terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Fracasso custoso

A corrida de Cabo Verde à presidência da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) revelou-se um fracasso. Terminou em recriminações, na busca de bodes expiatórios e em exercícios de auto-dúvida de como o país se vê e é visto pelos outros e como projecta a sua imagem no resto do mundo, em particular em África. A justificação oficial por se negar Cabo Verde a presidência da CEDEAO foi o incumprimento no pagamento da dívida que vem de há mais de 14 anos atrás. Uma justificação que, porque se quis ignorar o plano apresentado para o pagamento e os pagamentos do ano 2017 já feitos, suporta a acusação feita pelo Presidente da República Jorge Carlos Fonseca que teria havido “arranjos políticos”, supõe-se de bastidores, e que deram a vitória à Costa de Marfim.
Pensando bem, dificilmente podia ser de outra forma. Cabo Verde, um país arquipélago e lusófono no meio de potências regionais francófonas e anglófonas, à primeira vista não estaria em melhor posição para ajudar no equacionamento dos problemas dos países do continente e encontrar as melhores vias de cooperação entre os estados para os resolver. Não partilha dos múltiplos e complexos problemas próprios dos países do continente, designadamente das comunicações, das migrações, das doenças endémicas, não se confronta com tensões étnico e religiosas e ameaças do terrorismo e não se depara com o grande desafio de ir além das indústrias extractivas e passar à industrialização e aos serviços necessários para resolver os problemas de crescimento sustentável e desemprego em África. Os seus problemas são de outra natureza e escala. As relações comerciais e outras com os países da comunidade mantêm-se diminutas e não dão sinais de grande dinâmica.
 Por outro lado, não se viu suficiente empenho do governo em fazer do seguimento da regra da ordem alfabética para preenchimento do cargo de presidente da CEDEAO uma oportunidade para uma posição de relevo no plano internacional enquanto interlocutor privilegiado em relação com entidades em África, com a União Europeia e com outros países da Asia e das Américas. Já em anos anteriores a regra tinha sido dobrada para dar a presidência a Burkina Faso em vez de o entregar ao Benim. Não era portanto algo seguro. Estranha-se que sabendo isso não houvesse um esforço diplomático mais dirigido para demonstrar a utilidade de uma presidência de Cabo Verde. Pelo contrário, o que se assistiu nos últimos meses poderá ter passado sinais de desinteresse e/ou de fragilidade. Viu-se como a questão da presidência da CEDEAO tornou-se numa espécie de corrida interna com vários candidatos a se oferecerem sem que o governo tomasse uma posição e demonstrasse que tinha efectivamente controlo do processo. Também certamente não se deixou de notar que um evento de maior importância como a Cimeira da União Europeia e África, em Abidjan, há três semanas atrás, e com presença de entidades ao mais alto nível, Cabo Verde não se fizesse representar pelo presidente da república ou pelo primeiro-ministro. Já com muita coisa em desfavor, não estranha que o país tivesse perdido para quem realmente tem propósitos claros e sabe mover-se para angariar apoios políticos.
O fracasso na corrida para a presidência da CEDEAO poderá ter uma consequência inesperada que é de afectar negativamente a estratégia de atracção de investimento externo. O país vem insistindo em atrair investimento externo, apresentando Cabo Verde como via de acesso ao mercado de 300 milhões de pessoas na região da África Ocidental. É uma das muitas ficções que tendem a persistir em todos os governos. Os magros números das importações e exportações em relação à África indiciaram sempre a fragilidade dos laços comerciais existentes com a região e agora com a perda espectacular é a influência política para entendimentos e outras formas de cooperação que foram postas em causa. De certa maneira, tudo isto não devia ser novidade para ninguém. Só por teimosia ou por razões ideológicas profundas é que se pode insistir que o futuro de Cabo Verde reside fundamentalmente na sua relação com a região africana próxima, que, por sinal, não é das mais dinâmicas e onde o país tem no Senegal o seu concorrente directo. Oportunidades de negócio certamente existem mas aproveitá-las não tem sido fácil, e não é por preconceito como sugerem alguns. Afinal Cabo Verde foi governado 30 anos dos 42 de independência a começar pelos primeiros 15 anos por uma  força política que se intitula partido africano de independência.
A ficção que são certas forças políticas ou certos sectores da população que não querem dinamizar a relação com os países vizinhos só serve para reforçar políticas identitárias que cá em Cabo Verde como em toda a parte do mundo prestam-se a criar divisão e a fragilizar o tecido social e cultural da nação. Não é por acaso que hoje reina a divisão entre os caboverdianos quando muitas décadas atrás, antes da independência, a consciência da caboverdianidade era partilhada por todos nas ilhas independentemente das suas convicções ou ligações políticas. A introdução dos ideais do pan-africanismo e da negritude no pós-independência deu o mote para uma política de divisão, criando antagonismos de toda a espécie: entre patriotas e colaboracionistas, resistentes culturais e aculturados, africanistas e europeístas, defensores do crioulo e defensores do português.
O resultado desta ofensiva ideológica que já foi caracterizada de reafricanização dos espíritos e que ainda encontra respaldo no sector educativo e na comunicação social estatal é a imagem do povo dividido, pessoas confusas com as suas origens e identidades e um país com falta de clareza e coerência na relação com outros povos. Países pequenos e insulares como Cabo Verde, por exemplo as Maurícias e Singapura, devem boa parte do seu sucesso ao facto de terem conseguido instilar nas pessoas a ideia do destino comum, uma ideia do que é ser cingapuriano ou maurício ultrapassando as diferenças étnico-linguistas das suas sociedades. Fazer o caminho contrário a eles e em direcção à divisão, quando no ponto de partida a nação estava consolidada, não é certamente a via para se conseguir mobilizar as forças da nação, para criar confiança em nós próprios e ganhar a confiança dos outros.
A relação de Cabo Verde com todos os actuais e potenciais parceiros depende da nossa capacidade de compreender quem somos e potenciar o que realmente nos distingue – um país fruto da expansão europeia pelo mundo, mas contrariamente ao que se verifica noutras criações similares espalhados, não se nota que o poder económico, o poder político e o estatuto social têm ligação com a raça, coloração da pele ou origem familiar no antigo colonizador. Se estivermos cientes do que somos, poderemos relacionar com todos sem quaisquer complexos de superioridade ou de inferioridade e saberemos onde focalizar a nossa energia sem deixarmos iludir por ficções ideológicas identitárias ou de outra natureza e com a convicção certa de que “as nações não têm sentimentos, mas sim interesses”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 838 de 20 de Dezembro de 2017. 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Incongruências

O Dia Nacional da Rádio foi mais uma vez comemorado pela Rádio de Cabo Verde no dia 9 de Dezembro, desta feita com uma conferência sobre “Desafios do jornalismo na era da pós-verdade: Rádio Pública e o combate às Fake News”. Coube ao Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, fazer a abertura do acto e desenvolver o tema “Fake News, uma ameaça à Democracia?” O insólito neste e noutros actos similares nos anos anteriores é o facto de comemorarem nesta data um acontecimento, a Tomada da Rádio Barlavento pelas hostes do PAIGC em Dezembro de 1974, que para todos os efeitos simboliza o oposto de tudo o que, em democracia, deve reger a comunicação social e em particular a rádio pública. A data significou o fim do pequeno período do pluralismo que desde o 25 de Abril de 1974 até ao momento prevalecera em Cabo Verde, o fim das rádios privadas e o primeiro acto do que viria a ser o regime de partido único que durante quinze anos iria suprimir as liberdades de expressão, de informação e de imprensa no país. 
Desde 1992 que a Constituição estabelece que aos órgãos públicos da rádio e televisão se deve garantir a expressão e o confronto das correntes de opinião, a independência dos jornalistas perante o poder político e poder económico e a isenção dos mesmos órgãos face ao Estado. Também dispõe que jornais podem ser criados sem necessidade de autorização e que privados podem operar livremente na rádio e na televisão mediante licença conseguida em concursos públicos. Face a tais comandos constitucionais não se descortina como a celebração simbólica da tomada da Rádio Barlavento reforça uma cultura da rádio pública alicerçada nos princípios e valores neles subjacentes. A insistência na data parece configurar o que hodiernamente se vem chamando de pós-verdade em que emoções e preferências pessoais de grupos sobrepõem aos factos e acabam por constituir uma realidade alternativa completamente impermeável a toda e qualquer demonstração em contrário. Ironicamente, pós-verdade é o tema escolhido para discussão nas comemorações deste ano.
Na sua intervenção, o Sr. Presidente da República deixa enteder que o fenómeno da pós-verdade não tem grande alcance ou impacto em Cabo Verde. Tudo indica que ele está equivocado. A comemoração da tomada da Rádio Barlavento depois de mais de 25 anos de democracia, assim como a celebração de personalidades, instituições e datas reminiscentes do regime anterior só continuam possíveis porque realmente se vive no país um ambiente de pós-verdade. As emoções, as lealdades e aderência à historiografia do antigo partido único desafiam, com a ajuda do Estado e da ideologia ainda presente nos órgãos públicos da comunicação social e na educação, quaisquer factos que põem em causa a narrativa dos auto-proclamados libertadores da pátria, de facto, supressores de liberdade nos quinze anos que se seguiram à independência. Entre muitos exemplos que se podia trazer à colação, só assim se explica que o Presidente da República eleito democraticamente tenha presidido em Novembro deste ano ao simpósio de homenagem ao presidente que nunca foi eleito por voto popular. Ou que a Uni-CV, ontem, tenha celebrado o Dia da Literatura Inglesa com uma palestra sobre o legado literário de Amílcar Cabral e dos seus contemporâneos.
O controlo do espaço público, do espaço educativo e do espaço comunicacional só é possível porque em boa medida impera a pós-verdade. Não é por acaso que, não obstante a grande produção de livros e outras publicações, muito raras são as obras que se debruçam sobre o que aconteceu no país entre 1975 e 1990. Escreve-se sobre o antes da independência e a transição de 1990 mas deixa-se cair um pano escuro sobre os 15 anos como se constituíssem um tabu. Dizem eles que esses foram os anos de construção do estado, do regime político possível e da viabilização do país independente. O facto que só depois do 13 de Janeiro é que as instituições modernas e a cidadania plena se tornaram uma realidade, que a promessa de liberdade e democracia foi cumprida e que ainda não acabou a dependência externa não parece afectar essa narrativa. Na conferência o presidente da república interroga-se se também Cabo Verde está na era da pós-verdade. A realidade alternativa que tudo subordina à narrativa da luta de libertação faz crer que a pós-verdade não é um fenómeno novo e mínimo em Cabo Verde. Pelo contrário, o país conhece-o de há muito e apesar dos vários governos democráticos e de duas alternâncias já verificadas, não consegue libertar-se dela.
Nota-se a sua persistência na incapacidade do país em lidar com o sofrimento, a humilhação e a indignidade infligidas a várias pessoas em todas as ilhas durante os tais anos que se procura manter na obscuridade. Quando vozes na sociedade e também este jornal chamaram a atenção em 2016 para o trigésimo quinto aniversário dos acontecimentos de 31 de Agosto, que tanto penalizaram indivíduos e famílias em S. Antão, dos órgãos representativos da república, o Presidente e o Parlamento, não se ouviu nada. Da mesma forma, neste ano do quadragésimo aniversário das prisões e torturas em S. Vicente em 1977 também não se ouviu um pedido de desculpas do Estado de Cabo Verde e muito menos se falou em qualquer forma de reparação para os que sofreram prisão, sevícias e perda de vida na sequência de brutalidades de agentes da autoridade. Chega-se ao ponto de comemorar o dia dos direitos humanos sem que se faça referência à luta aqui travada tanto durante o regime de Salazar/Caetano como no regime do partido único para que se tivesse um Estado subordinado a uma Constituição que consagrasse a liberdade e a dignidade humana como os seus princípios maiores e, por isso, limitado no poder de coerção que podia exercer sobre qualquer pessoa. O catálogo extensivo desses direitos na Constituição de 92 resulta dessa luta, mas disso ninguém fala para não perturbar a narrativa da pós-verdade.
Para a defesa efectiva dos direitos humanos tanto no presente como no futuro é da maior importância saber o que significou no passado viver sem esses direitos e estar completamente à mercê de um Estado opressor. O mesmo conhecimento do passado que deve servir de suporte quando hoje se trabalha para ultrapassar os obstáculos na consolidação das instituições, se procura pôr de pé uma comunicação social livre e se esforça por edificar uma economia não dependente e dinamizada pela iniciativa individual e empresarial. Para que a nova atitude prevaleça, porém, é preciso que os órgãos de soberania se sintam mais obrigados aos princípios e valores constitucionais e menos tentados pelas emoções e lealdades suscitadas pela pós-verdade.  

 Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 837 de 13 de Dezembro de 2017. 

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Vejamos se nos entendemos

A TACV continua a marcar agenda política. Na semana passada foi trazida à baila na discussão da proposta do Orçamento do Estado e logo de seguida foi objecto de interpelação parlamentar. A comissão de inquérito ainda está a ouvir antigos gestores e dirigentes políticos e na segunda-feira os Ministros da Economia e das Finanças foram chamados à comissão parlamentar de finanças para prestar declarações sobre os negócios realizados com a Binter e a Icelandair.  Entretanto, a par das incertezas à volta dos despedimentos na empresa, da criação do hub na ilha s Sal e consequente transferência de vários trabalhadores surgem questionamentos sobre essa relocalização e aparente perda de importância do aeroporto da Praia com supostos prejuízo de muitos passageiros com destino para o exterior e em particular para as comunidades emigradas.
Entre os muitos males da TACV fala-se da dívida, da má gestão, dos custos exagerados de estrutura e do pessoal em excesso. As culpas pelo que aconteceu à empresa são atiradas por todos os lados, atingindo governantes e gestores. Mesmo na situação crítica em que se encontra não se notam sinais de algum consenso sobre como chegou ao actual estado de falência e muito menos de como agir para evitar a liquidação e procurar salvar os activos acumulados e potenciá-los a bem do país. Prefere-se fazer das extraordinárias dificuldades da empresa matéria de arremesso político, campo para o jogo das culpas e pretexto para o levantamento de suspeições de corrupção que nunca chegam a confirmar-se mas denigrem a imagem do país e deixam a população mais cínica em relação aos políticos e à política. O que importava agora era criar uma vontade nacional capaz de encontrar e apoiar uma solução que oferecesse ao país a possibilidade de não se submeter às pressões dos parceiros internacionais mais inclinados à liquidação total da TACV como forma de recuperar a ajuda orçamental suspensa. Infelizmente não é o que se vê.
Já devia ser claro que uma das razões pelos problemas da TACV é o facto de realmente não se separar a gestão da transportadora aérea da condução da política de transportes aéreos do país. Num país arquipélago e relativamente remoto, as ligações inter-ilhas e entre as ilhas e o resto do mundo são cruciais para o desenvolvimento. Acrescentando a isso à existência de comunidades expressivas nos vários continentes cuja ligação afectiva com o país convém manter entre outras razões pelo impacto económico das remessas e das visitas periódicas, vê-se como é de suma importância ter uma política de transportes que responda às necessidades de circulação de pessoas, ao turismo e às actividades económicas viradas para a exportação de bens e serviços. Se durante algum tempo foi necessária manter-se a transportadora nacional como instrumento central dessa política tanto no serviço doméstico como nas ligações às comunidades, é evidente que não era uma situação a perdurar por muito tempo, considerando os custos que era obrigada a suportar com as alterações que se verificam no mercado dos transportes aéreos ao nível global. Num novo quadro a transportadora nacional deveria com transparência ser ressarcida dos custos incorridos nas rotas não rentáveis no âmbito do que fosse considerado serviço público e também uma política de transportes visando aumentar a conectividade do país com o mundo deveria ser implementada de forma autónoma sem se deixar limitar pelas estratégias de rentabilização da empresa pública. Ao se insistir em confundir as duas, só se podia ter como resultado o aumento de ineficiências, o crescimento dos custos e o acumular de dívidas.
O novo governo instalado em 2016, confrontado com a clara falência da TACV e posto perante a urgência de a liquidar para limitar riscos orçamentais, optou pelo caminho que há muito se devia ter seguido. Separou os dois serviços de transporte aéreo e de seguida optou por ceder o tráfego doméstico a uma empresa privada e por reorientar o serviço internacional para o negócio de hub aéreo na circulação de passageiros entre América do Sul, Europa, África, Estados Unidos e Canadá. Para aumentar as chances de sucesso chegou a acordo com a Icelandair – que vários anos atrás foi bem-sucedida em criar um hub no Atlântico Norte com base na Islândia – para gerir a TACV e repetir a façanha no Atlântico Médio, a partir da ilha do Sal. Naturalmente que ao longo do processo forças políticas e outras entidades manifestaram discordâncias ou preocupações em relação às negociações havidas seja com a Binter nos voos domésticos seja com a Icelandair para a criação do hub. A própria GAO, no seu comunicado de 1 de Dezembro, alerta para a necessidade de, no âmbito das privatizações, se assegurar que as transacções individuais respeitem os princípios da competitividade, abertura e optimização na afectação de recursos.
Um facto, porém, é que se tinha de agir e se agiu mesmo que não haja consenso quanto à forma, que insuficiências ainda se mostram no serviço inter-ilhas particularmente quando se trata de cobrir as necessidades de carga de operadores económicos e quando aparentemente a actual operadora não está melhor preparada para desempenhar certos papéis em momentos críticos, em situações de urgência e nas evacuações. As controversas ligadas à relocalização da TACV na ilha do Sal para a criação do Hub ainda tem como base o não reconhecimento que a TACV tem de mudar de modelo de negócios para poder sobreviver e ainda capitalizar os activos acumulados. E o modelo de negócios implicando uma capacidade de processamento em simultâneo de vários aviões, a possibilidade stopover de vários dias, atractivos diversos com base em facilidades fiscais nas compras em zonas francas, etc., identifica a ilha do Sal como tendo as melhores condições para isso. A economia nacional ganhará com todos os negócios aí engendrados.
 A preocupação com os chamados voos “étnicos” deve ser resolvida no âmbito de uma política de transportes que torne mais fácil, mais barato e mais conveniente voar para Cabo Verde e para suas diferentes ilhas. É uma questão estratégica de fundo que importa assumir. Ao emigrante cabo-verdiano interessa-lhe fundamentalmente viajar para Cabo Verde no momento que lhe aprouver, a custo mais baixo e com melhores regalias no transporte de bagagem. Não lhe importa que a viagem seja ou não feita num avião da TACV. Mas certamente que ficará satisfeito se TACV conseguir ser bem-sucedida com a mudança de seu core business e poder ver aviões identificados como a marca Cabo Verde Airlines a transportar milhares de passageiros de um continente para o outro. Assim deveremos ficar todos.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 836 de 06 de Dezembro de 2017. 

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Convicções ou ligeireza?

O Ministro das Finanças Olavo Correia há dias num encontro com empresários portugueses na cidade do Porto anunciou uma nova Lei Cambial que depois de entrar em vigor em 2018 “vai liberalizar todos os movimentos de capitais de Cabo Verde com o exterior”. Tirando o facto de que a lei ainda não existe – não se sabe oficialmente se a proposta da nova lei cambial foi aprovada no Conselho de Ministros e muitos menos agendada para a discussão e eventual alteração no parlamento – suscitam muitas dúvidas se o simples anúncio de livre movimento de capitais constitui efectivamente um forte atractivo para o investimento directo estrangeiro no contexto de uma economia pequena e frágil. O ministro vê benefícios na possibilidade de transacções de e para Cabo Verde serem feitas “sem qualquer restrição burocrática” ao mesmo tempo que relembra que o escudo cabo-verdiano tem uma paridade fixa com o euro.
O perigo inerente na associação de políticas de livre movimentação de capitais com a existência de paridade fixa, ainda por mais na forma de um peg unilateral não parece ter despertado atenção especial. Não se registou qualquer eco do assunto na comunicação social e do parlamento nada se ouviu porque ainda não chegou lá. São conhecidas porém o papel que tais políticas tiveram designadamente na origem da crise financeira dos países do sudeste asiático em 1997, no Brasil, Rússia e Argentina em 1998-1999 e também em vários outros países noutros momentos. Como reacção, alguns países acabaram por adoptar meios de controlo do chamado “hot money”, os capitais que entram à procura de oportunidades lucrativas e que podem sair em debandada ao mínimo sinal deixando para trás graves perturbações monetárias, reservas delapidadas e dívida externa complicada, particularmente a do sector privado.  
A forma como o governo de Ulisses Correia e Silva vem comunicando políticas muitas delas de fundo e com implicações fortes na vida das pessoas e do país tem deixado as pessoas, a sociedade e até entidades como o Presidente da República de alguma forma perplexas, algo  confusas ou pelo menos com a ideia de que haveria mais coisas a acrescentar. Um exemplo recente está na proposta de lei de orçamento onde se foi ressuscitar o que tanto o primeiro ministro como o ministro das finanças assumiram como sendo políticas de substituição de importações. As alterações aduaneiras previstas no artigo 26 da proposta de lei do orçamento visam proteger a indústria nacional nos domínios do leite e derivados, sumos e água engarrafada. Supõe-se com esse tipo de política que o consumidor perante o preço mais elevado do produto importado passe a consumir o produto nacional e por essa via se viabilize e se rentabilize o investimento nacional.
A experiência de aplicação desse modelo de desenvolvimento em vários países demonstrou que realmente não funciona. Toda a gente fica a perder: os consumidores acabam sempre por pagar mais caro porque a tendência é de o preço do produto nacional com o tempo aproximar-se do importado; a prazo, a indústria nacional no seu conjunto não beneficia porque os produtores perdem a motivação para se tornarem competitivos no preço e na qualidade e serem capazes de conquistar mercado tanto a nível nacional como internacional; também o país não ganha porque com essas politicas a tendência é para as autoridades adiarem as medidas para melhorar a competitividade incluindo as que deviam priorizar a diminuição de custos de factores, a criação de sistemas de transportes terrestres, marítimos e aéreos mais eficientes, o abaixamento dos custos de contexto e a melhoria do ambiente de concorrência com o combate a monopólios e a outras formas de controlo do mercado.
O caminho para proteger o empresariado nacional deve ser outro. O país precisa realmente de um sector privado focalizado em ser competitivo, em contribuir para o aumento da produtividade nacional e em conquistar mercados para exportação de bens e serviços. Não ajuda muito que durante décadas a ênfase nos investimentos públicos, num quadro em que o modelo económico foi por demasiado tempo de reciclagem da ajuda externa deixou o sector privado fragilizado, dependente muitas vezes dos favores do estado e pouco capacitado para aproveitar as oportunidades criadas pelo investimento directo estrangeiro em particular no domínio do turismo. Reverter a situação não pode ser simplesmente pela via das medidas simples administrativas que ignoram a complexidade da situação encontrada, fingem não ver os interesses instalados e subestimam os incentivos existentes que vão no sentido contrário ao pretendido numa economia dinâmica de promover a iniciativa individual e de premiar o gosto pelo risco e a vontade de criar e inovar. A história económica de vários países e também de Cabo Verde demonstra que quem ficou por essas medidas simplistas falhou redondamente e acaba praticamente preso numa economia com fraca capacidade de exportar, com elevado grau de informalidade e baixa produtividade.
Enquadra-se provavelmente nessa busca por algo facilmente identificável e relativamente fácil de implementar a importância dada pelo governo à questão do financiamento no global dos problemas enfrentados pela empresas e potenciais empreendedores. O resultado é o grande esforço que o governo tem posto em criar linhas de crédito, bonificar taxas de juro e instituir fundos de garantia para minimizar o risco dos investimentos. São medidas importantes mas podem não ser as que as empresas mais precisam se tiver em conta que o sistema bancário não tem problemas de liquidez e só não estende crédito a juros mais baixos devido a riscos macrofinanceiros e o risco-país que percepciona não obstante os estímulos vindos do banco central designadamente no que toca a relaxamento das taxas directoras. Muito mais tem que ser feito na criação de um ambiente de negócios que realmente favoreça e compense o indivíduo pela sua iniciativa e pelo seu esforço e disponibilidade em correr riscos  
Como alguém notou recentemente, “se a comunicação falha repetidamente é porque falha aquilo que há a comunicar”. Ou seja, quem não reflecte aprofundadamente sobre a complexidade da situação herdada e procura formular estratégias e medidas de política para a ultrapassar, dificilmente vai poder comunicar eficazmente. No fim do dia as medidas vão dar a impressão de terem sido tomadas com ligeireza mesmo que tenham por de trás a firme convicção de que são as mais adequadas e as mais justas.  E os resultados certamente que ficarão muito aquém do que foi prometido, o que nos dias de hoje de avanço do populismo, constitui um desfecho a evitar a todo o custo porque pode deixar as pessoas mais descrentes e cínicas em relação à política, aos políticos e à própria democracia.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 835 de 29 de Novembro de 2017.