segunda-feira, 29 de março de 2021

Quer-se debate mais construtivo

 

A primeira impressão que se tem ao assistir ao primeiro debate entre os líderes partidários em período de preparação para as eleições legislativas é que Cabo Verde não parece estar no meio de uma pandemia.

Os argumentos trocados, as críticas feitas e as propostas apresentadas pouca atenção deram ao facto concreto e presente de que o país vive uma recessão sem precedentes, acumulou uma enorme dívida pública e as perspectivas de retoma são incertas e dependentes de como outros países irão dinamizar as suas economias. Ao longo do debate a abordagem escolhida pelos diferentes actores acabou por reforçar a ideia de que o discurso político – cheio de chavões como inclusão, empreendedorismo, clusters e hubs, futuro digital e de ideias fixas como mobilização de água para agricultura, terminais de cruzeiros e aeroportos internacionais sem um quadro estratégico claro – está divorciado da vida real. Passa ao lado da realidade de que as pessoas querem a possibilidade de ter um emprego de qualidade, de se qualificarem através de uma educação e formação adequada e de prosperarem num ambiente ordeiro e não discriminatório. Para isso requerem segurança pessoal, mas também jurídica e condições sanitárias que lhes permita qualidade de vida.

Tal discurso contribui para uma postura das pessoas e da sociedade perante os problemas do país que passa por minimizar ou desvalorizar os formidáveis obstáculos que teimam em manter-se no caminho para o desenvolvimento. As persistentes vulnerabilidades do país e precariedade na vida das pessoas deviam estar aí para ajudar a reconhecê-los e a criar vontade para os superar. Vê-se, porém, pela forma como a pandemia do coronavírus tem sido assumida que aparentemente nem com uma ameaça maior e de natureza existencial consegue-se sacudir a modorra.

As recentes reivindicações acompanhadas de ameaças de greve que tem aparecido nas últimas semanas deixam claro a impressão de que aparentemente não se reconhece que o país vive dificuldades extraordinárias. O corte com a realidade presente e futura é mais notória porque vêm particularmente do sector público, precisamente de onde nos meses de estado de emergência e de quatro lay-offs que reduziu o rendimento de milhares de trabalhadores a 70%, os salários dos funcionários mantiveram-se a 100%. E ninguém protesta por causa disso.

Sem assunção da gravidade do problema em mãos não há como trazer à tona sentimentos mais altruísticos e solidários, atenuando impulsos mais reivindicativos, nem se é capaz de mobilizar energia para fazer da crise uma oportunidade e encetar reformas profundas que serão necessárias para redinamizar a economia. O facto de, em algumas sondagens, a pandemia ter aparecido em lugares muito abaixo nas preocupações dos caboverdianos denota o quanto o discurso político no país tem ajudado a dar uma falsa perspectiva da realidade vivida. Estar-se a viver um ano eleitoral em tempo de pandemia, agravou a situação ainda mais.

A tendência é de reproduzir discursos e práticas políticas que, numa espiral ascendente de promessas estimulado pelas duras críticas da oposição apontando a não realização, deficiente realização ou inadequação das soluções da governação, põem enfase em obras e na distribuição de rendimentos. A dialéctica entre as forças aí estabelecida não leva nem ao melhor conhecimento da situação do país nem a mais cooperação para enfrentar os problemas. Pelo contrário, tende a excitar ainda mais o sentido reivindicativo das pessoas e da sociedade quando menos dele se precisava e mais solidariedade se mostrava necessário.

A falta da adequação do discurso político produzido aos problemas do país e à realidade do mundo é vista por uns como oportunidade para se oferecerem como alternativa na governação e por outros como prova de falência da democracia, do seu sistema de partidos, do seu pluralismo, das suas instituições e das suas leis. Pelo debate vê-se que há projectos de poder diferentes. Não é claro para muitos como é que as propostas de governação divergem substancialmente. Ninguém parece querer disponibilizar-se em ver o país numa outra perspectiva não obstante as crises recentes e a pandemia que revelaram profundas vulnerabilidades das populações. Nem tão pouco quer-se ter em devida conta a conjuntura internacional que tornou evidente que voltar a crescer irá exigir reformas inovadoras, uma outra atitude e muita solidariedade.

Neste ambiente o cepticismo de alguns em relação aos partidos parece justificar-se. Daí os ataques aos partidos que acabam por fragilizar o sistema democrático e que, a exemplo de outros países, pode abrir caminho a líderes tendencialmente autocráticos e a derivas iliberais com baterias apontadas no pluralismo, na liberdade de expressão e de imprensa e na independência dos tribunais. Essa via, porém, não tem que ser a única possível para os descontentes com o funcionamento da democracia e com a aparente falta de alternativa.

Tocqueville no seu livro A Democracia na América fala no papel das associações de todo o tipo profissional, social, civil e político, naquilo que hoje se chama de sociedade civil, em ancorar o sistema democrático. Para ele a democracia não tem que ficar só pelos cargos e órgãos eleitos. Precisa da participação activa, atenta e fiscalizadora dos cidadãos e das suas associações para que a sua integridade baseada na liberdade, no pluralismo e no primado da lei não seja posta em causa. Atirar-se contra as instituições da democracia descredibilizando-as, por que descontente com o seu funcionamento num determinado momento, é como dar um tiro no pé. E a história mostra que depois de se fazer ruir as instituições o caminho fica aberto para candidatos a “salvadores da pátria” todos eles prontos a sacrificar a liberdade em nome da sua ordem e da sua justiça.

A democracia também é ancorada nos seus fundamentos quando, como se viu recentemente na América de Trump, maiorias conjunturais são limitadas no seu poder de desestruturação institucional do sistema político vigente por órgãos independentes. O Supremo Tribunal de Justiça, a comissão eleitoral e a instituição militar efectivamente impediram que a legitimidade das eleições de 2020 fosse posta em causa e que não se verificasse a transferência de poder para o candidato vencedor. O exercício independente, competente e com sentido de serviço público das suas funções pelas magistraturas judiciais e do ministério público e pelos titulares de órgãos como o banco central, comissão eleitoral, autoridades reguladoras, comissão de dados e outras entidades afins é de maior importância para a credibilidade do sistema e para manter a confiança dos cidadãos. Devem ser protegidas de interferências desestabilizadoras das suas funções.

Ainda estão por realizar mais dois debates antes das legislativas e a campanha eleitoral só começa no dia 1 de Abril. Deve haver mais pressão das pessoas e da sociedade civil para que o discurso produzido pelos candidatos reflicta mais a situação real do país neste tempo de pandemia e de recessão mundial na perspectiva de se encontrar as melhores soluções. O momento não é só dos partidos. É também de todos os cidadãos e suas organizações. E não se trata só de votar no dia 18 de Abril, mas de se fazerem ouvir com responsabilidade e um sentido apurado de que é preciso preservar as virtualidades do sistema democrático para que o futuro do país se realize com ganhos para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Um ano de Covid, tempo para reflexão

 

Um ano a conviver com a Covid-19 devia ser momento de uma reflexão profunda de como se encarou a pandemia, de como as pessoas se adaptaram às exigências dos novos tempos e de como as políticas públicas e o Estado mudaram para responder aos novos desafios.

Em todo o mundo reflexões dessa natureza têm sido feitas pelos mais diversos sectores da sociedade envolvendo personalidades das mais diferentes áreas, incluindo cientistas, políticos, operadores económicos, agentes culturais, entidades religiosas e activistas sociais. Em Cabo Verde, infelizmente reflexões sobre a matéria não abundam, prefere-se ficar quase sempre pelos comunicados dos números diários de casos acompanhados de análises da evolução da doença muitas vezes a contragosto, quando instados por jornalistas. Da parte das autoridades, nota-se não poucas vezes uma certa irritação se não hostilidade sempre que opiniões não oficiais são manifestadas sobre os dados da pandemia e que questionamentos são feitos quanto à condução da luta contra o vírus mesmo quando vêm de profissionais com experiência na área da saúde.

É mais que provável que a convivência com a Covid-19 vai durar de uma forma ou outra por vários anos. A grande questão é se se pode ir ultrapassando as dificuldades colocadas pela pandemia sem uma efectiva mobilização de todos para a combater. É verdade que se pode retirar erradas conclusões do que se passou até agora e concluir que se pode continuar a fazer o mesmo sem riscos futuros de problemas maiores em termos de saúde pública, do impacto sócio económico e dos efeitos a prazo na qualidade de vida das pessoas. A tentação é grande para manter a atitude, sempre que há crises sejam elas secas, furacões ou epidemias, de mobilizar ajuda externa e dar continuidade a programas que o tempo tem demonstrado que permitem sobrevivência no dia-a-dia, mas a prazo não diminuem as vulnerabilidades das populações e a precariedade na vida das pessoas.

De facto, passou um ano e não houve pressão sobre o sistema de saúde que pudesse ameaçar colapso. As mortes pela Covid-19 ficaram sempre aquém do 1% dos casos identificados e não foram traumáticas a ponto de forçar reflexão e mudanças na postura das pessoas. A população em grande medida acatou as recomendações das autoridades quanto ao distanciamento social e em particular quanto ao uso de máscaras o que eventualmente veio a revelar-se a grande medida para a contenção da velocidade de transmissão do vírus. O impacto do desemprego massivo causado pelo coronavírus foi amortecido com programas de lay-off para os trabalhadores privados, com rendimento social assegurado a muitos operadores informais e com vários programas de suporte às famílias vulneráveis. Nesse sentido também contribuíram as moratórias nos pagamentos bancários, as rendas de habitações sociais perdoadas ou diminuídas e a construção civil alimentada pelo Estado, pelos municípios e também por privados. As remessas de emigrantes mantiveram-se no seu papel fulcral de ser a grande safety net, a rede que ampara muitas famílias em momentos de necessidade.

Pode bem acontecer que alguém venha dizer que se num primeiro ano conseguiu-se isso seguindo um certo caminho e recorrendo a uma determinada orientação por que não continuar na mesma senda num segundo ou terceiro ano ou durante todo o tempo que durar a pandemia. A grande diferença é que no caso da pandemia da covid-19 todos os países sofrem e endividam-se e vão levar algum tempo para se recuperarem e conseguirem ser generosos com os outros. Caso para dizer que com a pandemia o mundo mudou e o egoísmo das nações nem sempre será equilibrado pelo espírito altruísta manifestado noutros tempos. Não é pois razoável contar com a repetição da generosidade, sem perceber que mesmo se mantendo será cada vez menor o seu impacto sobre a economia, face ao acumular da dívida pública e as dificuldades reais em avançar com uma retoma robusta e sustentável. Claro que perceber e assumir isso seria uma demostração de que algo se entendeu da pandemia e que convém mudar em muita coisa para se estar preparado na próxima vez, porque haverá sempre uma próxima vez.

A chegada das vacinas para a Covid-19 antes que do que se supunha como tempo necessário para desenvolver uma vacina eficaz pode levar muitos a pensar que é possível ou mesmo desejável continuar a fazer o mesmo e esperar que as coisas mudem. Não se faz por compreender que os sacrifícios de ontem não foram só para evitar o colapso do sistema de saúde e conter o número de mortos como também para se construir uma resposta em termos de imunidade de grupo. A proximidade das eleições com o ciclo eleitoral iniciado com as eleições autárquicas de Outubro e seguidas pelas legislativas em Abril e as presidenciais de Outubro não ajuda a fugir desta tentação perigosa.

Muito pelo contrário, a excessiva politização agora exacerbada em tempo de eleições só vai empobrecer ainda mais o discurso político, polarizar opiniões, açambarcar e diluir todo o pensamento, criatividade e iniciativa das pessoas na contenda para chegar ao poder. Até as vacinas não escapam a essa politização primária com a agravante dos protagonistas fingirem não perceber que a desconfiança lançada contra as vacinas torna as pessoas renitentes em as aceitar. Com isso é a saúde das pessoas que são colocadas em perigo ou vidas que terminam antes do que devia ser a “sua hora”. Ao insistir nesse caminho dificilmente se deixa espaço para a reflexão plural dos problemas, para a mobilização das energias e para o espírito de cooperação que, alimentando a confiança entre as pessoas, constitui a base a partir da qual se aumenta o capital social necessário para a prosperidade individual, familiar e colectiva.

Com a pandemia muitos países estão a mudar. Há dias os Estado Unidos aprovaram um plano de ajuda às pessoas e à economia no valor de 1,9 triliões de dólares. Somando esse novo estímulo aos outros concedidos durante este ano de covid, como nota o colunista do New York Times David Brooks, chega-se ao valor de 5,5 triliões de dólares gastos com a pandemia, uma quantia muito superior aos 4,8 triliões gastos durante a segunda guerra mundial. Para um país que até recentemente acreditava em governos pequenos e não muito intervencionistas em matéria de luta contra desigualdades diversas é uma inflexão de políticas e do papel do Estado de tal forma transformacional que alguns já a apontam como igual ou superior ao do New Deal de Franklin Roosevelt. A Europa vai provavelmente seguir passos similares assim como outros países emergentes para fazer face aos desafios que o coronavírus irá coloca a todos ainda por alguns anos. Cabo Verde não pode, nem deve ser excepção. Período eleitoral não é desculpa. Muito pelo contrário.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1007 de 17 de Março de 2021.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Emigração, um activo a não desperdiçar

 

Em tempo de eleições invariavelmente volta-se à questão da participação dos caboverdianos residentes no exterior nos pleitos eleitorais.

Há vozes que dizem para se alargar a participação para as eleições autárquicas. Outras, mais em surdina, mostram preocupação com os efeitos da transposição da crispação política e do partidarismo excessivo que resulta das disputas políticas no país para as comunidades no exterior. Neste ciclo eleitoral o foco das atenções tem sido a participação nas eleições presidenciais. Contestam-se os requisitos para se ser candidato a presidente da república, em particular, a exigência de ser caboverdiano de origem e de não ter dupla ou plurinacionalidade. Disputa-se o chamado valor do voto do caboverdiano residente no estrangeiro que segundo algumas interpretações seria de um quinto do voto do cidadão recenseado no território nacional.

A participação da diáspora nas eleições iniciou-se com a Constituição de 1992. Para as legislativas ficou estabelecido no nº2 do artigo 153º da versão originária que ao conjunto dos círculos eleitorais fora do território nacional correspondiam seis deputados. A lei eleitoral depois viria a criar três círculos na emigração com dois deputados cada. Para as presidenciais estendeu-se o sufrágio a residentes e não residentes com a ressalva de que o total desses votos equivalia no máximo a um quinto dos votos apurados no território nacional. A ousadia em dar aos emigrantes a possibilidade de votar nas eleições do PR diluiu-se na controvérsia criada à volta da limitação dos efeitos da votação no exterior. Alguns países na época permitiam a votação da diáspora nas legislativas, mas não nas presidenciais. Portugal só viria a consagrar a participação dos emigrantes na revisão de 1997 mais de vinte anos depois da adopção da Constituição da III República.

Em Cabo Verde, ao contrário da generalidade dos países, existe a percepção de que o número de caboverdianos e seus descendentes a viver fora do país é maior do que a população residente. Esse facto coloca potencialmente a hipótese de o presidente ser eleito só com os votos dos emigrantes. Ora, sendo o presidente da república o representante da comunidade política e o Chefe de Estado no território que define o país não parece próprio que a sua escolha em eleições seja determinada por cidadãos não residentes, embora recenseados. Daí talvez que se tenha querido limitar o eventual impacto dos votos a um quinto dos conseguidos nas urnas em território nacional.

Curiosamente, apesar de até agora nunca se ter aplicado o critério porque a votação na diáspora nas eleições presidenciais tem ficado sempre muito aquém desse máximo não falta quem queira ver agravo na matéria e queira interpretar o preceito como uma espécie de discriminação do emigrante, quando, de facto, era claro o intento do legislador constituinte de tornar mais inclusiva a sua participação política. Prova disso é que – quando se trata da representação dos cidadãos num órgão plural como o parlamento – a quota dos deputados pela emigração, é de seis em 72 deputados, ou seja, de (8,3%) quando em Portugal são 4 em 230 deputados representando 1,7%. Em relação a uma outra objecção que é levantada quanto a dupla nacionalidade do candidato a PR, a posição de constitucionalistas como Gomes Canotilho e Vital Moreira é que é de se questionar se o cargo é compatível com a posse de outra cidadania e de se admitir implicitamente uma proibição de eleição de cidadãos plurinacionais.

A verdade é que, não obstante o esforço feito ao longo dos anos na promoção do recenseamento no exterior, o número de caboverdeanos recenseados que vão votar não tem aumentado extraordinariamente. Embora sejam inquestionáveis os laços afectivos que os ligam à terra, à família e aos amigos nota-se que para muitos a participação política é uma outra coisa. As questões do país não deixam de estar distantes do seu quotidiano e por isso não são seguidas de forma sistemática e muito menos apaixonada. Democracia liga comunidade a um território específico e conecta a representação nos órgãos de poder político à contribuição fiscal dos cidadãos e às suas perspectivas de como o “bolo” geral deve ser aplicado na resolução dos problemas da comunidade.

É natural que, existindo possibilidade de participação, quem mais se engaja no processo é quem é afectado directamente tanto pelos impostos pagos como pelos benefícios recebidos e serviços disponibilizados pelas autoridades públicas. Não é à toa que na base da democracia está o princípio de“no taxation without representation” (sem representação não há tributação). Aliás, nas eleições autárquicas vê-se aplicado o princípio quando limita o voto aos considerados munícipes com exclusão mesmo dos que eventualmente ali nasceram, mas não têm residência permanente. Por isso, assumir que existe um quadro discriminatório nas actuais limitações de elementos da diáspora nas eleições presidenciais parece excessivo e apenas pode servir para exacerbar antagonismos onde nem deviam existir.

A pandemia da covid-19 veio mais uma vez confirmar a importância-chave da ligação do país às suas comunidades no exterior. As remessas dos emigrantes aumentaram na actual situação de maior necessidade demonstrando o quanto que a solidariedade com os familiares nas ilhas é consistente em qualquer circunstância mesmo quando a conjuntura não é boa e os rendimentos diminuem. O fluxo externo assim gerado ajuda a estabilizar o país e faz relembrar que é preciso desenvolver estratégias a vários níveis para o garantir, ampliar e qualificar de modo a ter o máximo de impacto na economia nacional e a afectar de forma mais positiva o rendimento das pessoas.

Nesse sentido, é fundamental que o país no seu todo aposte no sucesso das suas comunidades nos países de emigração. Noutras paragens diz-se que querelas partidárias não devem ir além da linha de horizonte para que a política externa tornada consensual no país seja mais efectiva no plano internacional. Em Cabo Verde esse princípio também devia ser aplicado à política dirigida às comunidades emigradas. Constituem um activo demasiado importante para serem alienadas com crispações em nome da participação política nas ilhas quando a atenção na comunidade devia ser virada para conseguir mais mobilidade social, melhor posicionamento na estrutura produtiva e crescente capacidade de influenciação política e cultural nos países de acolhimento.

Cabo Verde ainda pode ajudar com uma política de educação e formação que fomente uma emigração mais qualificada. Países como a Índia fizeram isso durante décadas no domínio das ciências e hoje colhem o rico retorno do investimento em particular nos sectores da economia do conhecimento e das tecnologias de informação e comunicação. As Filipinas “exportam” anualmente mais de 13 mil enfermeiras e outros profissionais de saúde. Também Cabo Verde deverá ter uma política activa nesse sentido considerando que sem um sector industrial dinâmico não tem como resolver o problema do desemprego de forma rápida e com emprego de qualidade.

Uma aposta podia ser feita no domínio da saúde onde claramente há um mercado global em franca expansão principalmente agora com a Covid-19 que hoje é uma pandemia, amanhã provavelmente será uma doença endémica exigindo cuidados permanentes para neutralizar os surtos, vacinar e cuidar de sequelas. No país já há várias escolas de enfermagem e de outros cuidadores de saúde, mas seria de toda a importância que, dentro de uma estratégia não só de qualificar a emigração como também de preparar o país para ser um futuro fornecedor de cuidados de saúde, conseguissem certificação internacional dessas classes de profissionais. A convergência com a União Europeia no quadro do acordo especial não tem que ser só no campo normativo. Deve ser mais abrangente e incluir o exercício de profissões que, para benefício das partes, justificariam a ampliação do acordo de mobilidade. Aliás, neste aspecto, há muito que o caminho foi aberto pelos emigrantes que nos vários países são cuidadores só que infelizmente sem capacitação formal e por causa disso prejudicados no rendimento que poderiam auferir.

Para Cabo Verde é de grande importância que os emigrantes tenham possibilidade de participação política efectiva na vida nacional. O quadro existente mesmo não sendo o ideal é claramente satisfatório e está a par do que existe nas democracias mais avançadas. O estreitamento das relações do país com as suas comunidades no estrangeiro deve ir por outras vias que realmente aumentem as suas probabilidades de sucesso e de prosperidade nos países de acolhimento e em simultâneo as capacitem para melhor ajudar os familiares e investir na economia das ilhas. De evitar de todo deve ser a tentação de transplantar a crispação política no país para as comunidades. Colhem-se ganhos políticos mínimos e deixa-se como resultado mal-estar, ressentimentos e questiúnculas identitárias perturbadores que constituem obstáculos ao almejado por todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1006 de 10 de Março de 2021.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Desconstrução da justiça não é solução

 Assistiu-se na semana passada a mais alguns episódios do que se podia chamar a novela da “não Justiça”. O julgamento de um advogado que alegadamente difamou magistrados judiciais, entre os quais juízes conselheiros, foi pontuado por vários incidentes que, sem surpresa, levaram a mais um adiamento dos procedimentos para o dia 5 e seguintes de Março.

Será a quarta tentativa de julgamento. Inicialmente previsto para 5 de Janeiro depois de um hiato de quase dois anos – a última tentativa tinha sido em Março de 2019 – o julgamento foi adiado para 23 de Fevereiro por não comparência do acusado. A detenção do advogado com o intuito de prevenir a repetição da não comparência em Janeiro não serviu de muito para garantir o prosseguimento normal do julgamento.

Actos perturbadores dos procedimentos como abandono de sala, contestação da competência do juízo criminal e questionamentos quanto à idoneidade da juíza que se seguiram e tiveram eco ao longo da semana em órgãos de comunicação social e nas redes sociais foram suficientes para provocar mais outro adiamento. Curiosamente do lado de onde vêm denúncias parece haver maior disponibilidade e criatividade no uso de tácticas diversas para garantir que a justiça fica sempre adiada, confirmando num círculo vicioso a noção inicial de “não justiça” no país. Sem julgamentos iniciados e concluídos não há como os caluniados obterem reparação de quem os acusou nem este tem a possibilidade de finalmente provar as denúncias feitas. Os estragos vão porém muito além ao deixar sob suspeita juízes, processos e procedimentos judiciais. É todo o sistema judicial que se arrisca a ser descredibilizado se a situação perdurar por muito mais tempo.

Na democracia a realização da justiça é fundamental para a Liberdade e a paz social. O Estado de Direito democrático instituído, para além de se reger pelo princípio de separação dos poderes tem o seu suporte no primado da lei e na independência dos tribunais. A democracia corre perigo se se transmite a ideia de que a lei pode não ser igual para todos, que a justiça não é eficaz ou que há espaço para os juízes servirem interesses próprios ou de outrem na administração da justiça sem receio de serem punidos e expurgados do sistema. Não é por acaso que os inimigos da democracia liberal e constitucional tomam a integridade e a independência da justiça como alvo central de ataque. Sempre que acontecimentos, eventos ou conjunturas se mostrarem propícios a ataques à justiça nota-se como que de repente e de diferentes quadrantes frustrações com a actuação da justiça ou sua morosidade se juntam a sentimentos às vezes cépticos em relação à democracia e em alguns casos até anti-sistémicos para descredibilizar a democracia.

Em Cabo Verde é visível como, com o arrastar por anos seguidos do julgamento referido em que magistrados judiciais foram alegadamente caluniados, o caso tem sido transformado na bandeira de quantos querem demonstrar o seu descontentamento com o sistema de justiça e o actual regime democrático. Nos últimos tempos a força gravitacional desse caso tem aumentado, ameaçando atrair os próprios partidos políticos, em particular os mais pequenos que julgam poder capitalizar a onda populista que nele se revê. Não havendo no país factores fracturantes do tipo existentes noutras democracias nomeadamente grupos étnicos ou religiosos em tensão permanente, migrações expressivas de outras regiões, ou discriminações claras entre grupos populacionais, fica muito pouco para ser canalizado por sentimentos anti-sistema e por descontentes da democracia. Não estranha pois que alguma percepção da crise na justiça existente na sociedade seja aproveitado nesse sentido.

A petição “em prol de uma melhor justiça em Cabo Verde” dirigida ao presidente da república, provavelmente associada às manifestações recentes de pessoas e grupos à volta dos julgamentos sucessivamente marcados e adiados, terá deixado alarmado o próprio presidente de república, como parece transparecer de um seu post na sua página do Facebook. No post de 26 de Fevereiro logo a seguir a um outro de 25 de Fevereiro em que confirma ter recebido a petição, o PR escreve : “ficamos surpresos às vezes quase «arrepiados», ao lermos e ouvirmos coisas, propostas, manifestações, crenças, opções, de gente que - legítima e justificadamente insatisfeita com a situação em que vive e que observa no dia a dia - nos parecia completamente vacinada contra remédios do autoritarismo político, de um bonapartismo à mão de semear, sugestões aventureiras, amiúde a roçar a leviandade e/ou fundadas em grosseira manipulação de factos e realidades, propalados por profetas da salvação fácil, imediata e, portanto, atraente!”

De facto é muito complicado encarar questões importantes da vida do país quando o ponto de partida não corresponde aos factos. Para se propor uma “comissão de gente independente” para investigar a justiça começa-se primeiramente por semear dúvidas e suspeições numa espécie de realidade alternativa: “terá sido ordenado um inquérito”; “é verdade que não se lhe conhecem os resultados”; “é evidente que um inquérito dessa natureza (realizado pelos pares) não dá garantias de credibilidade”. Facto é que foram feitos três inquéritos: dois do Ministério Público e um outro pelo serviço de inspecção judicial a pedido do Conselho Superior de Magistratura judicial (CSMJ). Os comunicados da Procuradoria-Geral da República, um datado de 10 Abril de 2019, e o outro de 3 de Janeiro de 2020, são peremptórios a dizer que existem “prova bastante de não verificação dos alegados crimes” e anunciam que os despachos de encerramento estão abertos na PGR para consulta por qualquer cidadão. Vai no mesmo sentido o comunicado do CSMJ de 20 de Outubro de 2017. Porém, mais complicada ainda será a aparente sugestão posta a circular que não há “garantia de isenção que permita ao cidadão dizer em consciência, caso não se provar as acusações”, que [o réu] merece ser severamente punido por ter-se permitido denegrir a Justiça do país”. Ou seja, sugere-se que não se aceite a sentença do tribunal.

Ora, acontecimentos recentes vieram relembrar precisamente a importância de se manter a credibilidade do sistema judicial face às ameaças a que nos tempos actuais as democracias estão sujeitas. Há pouco mais de um mês viu-se como o sistema judicial, as comissões eleitorais nos diferentes estados americanos e a postura da instituição militar nos Estados Unidos da América contribuíram para salvar a democracia americana das investidas de forças antidemocráticas que contestavam os resultados das eleições. No Brasil, e noutros países onde os sinais da crise da democracia são mais evidentes, vê-se como o poder judicial ajuda a conter o populismo iliberal e como também se torna o alvo preferido de todas as manifestações anti sistémicas. Quando todas as democracias, sejam elas novas ou consolidadas, parecem estar a passar por uma crise profunda, incluindo crise de representação, descredibilização das instituições e o recrudescer de sentimentos anti elitistas, é fundamental que se preserve a confiança no sistema da justiça.

Em Cabo Verde os dados recentes apresentados pelo Afrobarómetro deram conta do desgaste já sentido nas instituições democráticas do país. Há razões externas que na actual conjuntura afectam todas as democracias e que se fazem sentir no país mas também há razões internas que importa identificar e contrariar para se poder reverter o actual curso. Os partidos políticos têm responsabilidade no processo, mas a culpa não deve ser somente atribuída à classe política. É fundamental exigir-se a responsabilidade de quantos em várias instituições reguladoras, de fiscalização e supervisão contribuem para que a sociedade seja autónoma e inovadora e se mantenha plural. Em particular do sistema judicial todos esperam que com competência e celeridade necessária garantam a eficácia da justiça e mesmo nos momentos difíceis saibam manter a confiança das pessoas. Dessa relação de confiança é que depende toda a credibilidade e a legitimidade do sistema judicial aos olhos do cidadão comum. Os sobressaltos dos tempos de hoje mais do que nunca convidam a relembrar de como é fundamental preservar a justiça para se ter paz e liberdade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1005 de 3 de Março de 2021.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Imunidade de grupo, objectivo estratégico a atingir

 

O governo publicou na quinta-feira,18, o seu plano de introdução e vacinação contra a Covid 19. No documento ficou estabelecido que se espera vacinar um total de 60% da população até 2023, sendo 20% em 2021, 20% em 2022 e 20% em 2023.

Como estratégia opta-se por priorizar alguns grupos alvos seguindo as orientações da OMS e por fasear o processo de vacinação conforme a disponibilidade das doses. Em consequência, as 111.372 pessoas a receber em primeiro lugar as vacinas em 2021 serão profissionais de saúde, gente com doença crónica ou com idade igual ou superior a 60 anos, trabalhadores hoteleiros e ligados ao turismo, funcionários nos pontos de entrada dos aeroportos e portos, professores, polícias, militares, bombeiros e pessoal de protecção civil. O plano, entretanto recebido com alguma perplexidade, não deixou claro quando se espera atingir imunidade de grupo como forma de impedir a transmissão do vírus na comunidade e, como se espera, obtê-la ilha por ilha sendo o país um arquipélago. Também não se indica quando poder-se-á contar com a retoma da economia sabendo que ela só será possível se os países emissores de turistas considerarem Cabo Verde um país seguro em termos sanitários e isso não é possível com apenas 20% da população vacinada e nem mesmo com 40 ou 60%.

A pandemia da covid-19 é uma ameaça à vida e aos meios de vida das pessoas. Para a combater tem que se cuidar da saúde das pessoas e isso necessariamente inclui manter o sistema de saúde a funcionar, administrar as vacinas necessárias e desenvolver terapêuticas eficazes para fazer face aos sintomas às vezes críticos da doença. O facto de se transmitir através do ar obriga a que sejam medidas de confinamento e de distanciamento social e se generalize o uso de máscaras faciais com impacto geral na economia e consequente perda de rendimentos e também de outras dinâmicas em todos outros domínios como o pessoal, familiar, profissional, social e cultural. Retornar a alguma normalidade é essencial tanto para a sanidade das pessoas como para futuras retomas de prosperidade. Na ausência de tratamentos específicos e efectivos para a covid-19 as campanhas de vacinação são imprescindíveis para se atingir tal desiderato.

Um plano que não consagre explicitamente esse objectivo num horizonte temporal razoável – para um país frágil e dependente como Cabo Verde o razoável é “ontem” - só pode, de facto, causar perplexidade e estranheza. Vê-se que para a feitura do plano só se contou praticamente com as doses previstas no quadro da Covax que inicialmente são 5.850 doses da vacina da Pfizer e as 108.000 doses da AstraZeneca. Com esse condicionamento, aparentemente perdeu-se de vista que a par do objectivo de proteger a população mais vulnerável devia-se programar para preparar o país para a retoma económica. Ora a retoma num país dependente do turismo significa reactivar o fluxo de turistas em tempo para aproveitar a época alta que começa em meados de Outubro e vai até Abril/Maio. Já bastam os prejuízos de 2020.

Para aproveitar a temporada de 2021/2022, o destino turístico cabo-verdiano deve poder dar garantias aos países emissores que o risco de contágio dos seus nacionais em férias é mínimo. Na Europa, designadamente no Reino Unido de onde vem o maior número de turistas, os governos esperam ter no fim de Verão entre 80 e 90% da população já vacinada. Ser atractivo para esses turistas pode significar ir além da meta inicial de vacinar os trabalhadores nos hotéis e nas actividades conexas e procurar conseguir a imunidade de grupo da população geral. O facto dos dois grandes destinos turísticos de Cabo Verde, Sal e Boa Vista serem ilhas de população relativamente pequena pode prestar-se à construção de uma imagem de ilhas perfeitamente seguras para o turismo.

Ser um país arquipélago tem muitas desvantagens, mas tem também algumas vantagens que convém saber aproveitar quando se enfrentam certos tipos de desafios. As ilhas enquanto territórios descontínuos naturalmente constituem espaços mais propícios para confinamentos. Permitem o controlo mais efectivo de epidemias e dos seus efeitos. Com isso em mente devia haver um consenso geral de que um forte investimento no Sal e na Boa Vista para controlar a Covid-19 e assegurar desta forma a reactivação do fluxo turístico que, pelo seu impacto na retoma da actividade económica, é de maior importância para o resto do país. Exceptuando o que se aplica na defesa da saúde da população mais vulnerável, que certamente é a prioridade das prioridades, a utilização planificada dos meios existentes devia ter isso em devida conta.

Em simultâneo Cabo Verde devia estar activamente através de múltiplos canais tanto bilaterais como multilaterais a mobilizar apoios no sentido de também conseguir atingir a imunidade de grupo da sua população, ou seja, de ter a sua população vacinada acima dos 70% ainda durante este ano de 2021. Convenhamos que o país só tem pouco mais do que 550 mil habitantes. Não conseguir isso poderá afectar severamente por vários anos tanto a imagem como a economia nacional. O maior parceiro económico de Cabo Verde é a União Europeia. Sendo assim, o país não pode ficar muito atrás nos seus planos de vacinação de uma doença com elevado grau de contágio se quiser continuar a beneficiar do turismo e dos múltiplos intercâmbios com essa região, incluindo contactos com a sua própria diáspora. Realmente, no quadro actual atingir imunidade de grupo deve ser o objectivo estratégico de capital importância a ser assumido por todos, Estado, sociedade e pessoas.

Em encontrar ânimo para fazer essa luta toda a nação cabo-verdiana devia inspirar-se no exemplo de solidariedade que durante este ano de pandemia da covid-19 foi dado pelas comunidades emigradas. Quando se podia esperar que com a quebra nos rendimentos dos emigrantes diminuiriam as remessas constatou-se precisamente o contrário. Aumentaram em mais de 3% de 2019 para 2020 atingindo o valor de 14.918 milhões de escudos em Setembro de 2020. A atitude solidária dos emigrantes deve ajudar a relembrar as virtudes que outrora face a situações de calamidade natural fizeram do cabo-verdiano um povo resiliente. A generosidade, a afectividade e e o sentido de pertença demonstrados devem também fazer sentir-se dentro do país para que os condicionalismos físicos e mentais da dependência sejam ultrapassados e para que sejam vencidas as vulnerabilidades presentes ainda nos diferentes sectores da população. O futuro só será possível com outro espírito. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1004 de 24 de Fevereiro de 2021.