fundadores. Em Portugal, Espanha e Brasil as instituições e a sociedade fazem questão de comemorar a constituição democrática num exercício de “memória crítica e reflexiva” que põe em devida perspectiva o percurso histórico feito, propicia a renovação dos princípios e valores e reforça o sentimento de pertença.
A crise que afecta hoje tanto as democracias antigas como as mais recentes tende a pôr em causa o pacto sociopolítico subjacente às constituições democráticas. Já havia sinais antes, mas foi com a crise financeira de 2008, seguida subsequentemente de crise económica, crise social e crise da dívida soberana, que acabou por instalar-se nas sociedades democráticas um sentimento generalizado de precariedade e de ansiedade quanto ao futuro. Um sentimento posteriormente agravado pela crença generalizada de que a globalização tinha conduzido ao desaparecimento de inúmeros postos de trabalho e que favorecia o aumento das desigualdades sociais. A aparente conivência das autoridades em relação aos culpados pela crise e a visível impotência dos governos nacionais em travar a concentração da riqueza numa pequena minoria minaram a confiança de muitos quanto à possibilidade de se inverter a situação. E sem a solidariedade expectável para garantir a harmonia na sociedade e os consensos em relação à ordem constitucional não é possível manter as pessoas comprometidas com o sistema político vigente. Populismos vivem desses estragos feitos no tecido social e todos eles independentemente da sua origem fazem mira na ordem constitucional reinante e nas suas instituições. Inevitavelmente, o inesperado prenhe de consequências acaba por acontecer como foram os casos do Brexit e da eleição de Donald Trump. No domingo passado assistiu-se à entrada da extrema-direita no parlamento alemão.   
O professor doutor Jorge Miranda na conferência do vigésimo quinto aniversário da Constituição chamou a atenção para a necessidade de efectivação dos direitos sociais no mundo de hoje. A expectativa das pessoas em ver garantido o seu bem-estar social pressupõe que se ponha realmente de pé um Estado social e que se assegurem os direitos sociais. De facto, já não se mostra suficiente garantir o exercício dos direitos civis e dos direitos políticos e adiar para um futuro indefinido os direitos sociais que para alguns teriam só função programática na Constituição. Neste mundo em mudanças devido, entre várias razões, à globalização, à conectividade instantânea através da Internet e das redes sociais, a mudanças tecnológicas rápidas nos vários domínios e à automação de processos produtivos que eliminam empregos tradicionais, as pessoas querem mesmo acreditar que podem viver numa sociedade livre, justa e solidária. As soluções de governo produzidas pelo sistema político têm que ser capaz de a realizar, sob pena de descrédito e consequente instabilidade, incertezas e eventuais derivas perigosas que outras soluções, em particular as do populismo, poderiam gerar.
No 25º aniversário da Constituição torna-se imprescindível renovar a vontade da sua efectivação total como forma de manter o consenso a todo o momento sobre o papel das instituições e sobre a necessidade de cumprimento estrito dos procedimentos nela previstos. O aprofundamento institucional deve poder conter as tentações de pessoalização da política que as redes sociais facilitam ao mesmo tempo que abrem o caminho  ao descrédito dos cargos, ao descrédito da política e do próprio acto de entrega ao serviço público. Para fazer tudo isso há porém que manter vivo o dever da memória do que realmente nos une, nos garante a liberdade e nos abre o caminho à prosperidade e à realização pessoal.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 826 de 27 de Setembro de 2017.