sexta-feira, 29 de maio de 2015

O passado não deve reger o presente nem bloquear o futuro

Em mais um Dia da África, o 25 de Maio, o foco da atenção do mundo recai sobre o futuro do continente. As tragédias dos naufrágios no Mar Mediterrâneo com perdas de milhares de vidas vieram lembrar os problemas terríveis com que se debatem as populações. É facto que em várias regiões do continente, a falta de autoridade do estado, junta-se aos extremismos religiosos, à violência étnica e a desastres naturais para empurrar milhares para migração clandestina para Europa. Mas, apesar da crise humanitária que se seguiu, não se nota o regresso ao afro-pessimismo dos anos passados. A África é hoje visto como um continente do futuro. A prestigiada revista britânica Economist já não se refere à África como o continente sem esperança (hopeless) mas sim como o continente promissor (hopeful).
Declarado em vários círculos do capital internacional como “a última fronteira”, a África tem merecido recentemente de países como a China, Índia e o Japão um interesse redobrado. Interesse que não fica pela exploração dos minérios e do petróleo, mas vai mais além para outros sectores da manufactura, energia e serviços diversos em particular nas áreas de informação e comunicação. Os potenciais parceiros económicos já não são somente as antigas potências coloniais e a América. Em tempos de globalização, a possibilidade de desenvolver múltiplas e complexas ligações económicas com todos os outros continentes são muito maiores e as potencialidades são imensas. O crescimento em média de 5 % nos últimos anos deve-se à maior capacidade de atracção do investimento directo estrangeiro e ao aumento das exportações para o qual tem contribuído grandemente a dinâmica das economias dos países emergentes, os BRICS. 
Várias razões concorrem para justificar porque os países africanos ficaram atrás quando comparados com os países asiáticos. Nos princípios da década de sessenta não havia muita diferença entre o rendimento per capita da Coreia do Sul, da Singapura e de Taiwan e o do Gana, Nigéria ou Costa do Marfim. Girava tudo à volta dos 200, 300 dólares anuais. Porquê, então, hoje só se pode falar de tigres asiáticos e não de leões africanos. Um factor de peso que contribuiu para que o resultado fosse diferente num caso e noutro foi certamente a natureza e qualidade da liderança.
As opções de política económica no caso de vários países asiáticos permitiram-lhes criar uma capacidade endógena de criação de riqueza. Na África, pelo contrário,  houve países que se contentaram em viver dos recursos naturais como minérios e petróleo. Outros que não tinham tais recursos desenvolveram a capacidade de explorar o filão da ajuda internacional. Também na Ásia apostaram no sector privado e nas exportações e as consequências viram-se: ganharam em competitividade, aumentaram a produtividade, criaram uma classe média alargada e retiraram milhões de pessoas da pobreza. Enquanto isso, na África faziam-se experiências do socialismo africano, enveredava-se pelo caminho da crescente estatização da economia, não se promovia o sector privado nacional e incentiva-se a economia informal. É evidente que daí só podia vir pobreza das populações e crescente vulnerabilidade do país em relação aos choques naturais ou de outra natureza. Interessante notar que mesmo quando, num caso e noutro, africano ou asiático, os regimes não eram democráticos mas sim autoritários as lideranças primaram por fazer opções abismalmente diferentes.
Os “libertadores” em vários países africanos sempre quiseram perpetuar o poder que receberam no momento da independência. Para renovar a legitimidade histórica tiveram que, por um lado, alimentar o sentimento de vítima do colonialismo e a memória dos seus horrores como a escravatura e, por outro, impedir efectivamente que as pessoas e a sociedade ganhassem autonomia a ponto de exigir responsabilidade à governação do país e renovação dos governantes via métodos eleitorais democráticos. Em nome do Poder sem controlo sacrificaram os seus países com a perda de múltiplas oportunidades de se industrializarem, deixaram milhões na miséria e promoveram uma postura de assistencialismo e dependência que a prazo se tornou num dos maiores obstáculos ao desenvolvimento. Na Asia foi diferente. Os governos mesmo autoritários de Coreia do Sul, de Singapura ou mesmo da China procuraram relegitimar-se fazendo os seus países crescer a taxas elevadíssimas durante décadas seguidas.

Felizmente que nesta segunda década do século 20 há fortes sinais que em muitos países africanos se quer ultrapassar os constrangimentos do passado e a partir daí construir um futuro integrado no mundo numa perspectiva em que o que realmente conta são os factores de competitividade, produtividade e inovação. O volume crescente de investimento directo estrangeiro em direcção à África é um sinal forte de que se está no bom caminho. Mas como disse Mo Ibrahim numa entrevista à revista Foreign Affairs o fundamental para o futuro da África é o Estado de direito democrático e a afirmação do primado da lei. A actividade privada e o empreendedorismo dependem disso. E o futuro também. 

 Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 27 de Maio de 2015 

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O rei vai nu

Tem sido notícia em vários órgãos de comunicação social o boicote do governo à recepção organizada pela delegação da União Europeia para marcar a Semana da Parceria Cabo Verde/UE. Parece que a razão para isso foi a entrevista dada a este jornal pelo embaixador da UE José Manuel Pinto Teixeira em que chamava a atenção pelo mau ambiente de negócios em Cabo Verde. O governo não gostou da revelação e, como o rei na fábula, assustou-se perante a possibilidade de ver desfeita toda a ilusão à volta das “suas ricas e maravilhosas vestimentas”.
Partiu para a retaliação que provavelmente não ficará só pela não comparência na recepção, mas ao comportar-se assim deixou entrever ainda mais do que o estado do ambiente de negócios do país. Ficou claro que tem uma preocupação permanente em dominar a sociedade cabo-verdiana com um discurso que nem perante a realidade dos factos se desmorona facilmente. Também não deixa dúvida que tudo faz ou fará para que não apareça qualquer voz “inocente” que ameace desconstruir tudo. Se reage assim com a UE, imagine-se o leque de instrumentos entre o pau e a cenoura que usa diariamente para manter todos sintonizados com a sua Agenda de Transformação quando a realidade é a do crescimento raso, da falta de emprego e da dívida pública que já vai muito acima dos 100 por cento.
Há quase vinte e cinco anos que Cabo Verde é uma democracia. Tal facto coloca o país ainda numa fase de consolidação das suas instituições democráticas, a dar os primeiros passos na autonomização da sociedade civil e nos primórdios de uma imprensa independente e plural. Ter um governo como este que se revelou neste incidente excessivamente preocupado em manter o país numa linha de pensamento pontuada por fugas à realidade pode constituir um perigo real para o aprofundamento da democracia e do pluralismo.
Imagine-se o esforço diário que se tem que fazer para garantir essa linha, essa roupagem repleta de maravilhas, dádivas e esperanças. Um misto de acção e atitude que se nota, por um lado, na  propaganda  permanente, na interpretação enviesada dos factos e na desresponsabilização pela falta de resultados positivos e promessas não cumpridas  e, por outro lado, na desvalorização da  crítica, na relutância em submeter-se ao exercício do contraditório e na fuga à prestação de contas. Inevitavelmente afectada em todo este processo é a própria governação que ao concentrar-se na necessidade de tudo controlar, fixa-se demasiado no curto prazo e orienta-se exclusivamente para interesses eleitoralistas. Também sacrificado é o Parlamento, a sede do contraditório e o agente político e plural de fiscalização da acção do governo. E se o controlo das situações e da mensagem está no centro das preocupações, dificilmente se pode evitar que se sacrifique o desenvolvimento, o crescimento económico e o emprego para assegurar a continuidade no poder.
Quebra esta harmonia delicada todo aquele que procura dar uma outra justificação para os factos que teimosamente insistem em fugir do quadro oficial permitido. São chamados profetas da desgraça, portadores de más novas e adeptos do “quanto pior, melhor”. Para os constranger são-lhes exigidos que reconheçam as coisas boas antes de terem o direito a criticar. Para obscurecer a realidade e dificultar o debate público atira-se para a discussão desculpas que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Em simultâneo não se inibe de condicionar todos que fazem opinião, elevando a autocensura a um nível que mesmo que apareça quem grite que o rei vai nu, a sua voz e a sua denúncia esbatem-se e diluem-se na cacofonia deliberadamente criada para que uma única música subsista e se imponha.
 Cabo Verde está num ponto crítico da sua existência. Deixou de poder contar com donativos e empréstimos concessionais por muito mais tempo. O investimento que precisa para se desenvolver tem que vir do capital estrangeiro, do produto da venda de bens e serviços e da capacidade nacional de produzir riqueza e de fazer poupanças. O alerta do embaixador da UE é que ainda não se logrou criar o ambiente necessário para isso. A reacção hostil do governo confirma que não está interessado em mudar as suas políticas e a sua atitude básica. Só quer manter a fachada.

Já em período pré-eleitoral é evidente que o horizonte temporal que interessa é o do primeiro trimestre de 2016 para se decidir as eleições e os cinco anos de poder. É como quem diz: depois se verá. Compreende-se o desorientamento e a hostilidade quando aparece alguém de peso e com cabeça fora da névoa propagandística doméstica a clamar para todos ouvirem: o rei vai nu!

     Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 20 de Maio de 2015

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Mudar a sério

As dificuldades com o ambiente de negócios em Cabo Verde ficaram patentes nos encontros com empresários estrangeiros realizados no quadro da semana da Parceria de Cabo Verde com a União Europeia. O relato “do saltitar de departamento em departamento”, da “burocracia que afasta investidores”, dos “anos e das oportunidades perdidas” e da “mentalidade das instituições em obstaculizar em vez de facilitar” marcou muitas das intervenções dos presentes. Ao levantar essas questões estavam a juntar a sua voz à dos empresários nacionais que há anos vêm-se queixando em vão do ambiente hostil existente, não obstante as reiteradas promessas do governo de mudar a atitude da administração pública em relação à actividade privada. 
O próprio embaixador da União Europeia nos seus encontros com a comunicação social sentiu necessidade de transmitir para o país essas preocupações dos empresários e investidores. Segundo ele, a ajuda da União Europeia nesta fase visa em grande medida apoiar Cabo Verde na atracção do investimento e em melhorar o ambiente para a actividade empresarial. O mínimo que naturalmente quer ver é um esforço nacional da parte cabo-verdiana em reduzir a burocracia, em melhorar a coordenação dos processos de decisão e em agilizar as decisões. O pior que pode acontecer depois de um esforço em atrair investidores é constatar a sua desilusão com aquilo que se encontra.
Paul Krugman num recente artigo no New York Times escreveu que estamos a viver uma era em que ninguém assume que errou. Como não se assume, também não se faz um esforço efectivo para alterar a situação. Ainda hoje, no décimo quinto ano do seu mandato, ouve-se o Primeiro-ministro dizer que a administração pública precisa adequar-se para melhor servir o ambiente de negócios do país. Num balanço recente das cem medidas “urgentes” anunciadas em Novembro de 2011, o PM confirmou que só cinco (5%) foram executadas, estando umas iniciadas (9), outras em desenvolvimento (24) e em franco desenvolvimento (56) e ainda outras que simplesmente não foram aplicadas (6).  A inércia parece ser difícil de vencer. 
Em S.Vicente, no “Meeting Point” da semana passada ostensivamente voltado para atrair investidores e seduzir operadores económicos, falou-se outra vez num ponto de viragem. Mas a um ano das eleições legislativas é legítimo perguntar se com esse discurso está-se a anunciar uma inflexão na postura das instituições ou nas políticas seguidas até agora ou se se trata realmente de mais um artifício para ganhar tempo e gerir expectativas. Facto é que periodicamente S. Vicente têm sido palco de exercícios similares, designadamente de Conselhos de Ministros especializados, lançamentos de clusters e promessas de infra-estruturas “criadoras” de oportunidades. Depois nada de significativo acontece: o desemprego continua excessivo e os sinais de estagnação económica teimam em manter-se. Não se assume que provavelmente a falha maior está na orientação política da economia nacional.
O alerta vigoroso de investidores e empresários oriundos de países da União Europeia deve ser tomado com a devida seriedade. Como disse o embaixador da União Europeia na entrevista a este jornal aeconomia é o sector empresarial, não é o Estado e a mentalidade de arranjar um emprego no Estado e ficar lá o resto da vida está a acabar pelo mundo. Vindo de quem mais ajuda, de quem mais investe, de quem mais envia turistas, e de quem é o principal parceiro comercial, é conselho para se ter em devida conta.

Há que tirar ilações certas do espectáculo a que assistimos todos os dias em vários países europeus. Vêem-se os enormes sacrifícios para se adaptarem às novas exigências do mundo pós crise e o esforço despendido para viverem dos seus próprios meios depois de anos de bonança de fundos europeus a custo perdido e juros baixos nos empréstimos. Enfrentar os desafios de hoje não se compadece com postura que procura em décadas passadas e governos anteriores os culpados para os problemas de hoje. Pelo contrário, para que a adaptação ao mundo de hoje seja proveitosa, deve-se primar por uma liderança efectiva que, como também diz o economista Paul Krugman na sua coluna do New York Times, se distingue pela integridade intelectual: a vontade de enfrentar os factos mesmo se estão em desacordo com o que sempre se tomou como certo e a vontade de admitir o erro e de mudar de rumo.

  Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 13 de Maio de 2015

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Onde estão os "indignados"?

No dia Primeiro de Maio, as manifestações contra o desemprego, a injustiça e a insegurança ficaram muito aquém do esperado. O Primeiro-Ministro, citando analistas, diz que foi um fiasco. De facto, a iniciativa das duas centrais sindicais, CCSL e UNTCS, em convocar os trabalhadores para uma marcha de protesto só convenceu poucas centenas de pessoas na Praia e algumas dezenas em S. Vicente. Aqueles que com o convite dirigido ao Mac #114 para se associar à movimentação pensaram repetir as manifestações de 30 de Março ficaram defraudos. A perplexidade de muitos perante o fracasso ficou bem expresso nas palavras de um participante que na televisão pública perguntava: Onde está a juventude que mais sofre com o desemprego? Onde estão os estudantes universitários?
Há quem pense que em Cabo Verde ainda não se verificam manifestações frontalmente contra as políticas do governo. O que se passou no dia 1 de Maio parece confirmar isso. Quando há protestos públicos são normalmente de natureza sindical e limitados no seu escopo. A manifestação de 30 de Março, que tinha tonalidades políticas claras, foi essencialmente dirigida contra o parlamento e os deputados. Aliás, depois da entrevista do PM à rádio nacional no dia 31 de Março a confirmar a sua participação no processo negocial da actualização dos salários dos titulares de cargos políticos não mais houve outra manifestação apesar de uma ou duas estarem previstas. Coincidências.
As últimas sondagens do Afrobarómetro apontam para uma quebra na credibilidade das instituições do país em particular das instituições políticas. Quem mais sofre é o parlamento. Outrossim, o dado que mais chama a atenção é o nível de aceitabilidade do governo mesmo no seu décimo quinto ano de mandato, quando o país se debate com desemprego elevadíssimo, crescimento baixo, dívida publica acima dos 110% e défices orçamentais excessivos. As pessoas, aparentemente, não responsabilizam directamente o governo pelas dificuldades existentes, pela falta de perspectiva futura e pela incapacidade de acção efectiva para colocar o país num rumo diferente. Matérias como desemprego, insegurança, impostos pesados, não devolução do IUR e custos excessivos de energia e água não causam indignação a ponto de precipitar as pessoas para rua.
O conformismo e a resignação prevalecente que inibe a indignação têm um outro lado potencialmente corrosivo da democracia. Além de levar à descrença gradual nas instituições torna as pessoas sensíveis a demagogia e a populismos de toda a espécie. Estes, encontrando campo para se exprimirem, enfraquecem ainda mais as instituições e tendem a alimentar derivas autoritárias de governação, em particular as disfarçadas de paternalismo. Nos dois últimos acontecimentos, de 30 de Março e de 1 de Maio, nota-se a reacção dispare da sociedade e das pessoas. Em Março a reacção é explosiva perante matérias vincadamente populistas. No Dia dos Trabalhadores as pessoas primam pela ausência no protesto contra matérias que as sondagens dão como sendo as principais preocupações dos cabo-verdianos.
Quando se ouve a Ministra das Finanças a passar aos gestores do IFH a culpa pelos males actuais do Programa “Casa para todos” vê-se qual é a forma de proceder deste governo e o que poderá estar na origem desta dualidade de reacção. Quando as coisas estão bem auto-congratula-se e quando algo corre mal faz por não se responsabilizar. No programa “Casa para Todos” negociou tudo e vendeu apartamentos através de rendas resolúveis sem grande preocupação com a viabilidade financeira de todo o empreendimento. Depois passou tudo ao IFH. Nos entrementes fartou-se de inaugurar e entregar casas em espectáculos televisivos especialmente montados para o efeito. Agora surgem problemas e a ministra acha que o Tesouro não tem nada a ver com isso. A blindagem do Tesouro Nacional em relação aos problemas financeiros que as empresas públicas como o IFH, os TACV, a ELECTRA e a ENAPOR têm é mais outra blindagem que só pode existir na imaginação da ministra. Quando a factura chegar será para todos.
 Uma das características fundamentais da democracia é a possibilidade de os cidadãos responsabilizarem os governos pelos seus actos, pelas promessas feitas e pelos resultados obtidos. A relação com o governo não pode ser um “jogo do gato e do rato” para se evitar uma verdadeira prestação de contas e completa “accountability”. Já se viu como esse exercício contribui para a descredibilização do parlamento com as manobras que aí são feitas para se fugir ao contraditório e à fiscalização efectiva da governação.

Para a sociedade, gabinetes de imagem e de propaganda subordinados ao governo fazem uso de recursos públicos substanciais para mostrar o governo e os governantes na melhor luz. O choque da imagem projectada com a realidade diária das dificuldades vividas tende a alienar as pessoas, a induzir passividade e descrença e até a intimidar. Não estranha pois que protestos dirigidos contra o governo sejam tão raros. Curiosamente a susceptibilidade a paixões populistas tende a aumentar. Quem ganha com este estado de coisas?

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 6 de Maio de 2015