segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Enfrentar o novo normal

 

Nas vésperas do Natal e quase no fim do ano de 2021 a variante Ómicron do vírus SARS-CoV-2, identificada em primeiro lugar na África do Sul avança vertiginosamente pela Europa e pelos Estados Unidos da América tornando-se já em muitos lugares mais de 70% dos novos casos da infecção da covid-19.

 A rapidez com que tudo está a acontecer vem contrariar as expectativas de que pelo fim do Verão e último trimestres de 2021 o pior da pandemia teria sido ultrapassado. A aplicação massiva de vacinas a partir dos primeiros meses do ano parecia justificar esta crença, mas o caracter desigual da operação, as resistências encontradas e as dificuldades logísticas particularmente nos países menos desenvolvidos vieram revelar-se como factores propícios para o surgimento de variantes do vírus e no caso do Ómicron de uma variante mais infecciosa ainda que talvez menos virulenta. Naturalmente que as pessoas ficaram confusas e não espante que por vários países a confiança tenha diminuído e que situações de choque com as autoridades se tenham multiplicado.

O próximo ano de 2022 não dá sinais que vai ser muito melhor. Incertezas quanto ao futuro vão continuar e talvez seja esse estado de coisas o novo normal. Para a revista Economist em editorial desta semana é a era da imprevisibilidade previsível que desponta e que poderá prolongar-se por vários anos ao longo desta década. A corroborar a ideia parece ir o director da Riu Palace na entrevista de domingo à TCV quando alertou que para o próximo ano vai-se trabalhar no curto prazo porque trabalhar no longo prazo é impossível com as incertezas na Europa. Na nova era, assumir que é com um elevado grau de imprevisibilidade que se vai governar, trabalhar e viver será fundamental para se adoptar a melhor atitude na busca do bem geral, ser mais estratégico nas abordagens e dar mais atenção aos resultados.

Para isso, deve estar implícito que em certos sectores ou actividades não se poderá retomar do ponto onde se ficou no início da pandemia. Que em determinados empreendimentos vão-se ver inovações, quanto a produtos e processos afectando profundamente relações de trabalho e relações sociais nem sempre fáceis de antecipar. Que a reestruturação de cadeias globais de valor e de abastecimento irá eventualmente destruir oportunidades de negócios existentes e criar outras, as quais nem sempre passíveis de aproveitamento considerando as valências existentes no país. E que incertezas de outra natureza derivadas de tensões latentes entre potências económicas e militares conjugadas com os desafios constituídos pelas alterações climáticas e pela urgência em se proceder à transição energética poderão tornar mais complexas e sensíveis as relações internacionais de cooperação. Sem essa compreensão de um mundo a entrar numa nova era, a tentação vai ser a de continuar a fazer mais do mesmo, manter o modelo de gestão de “empurrar com a barriga” e deixar-se guiar exclusivamente pelo eleitoralismo na condução dos assuntos públicos.

Não passando para as pessoas a noção de que se está a viver num mundo mais complexo de imprevisibilidade previsível, fica difícil justificar por que a retoma do turismo pode não acontecer nos mesmos moldes do antigamente. Também não se explica por que aumentam os preços dos combustíveis e de energia e por que há deterioração do poder de compra e da qualidade de vida em consequência da inflação importada, dos custos mais altos dos transportes e dos estrangulamentos na distribuição global dos produtos. Sem um entendimento das dificuldades do momento, das suas causas e de como agir para as ultrapassar, para além da proverbial “mão estendida”, fica difícil apelar à contenção nas reivindicações, incentivar a cooperação para se ser mais produtivo e mobilizar o espírito de solidariedade com os mais afectados pela crise pandémica. O sucesso no engajamento das pessoas é essencial para se poder enfrentar as dificuldades actuais com o país altamente endividado e vivendo uma conjuntura rodeada de incertezas.

É evidente que uma mudança de postura do governo e de toda a classe política facilitaria todo o esforço de enfrentar as imprevisibilidades futuras. Mais do que nunca as pessoas precisam saber que se está a agir efectivamente para conter os custos, construir competências e para prestar serviços com qualidade. Aumentar a confiança nas instituições e diminuir o cinismo como são encaradas muitas das acções dos governantes é essencial. Também essencial é dar um enérgico basta ao jogo de apontar culpas em que se transformam todos os debates sobre os problemas do país. As questões ficam por ser esclarecidas, não se criam bases para acordos e compromissos e nas entrelinhas cria-se espaço para que outros interesses se sobreponham ao interesse público.

O arrastar por muitos anos por esse tipo de impasse provoca um mal-estar que para além das disfunções que provoca nas instituições, tem um efeito erosivo nas pessoas e no tecido social manifestando-se em comportamentos anti-sociais. Muito do alcoolismo, uso de drogas, violência contra pessoas e criminalidade estará provavelmente associado de uma forma ou de outra a esse mal-estar. E sem uma resposta compreensiva da governação do país, as reacções ficam pelas denúncias e pelas manifestações de indignação que depois com o passar do tempo e ausência de progresso na resolução dos problemas acabam por desembocar em frustrações e ressentimentos. Em ambiente de pandemia, de incertezas e de vulnerabilidades reveladas, o passo a seguir é para esses sentimentos já exacerbados serem condutas para mais violência como se está a verificar em todo o país.

Pôr um travão a isso passa por uma liderança que não deixe que o país se perca em discussões do passado e se vire decisivamente para confrontar o futuro prenhe de incertezas. Uma liderança que também se distinga pela coragem e realismo, competência pragmática e crença efectiva num futuro de prosperidade para todos. Não há maior prova de liderança do que demonstrar ser capaz de mobilizar a nação para a realização de tal desígnio. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1047 de 22 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Elevar o poder local para outro patamar

 

No passado dia 15 de Dezembro, completaram-se trinta anos de poder local democrático em Cabo Verde.As primeiras eleições autárquicas realizadas em finais de 1991 aconteceram quase um ano depois que as eleições multipartidárias de 13 de Janeiro inauguraram uma nova era de liberdade e democracia no país. Com a criação de um regime democrático, o mais natural é que se procedesse rapidamente à restauração do poder municipal, agora dotado de órgãos eleitos pelo voto popular. O princípio da autonomia local, baseado no reconhecimento que comunidades locais têm interesses específicos em relação aos quais devem ter meios e órgãos próprios para os gerir, está intimamente ligado à democracia e à ideia de um Estado descentralizado. Nem se esperou pela adopção da nova Constituição, que iria acontecer em 1992, para se avançar com o processo eleitoral para as câmaras municipais.

O regime de partido único tinha posto fim às câmaras municipais e em sua substituição tinha instalado um secretariado administrativo dirigido por um delegado de governo coadjuvado por um conselho deliberativo, todos nomeados pelo governo central. Já o regime salazarista tinha limitado a autonomia das câmaras municipais com as nomeações dos titulares pelo governo. Com as eleições de 15 de Dezembro iniciou-se, de facto, uma nova era do poder local mas não sem que ficassem pendurados alguns resquícios dos regimes anteriores. Um deles tem a ver com os poderes do presidente da câmara municipal. Tido como órgão executivo singular e com poderes próprios tende a dominar o órgão colegial eleito, a Câmara Municipal, e a apoderar-se dos seus poderes adoptando uma postura de cacique local. O exemplo acabado disso é o que se passa actualmente no município da Praia em que o projecto de orçamento municipal que se vai discutir e aprovar na assembleia municipal não é o projecto da câmara municipal, mas sim do presidente.

De facto, o enquadramento legal das primeiras eleições autárquicas na falta de uma constituição ficou limitado e acabou condicionado pela legislação pré-existente de 1989. A Constituição de 1992 e depois o Estatuto dos Municípios de 1995 vieram mais tarde clarificar as atribuições e competências dos órgãos autárquicos, mas permitiu-se que continuasse a constar da lei um órgão executivo singular com poderes próprios apesar do texto constitucional só prever dois órgãos colegiais. O facto das decisões tomadas pelo presidente da câmara no exercício de poderes próprios não prever recurso para a câmara municipal tornou a tendência para o presidencialismo do presidente da câmara ainda mais pronunciado. Ultrapassa o que existe por exemplo em Portugal com um modelo autárquico similar em que poderes da câmara tacitamente exercidos pelo presidente têm recurso para o colectivo da câmara e não só para os tribunais como acontece em Cabo Verde.

O poder local em Cabo Verde começou nos 14 municípios então reconhecidos e hoje existe em 22 municípios depois da criação de S. Domingos, Mosteiros e São Miguel nos anos noventa e de mais um total de cinco nas ilhas de Santiago (3), Fogo (1) e S. Nicolau (1) em 2005. É reconhecido por todos o extraordinário efeito que a criação dos municípios tem tido nos diferentes pontos do território nacional e nas respectivas comunidades locais. Ganhou-se muito nomeadamente com os investimentos feitos, com a maior proximidade na prestação de vários serviços, com o reconhecimento do carácter específico dos problemas e interesses locais, um maior sentido de pertença e uma voz distinta ao nível nacional. Podia-se provavelmente ter ganho mais. O que se conseguiu até agora tem ficado aquém das expectativas que acompanharam a instalação do poder local democrático.

Em termos de descentralização depois da instalação dos órgãos municipais não se viu um esforço de aprofundamento com experiências inframunicipais para as quais havia e há abertura constitucional. Preferiu-se aumentar o número de municípios não dando a devida atenção à sustentabilidade dos mesmos. A oportunidade de se criar uma administração municipal com uma cultura de relação com os utentes menos centralizadora, menos burocrática e mais atenta às necessidades das pessoas foi em grande parte desperdiçada. Da mesma forma foi perdida a oportunidade de se instituir nas novas administrações municipais uma cultura de mais isenção e imparcialidade na relação com os munícipes e de menos partidarismo nas nomeações das chefias e cargos técnicos. Com tais opções perderam-se muitos dos ganhos de eficiência e eficácia pretendidos com a instituição dos municípios, ficando demasiadas matérias dependentes de decisão do presidente da câmara, cada vez mais centralizador, e de alguns dos seus vereadores mais próximos.

A proximidade das pessoas e dos problemas propiciada pelo poder local devia ser uma base forte para a construção de um espírito democrático, o desenvolvimento do civismo e uma cultura de participação. Não é líquido que se tenha tido muito sucesso nessas frentes fundamentais para uma cidadania consciente e actuante. A política local sofre com a crispação político-partidária e a possibilidade de participação de grupos de cidadãos nos órgãos autárquicos não a atenuou o suficiente para ajudar a focar a atenção na resolução dos problemas comuns com negociações, acordos e compromissos firmados. Também não se vê engajamento suficiente das autarquias na luta contra as incivilidades que se impunha para que houvesse menos lixo, menos ruas sujas, menos violência e se vivesse num ambiente menos confrangedor. Em vez de participação cívica, nota-se o crescer da cultura de dependência numa relação directa com a tentação de caciquismo que desde o início se manifestou.

Um outro factor importante que também é prejudicado é o sentido de pertença enquanto munícipes, ou seja, residentes num território bem delimitado. Trata-se de algo que devia ser central na identificação dos interesses próprios e constituir a base para se encontrar soluções e exigir responsabilidades dos órgãos eleitores. Mas é muitas vezes escamoteado com apelos identitários vindos dos actores políticos que deliberadamente confundem o munícipe com o nascido no território. No processo são largos segmentos da população que são deixados de lado e quase se consideram expatriados no lugar onde residem, fazem a sua vida e vêem os filhos crescer. Para esse estado de coisas também contribui o facto de os municípios não dependerem suficientemente dos impostos dos seus membros e de nem fazerem o esforço para fazer a colecta de impostos que lhes cabe por lei.

A falta de sustentabilidade própria dos municípios leva a uma excessiva dependência do Estado central. Esta relação por sua vez alimenta a tendência para o caciquismo dos dirigentes ao mesmo tempo que enfraquece a ligação dos cidadãos com os seus municípios. Tudo isso acaba por prejudicar o funcionamento da democracia local, impedir que os recursos postos à disposição sejam usados de forma eficiente e eficaz e também que a população local, não ultrapassando as suas divisões e querelas, não se engaje como devia na resolução dos problemas da comunidade. Ao fim de trinta anos com altos e baixos, aspectos positivos e negativos impõe-se que se dê um outro impulso ao poder local. Há que o colocar na posição de cumprir com as promessas implícitas na sua criação nomeadamente a descentralização, autonomia e mais prosperidade e qualidade de vida em qualquer parte do território nacional que as pessoas escolherem para viver. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1046 de 15 de Dezembro de 2021.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Democracia e eficiência

 

Finalmente tomou posse esta segunda-feira o novo ministro do Mar depois de mais de um mês que formalmente o Primeiro-ministro tomou conhecimento do pedido de demissão do cargo apresentado por Paulo Veiga.

Na primeira reacção, o PM disse que a nomeação do novo titular ficaria para depois do empossamento do Presidente da República que estava marcado para 9 de Novembro. Nada o obrigava a esperar, considerando que o então PR estava em plena posse dos seus poderes. Se ainda levou mais de três semanas para propor, outras razões terão pesado na decisão, ou indecisão, conforme as interpretações, considerando que acabou simplesmente por entregar a pasta da Economia do Mar ao ministro da Cultura.

O país não ficou realmente surpreso com a solução encontrada porque tem sido a forma standard de operar do actual primeiro-ministro. Não é dado a reais remodelações do governo nem com a mudança de legislatura e nem até agora com a crise pandémica, não obstante o seu impacto sem precedentes ao nível económico e social. Quando surgem vagas no governo por razões de demissão, desaparecimento físico ou desgaste político de vária ordem tende a entregar a pasta a um outro ministro ou faz acréscimos pontuais. Não estranha que a discussão sobre a funcionalidade do governo fique sobre se é “gordo ou magro” visto da perspectiva de quanto o número de titulares do momento estará a pesar nas despesas do Estado. Deixar sem titular durante mais de um mês um sector-chave da economia nacional e depois ir para o que até prova contrária poderá passar a imagem de ser uma solução de recurso alimenta esse tipo de debate porque fica-se sem saber que objectivos são prioritários e qual é a estratégia que se está a seguir para os atingir.

Com o turismo ainda longe de reocupar o seu papel na dinamização da vida nacional, a que se acrescentam as múltiplas incertezas provocadas por surtos de variantes do sars-cov-2 e outros constrangimentos da economia mundial, é cada vez mais clara a necessidade de se proceder à diversificação da economia. O sector da economia do mar é fulcral nesse sentido. Entre as suas várias contribuições permite explorar recursos naturais através da actividade piscatória e aquacultura, aproveitar a geo-localização do país para prestar um leque importante de serviços e via investimentos já feitos na investigação científica, ensino superior e formação profissional capacitar mão-de-obra especializada para demandas nacionais e estrangeiras em vários domínios. Em simultâneo, é também fundamental na criação de condições para se manter a ligação entre as ilhas, unificar o mercado nacional e permitir a certas actividades agro-pecuárias e industriais beneficiar de economias de escala que de outra forma não seriam possíveis. Não é, pois, um sector que em algum momento ou em qualquer questão concreta se queira passar qualquer sinal de descaso, indecisão ou fragilidade.

Particularmente em tempos de crise devia-se procurar transmitir com maior vigor uma imagem de firmeza institucional, de comprometimento com os objectivos definidos e de sentido de Estado e de defesa do bem público. Também devia-se evitar tacticismos político-partidários que só levam a bloqueios e a degradação do discurso político. De outra forma começam a proliferar comportamentos e iniciativas fora do quadro procedimental já estabelecido dos quais ninguém acaba por ganhar, só se criam tensões desnecessárias no sistema político e dá-se azo para futuros conflitos de competências.

Há duas semanas atrás aconteceu que o PM foi com uma delegação de dois ministros apresentar a proposta de orçamento do estado ao PR. Na sequência, o PR fez uma série de contactos junto dos partidos políticos com assento parlamentar, câmaras de comércio e sindicatos ficando a impressão no público que poderia haver dificuldades em passar o OE. Tudo afinal não passou de falso alarme como foi comprovado na sessão do parlamento em que para apoiar a proposta do governo esteve uma maioria sólida. Ninguém beneficiou com os equívocos criados e as iniciativas que bem podiam ser mais úteis noutros momentos, mas no ar e provavelmente na mente de alguns o governo ao longo do processo deixou passar um quê de fragilidade.

Esta segunda-feira, foi a vez do presidente da Assembleia Nacional a encontrar-se com o presidente da república para apresentar a agenda parlamentar. Segundo as declarações do PAN à imprensa foram abordadas várias questões entre as quais a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional, a questão da segurança do parlamento e “a revisão da Assembleia Nacional para suprir as lacunas, acabar com os excessos que temos no regimento, para que o parlamento possa imprimir maior eficiência e eficácia no seu desempenho”. Tudo isso é no mínimo surpreendente não só pelo insólito como também por não se imaginar que papel o presidente da república poderia ter nessas matérias que são da competência exclusiva do parlamento, um órgão de soberania plural eleito directamente pelo povo. Em Outubro último o parlamento elegeu com a maioria de dois terços dos deputados presentes os membros do Conselho Superior de Defesa Nacional e os membros da comissão de fiscalização dos Serviços de Informação da República. Há, portanto, disponibilidade para colaboração dos grupos parlamentares e nada aparentemente impede que essa vontade que já se manifestou também se estenda para a eleição dos órgãos externos. Certamente que o presidente da Assembleia Nacional pode sozinho pressionar para que isso aconteça o mais cedo possível.

O ambiente de “competências pouco definidas” ou “fluídicas” que parece querer instalar-se nos últimos tempos já se faz sentir também ao nível do poder local. Na Câmara da Praia o presidente num conflito aberto com a maioria dos vereadores entre os quais alguns pertencente à sua lista dá sinal de querer assenhorear-se das competências do órgão executivo colegial, nomeadamente a aprovação da proposta do orçamento municipal a apresentar à assembleia municipal, como estabelece o estatuto dos municípios. Está-se supostamente a contrapor à lei de organização e funcionamento dos municípios a lei das finanças locais que diz que a proposta do orçamento elaborada pelo presidente é submetida à apreciação da Câmara até dia 15 de Setembro numa interpretação que esvazia de qualquer importância um órgão político colegial directamente eleito, anulando efectivamente o mandato dos eleitos que no caso até representam diferentes partidos.

A última reunião da assembleia municipal que devia ser de discussão e aprovação dessa proposta não se realizou com esse ponto na agenda porque continua o braço de ferro. Aparentemente a AM está a hesitar em seguir o procedimento adoptado durante os trinta anos de poder local democrático em todos os municípios do país que é de se discutir e aprovar o orçamento do município depois de a câmara ter aprovado o projecto de orçamento municipal (art. 92º nº 2, alínea r). Com essa falha procedimental põe-se em causa os equilíbrios do sistema de poder local ao provocar a deslocação excessiva de poder para o presidente da câmara em detrimento dos outros órgãos eleitos e incorre-se no risco de perda de eficácia na actuação pública municipal e de com isso defraudar os eleitores.

A realidade tem demonstrado que cair na tentação de seguir a via do voluntarismo, da discricionariedade e da unicidade de poder só porque parece dar respostas rápidas e fortes traz custos que todos acabam por pagar e constituiu um lastro que impede o desenvolvimento. Há, pois, que manter a aposta no aprofundamento da democracia que implica respeito pela separação de poderes e competências, pluralismo nas deliberações e responsabilização permanente. É ainda o melhor caminho para maior eficiência e eficácia do Estado na vida pública e para se conseguir o almejado desenvolvimento inclusivo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1045 de 8 de Dezembro de 2021

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Precaver incertezas futuras

 Nos últimos dias o mundo passou a estar outra vez em sobressalto com o aparecimento de mais uma variante do vírus Sars-cov-2. O novo espécime detectado na África do Sul, e já declarado variante de preocupação pela Organização Mundial de Saúde (OMS), apresenta mais de 30 mutações em relação ao vírus original.

São mutações que, segundo os cientistas, podem vir a revelar-se facilitadores de contágio e indutores de mais casos de hospitalização e mortes por Covid-19. A rapidez com que se propagou em algumas zonas da África do Sul e o facto de já ter sido detectado em vários países e continentes sugere logo à partida alta transmissibilidade. Quanto à letalidade provavelmente vai-se ter que esperar umas semanas para conseguir dados suficientes para a aferir adequadamente. Preocupante é o facto de, aparentemente, estar a levar a taxas elevadas de hospitalização de crianças com menos de dois anos, o que a distingue de outras variantes que têm, em grande medida, poupado as crianças.

As reacções ao aparecimento da variante têm sido bastante fortes e até desproporcionais ao ponto de o presidente americano Joe Biden relembrar que foi classificada pela OMS como variante de preocupação mas não de pânico. A verdade é que um número significativo de países, particularmente países desenvolvidos da Europa, Ásia e América trataram de cortar viagens para um conjunto de países da África Austral logo que a informação sobre a variante foi facultada, sem se cuidar dos enormes prejuízos que estariam a causar a esses países. Uma reacção considerada por muitos como excessiva e que nem os ganhos discutíveis que podiam advir de um suposto isolamento das origens do novo surto da coronavírus justificavam.

De facto, não se está no mesmo ponto de há um ano atrás no que respeita à preparação para enfrentar surtos de coronavírus. Na época ainda não se tinha conhecimento profundo do vírus, não havia vacinas disponíveis e não se podia contar com antivirais (molnupiravir and Paxlovid) em forma de comprimidos bastante efectivos no combate aos sintomas mais graves da covid-19 a poucos dias ou semanas de serem autorizados pelas reguladoras do sector da saúde na América e na Europa. Ainda bem que, de alguma forma, depois desse passo em falso se está a procurar compensar esses países africanos com gestos de solidariedade que incluem grandes ofertas de vacinas e outros produtos necessários para um combate efectivo contra a pandemia.

Devia ser fácil para todos compreender que o que a humanidade enfrenta é uma pandemia e que a resposta efectiva à ameaça não pode ser pelo isolamento. Tem que ser simultaneamente local e global. De outra maneira, deixando milhares e milhões de pessoas por vacinar, sem ser testadas e não praticando adequadamente as regras de distanciamento social e de utilização de máscaras, só se está a disponibilizar viveiros selectos e diversificados para o vírus produzir mutações que depois partindo de um ponto de origem, não interessa onde no mundo, acaba por chegar em pouco tempo a qualquer outro lugar da face da Terra.

A falta de racionalidade no combate global à pandemia tem a sua contraparte ao nível nacional na resistência à vacinação e na desvalorização que certos grupos e personalidades fazem das vacinas, das medidas de distanciamento global e do uso de máscaras nas ruas, em recintos fechados e em encontros massivos das pessoas. A tensão polarizante criada por esse tipo de atitude diminui consideravelmente a eficácia das medidas tomadas porque na prática deixa sempre uma parte da população desprotegida no seio da qual o vírus pode fazer mutações, desenvolver estratégias para ser mais eficiente na infecção dos humanos e preparar o caminho para surtos sucessivos de covid-19. O mesmo acontece quando largas camadas da população do globo ficam sem vacinas e sem os cuidados que devem ser dispensados aos que são imunodeprimidos ou foram submetidas a reinfecções sucessivas da coronavírus por causa de tratamento inadequado.

O resultado desse tipo de comportamento em termos de variantes potencialmente mais perigosas e de sucessivos surtos da covid-19, aumentando incertezas e provocando disrupções sucessivas da vida das pessoas a todos os níveis, devia ser óbvio para todos e forçar mudanças sérias de atitude, mas não é. Pelo contrário depara-se é com esforços de alguns, em geral os mais afortunados, em procurar açambarcar vacinas, controlar patentes para maximizar lucros e sempre que confrontados com a realidade de novos surtos de covid-19 recorrer a medidas de isolamento. Com isso, aumentam extraordinariamente as incertezas nos países pobres, na prática alimentando o círculo vicioso que tende a perpetuar o problema e a reproduzir as condições que vão quase por certo garantir surtos sucessivos do vírus num futuro não muito longínquo.

Um dos grandes enigmas do nosso tempo é o facto de perante uma ameaça global com a magnitude da covid-19 não se ver crescer uma onda de solidariedade que fosse a expressão forte e sem ambiguidade da consciência de uma humanidade comum. Obras de ficção na literatura e no cinema têm repetidamente debruçado sobre esse momento em que, face à ameaça ou choque externo de contornos planetários, toda a humanidade se unia no esforço para o combater. A verdade é que pelo menos até agora a pandemia da covid-19 ainda não despertou esse sentimento de união e a outra grande emergência planetária, que são as alterações climáticas, tem ficado muito aquém do que seria desejável, como se viu semanas atrás no encontro da COP26 na Escócia.

Essa falta de sentido de urgência manifesta-se também ao nível das políticas nacionais de vários países em que muitas vezes a tendência é continuar na mesma toada de sempre mas com os olhos postos nas novas linhas de financiamentos. Há casos em que se aproveita facilidades de crédito – como por exemplo, a chamada bazuca financeira da União Europeia ou outros fundos facultados por organizações multilaterais criadas para responder às alterações climáticas e às necessidades da transição energética e da transição digital – para fazer mais do mesmo. Raros são os casos, como na Itália de Mario Draghi onde se vai conseguindo reunir vontades para fazer as reformas que se impõem neste momento charneira da vida da humanidade, provando mais uma vez a importância de se ter lideranças visionárias, competentes e comprometidas com o bem público.

Em Cabo Verde o peso da dívida pública, as limitações orçamentais de um país que sofreu das piores contracções da sua economia durante a pandemia e as incertezas quanto a uma retoma sustentada como vem assinalando o BCV não parecem ser razão suficiente para se ultrapassar a rigidez do discurso e do debate político e encontrar compromissos necessários para avançar. A forma como vem sendo tratada a questão da elevação do tecto da dívida interna e do aumento proposto dos impostos é prova de como questiúnculas partidárias tomam precedência sobre tudo o resto deixando o país sem a possibilidade do diálogo necessário para encontrar saídas para os graves problemas existentes. O quase pânico gerado pelo repentino surgimento da variante ómicron da Sars-Cov-2 e as incertezas para as viagens e para o turismo que criou devia ser mais um aviso de como a crise pandémica ainda não terminou e que a retoma da normalidade anterior não é para tão cedo como muitas vezes os governantes se mostram ávidos de proclamar.

Necessário se torna ir além dos discursos repetitivos e presos no passado de governação dos partidos do arco de poder para se focar na procura de soluções para os graves problemas que se colocam agora e também para enfrentar o próximo ano de 2022 que, segundo alguns observadores, estará a perfilar-se como uma espécie de annus horrible com muitas incertezas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1044 de 1 de Dezembro de 2021.