sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Objecto ou sujeito?



Já há muito que se tornou evidente que crispação política, excessiva polarização partidária e pressão política directa sobre indivíduos e grupos sociais são os maiores constrangimentos à participação cidadã em Cabo Verde. O ambiente de crispação inibe intervenções de qualquer natureza na esfera pública, designadamente as cívicas e académicas. A polarização partidária exacerbada pela actuação de um Estado e de uma administração pública por todos reconhecida como partidarizada não deixa muito espaço para a sociedade civil respirar. A pressão política no dia-a-dia convida ao conformismo, ao desenvolvimento do clubismo político e à contenção na expressão de opiniões.
Todos esses factores convergem para dissuadir as pessoas de exercerem a sua cidadania de forma livre e plena. Afectadas são também os “media” cuja missão é informar e provocar intercâmbio de ideias na sociedade. O impacto é ainda sentido por exemplo nas organizações associativas que procuram criar para si espaços próprios e autónomos de convivência, de participação cívica e de solidariedade e vêem-se sujeitas a pressões de várias espécies. A questão que se coloca é se a situação actual corresponde a alguma etapa no processo evolutivo da democracia cabo-verdiana ou se é algo que é deliberadamente reproduzido para potenciar ganhos políticos.
Se se assume que é uma etapa, alguma vontade poderá ser criada para a ultrapassar. Mas se, como é o caso, há satisfação oficial das autoridades com a realidade do momento, o mais provável é que se queira mantê-la e reproduzi-la ao longo do tempo. De facto, nota-se que muito da acção política é dirigida para manter a crispação. Todos os dias descobrem-se novos pontos de fractura que permitem identificar quem é “nós” e quem são “eles”. Tudo parece servir para isso, Amilcar Cabral, barragens, Chã das Caldeiras e até a própria chuva. No mesmo sentido vai o esforço de rotulagem política. Ao tentar abarcar todos, inibe muitos particularmente os interventivos. Passa a ser uma arma e uma forma de calar os críticos.
Na corrida para o desenvolvimento, há uma opção fundamental que países e governos devem fazer. Se fazem dos seus cidadãos objectos passivos das políticas e acções estatais ou se os colocam em posição de sujeitos do seu próprios desenvolvimento, armados da sua criatividade, energia e vontade de prosperar. No primeiro caso, o Estado gere grande parte da economia nacional incluindo a ajuda externa e empréstimos para garantir algum rendimento e levar benefícios diversos às populações mas os resultados são típicos de países que vivem de rendas, ou seja, crescimento baixo, desemprego e futuro precário. Um custo associado é o autoritarismo crescente do Estado, as limitações no exercício da cidadania e o lastro que se acumula enquanto o assistencialismo e outras formas de dependências efectivamente corroem a vontade e a energia da nação.
No segundo caso que é dos países que conseguiram realizar um desenvolvimento sustentado é mais do que claro a importância da liberdade, do exercício de uma cidadania plena e das condições institucionais para que cada indivíduo esteja em posição de dar o maior de si próprio para a sua prosperidade e a da sua família e contribuir para a riqueza nacional. Os governos nesses casos são avaliados pelo que podem disponibilizar às pessoas para que elas próprias possam produzir, criar e realizar. O processo político aí tem um papel muito claro: perante uma realidade sempre em transformação deve poder encontrar soluções novas e inovadoras, corrigir erros, e assumir e exigir responsabilidades. Evita-se por isso a crispação política, a excessiva polarização partidária e o intervencionismo estatal que só dificulta e aumenta custos e coarcta a iniciativa das pessoas.
Os acontecimentos da semana passada vêm lembrar como ainda em Cabo Verde está-se longe do modelo e da atitude que noutras paragens provaram que podem levar ao desenvolvimento. Continuam as cerimónias oficiais de entrega de casas, no quadro do programa “Casa Para Todos”, com rendas resolúveis a partir de 750 escudos por 25 anos para apartamentos que custaram mais de 2 mil contos. O debate sobre a situação da justiça e a interpelação sobre o fundo do ambiente evidenciaram mais uma vez a inquietante tendência do governo em não responsabilizar-se por nada, em não reconhecer quaisquer falhas e em não proceder de forma a corrigir eventuais erros. A campanha movida nas redes sociais por destacados activistas do PAICV contra a comentarista da TCV e colunista do Expresso das Ilhas, Rosário da Luz, mais uma vez mostrou as marcas de quem não quer cidadãos interventivos e críticos na esfera pública. A decisão da TCV em dispensá-la na sequência dessa campanha deixa a impressão forte e inquietante de que tais acções são efectivas.
Já devia ser evidente que é um erro grave e insustentável manter os cidadãos como simples objecto das políticas do Estado. Acaba-se sempre por ferir a liberdade e a democracia e o país não prospera como devia. Só quem se rege pelo desejo absoluto do poder é que insiste nesse caminho. Legitimidade e vitória nas urnas devem ser ganhas não pela via restritiva do condicionamento da vontade política mas sim pela capacidade de produção de soluções inovadoras em ambiente de competição livre de ideias e projectos de futuro e em que restrições à cidadania plena não existam.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 28 de Outubro de 2015

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Governar com boa-fé



Faz impressão observar semana após semana a movimentação pelas ilhas do primeiro-ministro José Maria Neves, acompanhado de dois, três ou mais ministros a mostrar obras, a inaugurar obras e a prometer obras. Santo Antão foi a escolhida na semana passada. Coincidência conveniente, a ilha foi também palco de uma sessão da abertura do novo ano político do partido no governo. Considerando a intensidade dos eventos programados, imagine-se os gastos em tempo, meios e recursos do Estado para criar o ambiente de euforia e de festa. Pena que depois dessas passagens fulgurantes ficam as simples constatações dos agricultores quando lamentam:“Com toda a água que está a ser mobilizada em Santo Antão, com toda esta produção agrícola, o que é que vamos fazer com os produtos, se não temos mercado”. É que a ilha, depois de milhões de contos gastos, continua a perder população, a aumentar os níveis de pobreza e a ser incapaz de criar uma base sólida de crescimento.  
Governos enamoram-se das obras mesmo quando não dão os resultados pretendidos ou não produzem o prometido efeito de arrastamento na economia. É difícil resistir aos seus encantos. A obra parece sonho realizado, é sólida e não poucas vezes grandiosa. Só que  frequentemente fica aquém do que com entusiamo se disse do seu potencial no dia da inauguração. Despois de seiscentos milhões de contos de investimento em obras e infraestruturas nos últimos quinze anos, Cabo Verde não tem muito a mostrar quanto ao crescimento económico, diversificação da economia e criação de emprego. Nos últimos anos a economia nacional tem ficado por níveis de crescimento médios abaixo dos 2 % e não há muitas razões para acreditar que será muito melhor no futuro, tendo em conta o seu nível de endividamento público e a falta de competitividade externa da sua economia. Para conter o défice orçamental e travar o crescimento da dívida pública vem-se reduzindo drasticamente os investimentos públicos.
Com o investimento público a cair e o investimento privado inibido, entre outras razões, pela percepção de riscos macrofinanceiros, dificilmente a economia poderá trilhar o caminho rumo à prosperidade que o PM insiste em prometer para 2030. O problema é que, mesmo com os resultados tão longe das expectativas criadas, o discurso político não muda, a actuação do governo continua a seguir o seu caminho imperturbável e as promessas para o futuro assemelham-se demasiado com as que já tinham sido feitas no passado. É como se ninguém tivesse aprendido nada com as experiências anteriores ou retirado qualquer ilação da metodologia seguida em fazer as opções, na definição de prioridades e no encadeamento de medidas e políticas que aumentariam a probabilidade de sucesso e de satisfação das expectativas criadas.
A história comparada de várias economias mostra que não há uma fórmula certa e única para se criar a riqueza das nações. De entre os vários factores que concorrem para o sucesso na consecução desse objectivo destacam-se a qualidade das instituições e das infraestruturas. Mas enquanto governar para criar o ambiente institucional adequado não é tarefa muito glamorosa e está sempre sujeita à resistência de interesses escondidos, já governar com olhos postos em obras  pode constituir uma tentação fatal. A diferença de percursos, por exemplo, de Portugal e Irlanda antes e depois da crise é revelador das consequências da governação num e noutro sentido. Menos dotada de infraestruturas mas com instituições de maior nível, a Irlanda soube crescer depressa antes da crise e rapidamente reiniciou a retoma depois dela. Portugal com infraestruturas de última geração não viveu a dinâmica que se aproximasse da do Tigre Celta mesmo no tempo das vacas gordas e ainda está por recuperar da crise. Em Cabo Verde a aposta no betão, além de não ter produzido um efeito de arrastamento na economia que se traduzisse em crescimento económico, deixou de rastos o sector privado nacional, em particular o sector da construção civil. A atenção nas obras não deixou que se tomassem as medidas certas e tempestivas para melhorar o ambiente de negócios e a competitividade de Cabo Verde.
Continuar a prometer obras e infraestruturas da mesma forma como se fez no passado recente tem agora um problema adicional. Cabo Verde provavelmente já ultrapassou o limite da dívida e não pode endividar-se mais. As promessas de mais obras dispendiosas nestas condições não são totalmente honestas. Insistir nessa forma de fazer política além de criar mais frustração leva as pessoas a se conformarem com o que tomam como declínio inevitável da sua cidade ou da sua ilha. Já se sente isto em vários pontos do país. É uma realidade que gera muito ressentimento, abre caminho para políticas de vitimização e não deixa que as pessoas vejam a causa real dos seus problemas e se prontifiquem para agir em consequência. 
A próxima campanha eleitoral que vai ter como pano de fundo um contexto nacional e internacional difícil devia ser aproveitada para se resgatar a prática da governação honesta. Propaganda e actos de ilusionismo não devem ser a principal interface da relação dos governantes com os cidadãos e com a sociedade em geral.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 21 de Outubro de 2015

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Boa governação não rima com ilusionismo



O Primeiro Ministro José Maria Neves na segunda-feira passada declarou total confiança no ministro do Ambiente, Habitação e Ordenamento do Território, Antero Veiga. O PM ausente do país há mais de duas semanas em digressão pela Ilha da Madeira, Portugal e várias cidades dos Estados Unidos para, entre outras actividades, fazer o lançamento do seu livro, homenagear personalidades nas comunidades cabo-verdianas e discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas não tinha ainda assumido uma posição sobre o caso do Fundo do Ambiente. Aliás, pelo longo tempo que se levou para esclarecer a opinião pública depreende-se que nem o próprio ministro tinha os dados todos para isso. Não quis pronunciar-se nem antes nem depois das revelações apesar de solicitado pelos jornalistas e só veio a convocar uma conferência de imprensa 19 dias depois da manchete do jornal A Nação. Nas declarações à imprensa presente, o ministro acabou por confessar que o Fundo de Ambiente nunca tinha apresentado contas ao Tribunal de Contas e que ainda estavam a ser auditadas as contas de 2012, 2013 e 2014. Se se juntar a isso as intervenções designadamente de beneficiários do Fundo do Ambiente ligados ao partido no governo e as omissões governamentais em dotar o Fundo de órgãos próprios de decisão e de os fazer funcionar dificilmente se compreende a razão do Sr. PM em proclamar total confiança no Ministro Antero Veiga. Será que é para o colocar acima de qualquer crítica?
O PM, nas suas declarações de apoio ao Ministro, diz não concordar com a prática de não prestação de contas de recursos que ele próprio relembra que são dos cabo-verdianos e cabo-verdianas. Enfraquece a sua posição a partir do momento em que assevera que todos os fundos públicos devem prestar contas para logo a seguir afirmar categoricamente que no seu governo tem sido sempre assim, quando se sabe, da própria experiência do Fundo do Ambiente, que há uma prática contrária. Continua a enfraquecer a sua posição ao procurar desvalorizar as críticas, referindo-se ao ambiente de pré-campanha que diz já existir no país. Primeiro, porque o governo não deve assumir perante críticas públicas uma atitude sobranceira de quem não tem contas a apresentar a ninguém. Segundo, não pode escudar-se em pretenso tempo de campanha ou pré-campanha para desvalorizar revelações, críticas ou denúncias. Podia-se dizer que fazer isso é realmente um acto de campanha. E se a recusa em prestar contas é já estar em campanha pré-eleitoral, o que o público poderá pensar das viagens incessantes que os membros do governo fazem pelas ilhas protagonizando eventos múltiplos e aparecendo sistematicamente em situações que qualquer pessoa poderia classificar de campanha eleitoral pura e dura.
Aliás, é interessante que na sua alocução o PM faça um apelo que talvez fizesse mais sentido vindo do presidente da república. Pede serenidade aos partidos políticos, às câmaras municipais e a todos os órgãos de soberania neste período que já considera de pré-campanha eleitoral. Parece paradoxal que um chefe de um governo suportado por um partido político dirija a outros actores políticos tal pedido, mas não é. Está-se, de facto, perante um acto de ilusionismo puro: um chefe de governo partidário que já não é líder partidário e assume postura suprapartidária de quem não está em lides partidárias. Com que propósito, pergunta-se. Obviamente só pode ser por razões partidárias: a curto prazo, para deflectir críticas da sua governação, desarmar a oposição e ficar solto para demonstrar ao país em inúmeros momentos os exemplos da sua “gestão de impossibilidades”. A médio prazo, para deixar tudo em aberto. Entretanto vai estendendo o seu manto “mágico” de protecção aos ministros partidários que de alguma forma tropeçarem nos resultados omissos ou menos bons da governação e ficam sujeitos às críticas das pessoas e da oposição.
Accountability (responsabilização e prestação de contas) está no centro da própria ideia da democracia. Conseguiu-se em Cabo verde desviar um bocado desse princípio básico com ganhos claros para quem realmente governa e gere os recursos colectivos e com alguma estupefacção e desorientação para os cidadãos. Estes quando questionam falhas designadamente na economia, na sociedade, na segurança ou no emprego e procuram quem responsabilizar, recebem invariavelmente a resposta: a responsabilidade é de todos, mas o governo já fez a sua parte e está bem-feita. Se os resultados não são os melhores, do tipo crescimento raso, desemprego excessivo, insegurança e delinquência juvenil, os responsáveis só podem ser outros.
Todas as imbricações do Fundo do Ambiente apontam para o que não se devia fazer na gestão dos recursos público: não seguir os procedimentos previstos para a sua disponibilização; alimentar suspeitas de canalização para organizações de alguma proximidade política; cair na tentação de usar fundos no embate político com as câmaras municipais e no condicionamento eleitoral dos cidadãos; e negligenciar na apresentação de contas às autoridades de fiscalização competentes. Proliferam fundos públicos no país. É da maior importância que a sua utilização seja judiciosa. A via principal para que assim seja é manter claras as linhas de decisão e de responsabilização. Evita-se desta forma que sejam capturados por interesses particulares e não sirvam os objectivos de fraternidade, de solidariedade e de igualdade de oportunidades com que foram criados. Assim como também que se constituam em instrumentos de ambição política de quem não olha a meios para realizar os seus fins.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 14 de Outubro de 2015

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Nós e a “estagnação secular”

O FMI na sua reunião anual em Lima, Peru, na semana passada fez a revisão em baixa da previsão do crescimento da economia mundial para 2015 e 2016. Vários factores contribuem para isso, entre os quais a quebra no crescimento dos países emergentes em particular a China e o Brasil mas também a Rússia. Lawrence Summers um respeitado economista americano escrevendo no jornal Financial Times alertou mais uma vez pelo que ele chama de estagnação secular que poderá caracterizar a economia global nos próximos anos. Uma situação que, como ele diz, não é muito diferente do que há cerca de 25 anos acontece no Japão e que é caracterizada por crescimento baixo num ambiente de baixa inflação e taxa de juros próximo do 0%. A fraca dinâmica dos BRICS nos últimos tempos piorou a situação e aumentou as probabilidades do toda a economia mundial ser forçada a uma travagem brusca com impacto directo na luta pelo emprego e contra a pobreza.
Essa possível evolução da economia não é uma boa notícia para Cabo Verde. Não torna os parceiros mais generosos na dispensa da ajuda internacional, seja por que vias for. Afecta negativamente a procura para bens e serviços cabo-verdianos e tende a diminuir o fluxo de capitais que eventualmente o país poderia atrair. Se juntarmos a isso o nível de competitividade do país que teima em não progredir (passou no último ano do 114º lugar em 144 países para 112º em 140 em 2015 mantendo o mesmo GCI de 3.7) é evidente que há motivo para preocupação.
Cabo Verde precisa crescer mais para diminuir o desemprego e a pobreza. As reformas feitas e os custosos investimentos já realizados não conseguiram fazer a economia crescer em média nos últimos três anos acima de 0,9%. O Governo responsabiliza a crise internacional. Já o BCV considera que faltam condições endógenas mesmo para aproveitar completamente uma dinâmica económica mais vigorosa da União Europeia, o maior parceiro de Cabo Verde. Mantendo-se a situação de crescimento sistematicamente abaixo das previsões que têm sido feitas pelo governo mais difícil se torna sustentar a já pesada divida pública.
Um sinal de que algo não poderá estar a correr bem é o facto de ainda o conselho de administração do FMI não ter aprovado o relatório da consulta feita em Março no âmbito do artigo quadro. Previsto para o mês de Maio, até hoje não se realizou. Cabo Verde é dos pouco países que exige que o FMI peça explicitamente autorização para publicar dados sobre o país. Segundo dados do FMI houve uma situação em que só passados 120 dias é que as autoridades cabo-verdianas autorizaram. Essa falta de transparência não inspira confiança.
Actualmente nota-se que mesmo aqui no país a publicação de dados já não segue um calendário certo. O BCV publicou o relatório de política monetária só em Junho, muito mais tarde do que era habitual. O mesmo já tinha acontecido em Novembro. Outros relatórios designadamente os dos indicadores económicos que regularmente apareciam, tardam em ser publicados. Fica-se com a impressão de que há alguma relutância na publicação de informações sobre o país e isso só traz desconforto para quem investe ou desenvolve actividade económica em Cabo Verde porque tem dificuldades em avaliar os riscos existentes.
É pena que o esforço que o governo despende para manter o ilusionismo congratulando-se com a diferença de dois lugares no relatório da competitividade, quando o Global Competitiveness Index (GCI) é o mesmo, 3.7 para 2014 e para 2015, não é o mesmo que põe em medidas com impacto marcante em tornar realmente competitiva a economia cabo-verdiana. Por exemplo, os quatro primeiros factores problemáticos para o ambiente de negócios são, de acordo com o último relatório, o acesso ao financiamento, a carga fiscal, a ineficiência da burocracia do Estado e a complexidade da legislação fiscal. Em 2014 o factor complexidade das leis fiscais estava no sétimo lugar. Passou agora para o quarto lugar das dificuldades. Quer dizer que três dos principais obstáculos em melhorar o ambiente de negócios resultam da acção directa do governo e da sua administração. É claro também que quem desta forma age não mostra vontade suficiente para resolver a situação. Não se compreende é que mesmo assim se regozije com ganhos ilusórios.

A realidade da situação económica mundial não é a melhor. Cumulativamente até 2020, segundo Larry Summmers, está-se a prever em baixa o crescimento dos Estados Unidos  de 6%, de 3% para Europa, 14% para a China e 10% para os países emergentes. Ou seja, bons tempos não vêm ai. Seria bom que o governo despertasse para os reais problemas do país e se disponibilizasse para tomar as medidas adequadas em vez de ficar só pela retórica de campanha pré-eleitoral. 

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de Outubro de 2015

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A longa saga do Tribunal Constitucional



Finalmente elegeu-se o presidente do Tribunal Constitucional. Infelizmente aconteceu mais de quatro meses depois da tomada de posse, a 14 de Maio, dos juízes eleitos pela Assembleia Nacional. A demora acabou por alimentar especulações quanto a eventuais compromissos feitos no processo que culminou com a eleição dos juízes pela Assembleia Nacional. As sucessivas fugas de informação com o posicionamento dos juízes ora como candidatos, ora como não candidatos e ainda o inesperado voto branco na eleição do presidente do TC deixam a impressão que pressões e jogadas políticas podem não ter terminado com a eleição dos juízes. Não é um bom começo, mas espera-se que os juízes saibam ultrapassar os percalços iniciais com espírito de missão e a consciência do papel único de estarem a edificar uma instituição tão fundamental para a república.
Percalços no processo da instalação do Tribunal Constitucional surgiram desde da sua criação na revisão constitucional de Novembro de 1999. Não é por acaso que se levou 15 anos para o instalar. A lei que estabelece a competência, organização e funcionamento do TC só foi aprovada em Janeiro de 2005. As tentativas anteriores de uma lei orgânica para o TC foram goradas. Ao longo dos primeiros dez anos vozes diversas vindas designadamente da presidência da república, do governo e de sectores do PAICV puseram em causa o modelo do Tribunal Constitucional, mas nunca ninguém apresentou uma proposta de revisão para se voltar ao que existia na Constituição de 1992. Preferiu-se manter o modelo e não agir de forma coerente para o cumprir. Entretanto, o presidente da república continuava a nomear um juiz para o Supremo Tribunal de Justiça e a Assembleia Nacional a eleger juízes nos anos de renovação do mandato do STJ em 2003 e 2009 de acordo com o figurino constitucional anterior. Os magistrados viam a sua carreira limitada essencialmente aos tribunais da primeira instância.
O incumprimento deliberado não deixava de afectar negativamente as instituições democráticas. Ficava a pairar no ar a ideia que se houvesse vontade firme de algum sector da sociedade podia-se não cumprir integralmente o que estava estabelecido na Constituição. Uma noção extremamente grave particularmente numa democracia jovem em vias de consolidação das suas instituições e que ainda se ressente nas atitudes e formas de acção dos efeitos de uma cultura política de natureza voluntarista, revolucionária e que não olha a meios para atingir os fins.
Na base da alteração constitucional que retirava ao Supremo Tribunal de Justiça as competências em matéria de justiça constitucional e as passava para o TC estava a convicção de que o STJ deveria ser constituído apenas por magistrados de carreira. As funções do TC implicavam a nomeação de alguns juízes - dois no caso de ser ter um colectivo de cinco juízes e três em sete - por órgãos de poder político, o presidente da república e a assembleia nacional. A separação dos dois tribunais além de abrir espaço para a evolução da carreira dos juízes contribuía também para uma maior independência dos tribunais judicias. Naturalmente que houve quem se opusesse à essa opção. A existência de um Tribunal Constitucional não é pacífica em todos os países. Em Cabo Verde, o argumento mais esgrimido tem sido o da escassez relativa de recursos humanos e materiais. A realidade não demonstra, porém, que haja poupanças significativas. Pelo contrário, tem riscos e custos escondidos que acabam por se manifestar na produtividade, motivação e efectividade do poder judicial como parte importante dos checks and balance do sistema político.
Na revisão da Constituição, em 2010, não houve qualquer tentativa de alteração do figurino no que respeita ao TC. Pelo contrário, deu-se maior autonomia e independência ao sector da Justiça e foram criados os tribunais de relação. Tudo porém ficou dependente da instalação do TC. Os novos juízes conselheiros nomeados na sequência de concursos públicos deveriam poder ocupar os seus lugares no STJ assim como os juízes desembargadores nos tribunais de relação. O novo arranjo deveria ser feito num prazo de três anos, mas vozes contrárias continuaram a fazer-se ouvir aqui e além e acções atempadas não aconteceram. Em consequência, está-se no quinto ano e só agora com a instalação definitiva do TC, o STJ vai poder reorganizar-se e todo o sistema poderá mover-se para se conformar a Justiça com o figurino constitucional estabelecido. Espera-se que a reorganização aconteça da forma mais harmoniosa e traga mais produtividade, celeridade e independência à administração da justiça nesta terra.
A autêntica saga que tem sido o processo de instalação do Tribunal Constitucional deveria servir de alerta para a persistência de resquícios de uma certa cultura política que não reconhece que democracia não significa apenas governo da maioria. É o sistema do governo limitado. O Estado tem que se submeter à Constituição e à Lei, respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos e a independência dos tribunais e desenvolver a sua actividade tendo em devida consideração a autonomia do poder local e o princípio da descentralização democrática. O que se perdeu em não ter uma justiça moderna, célere e efectiva tem similaridades com o que se vai perdendo em eficiência e eficácia na crispação política, falta de transparência e em capital de confiança devido às más práticas de contornar e esvaziar instituições e de as substituir por entidades paralelas. Há que mudar de atitude e de comportamentos.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Setembro de 2015