segunda-feira, 27 de março de 2023

A tragédia dos partidos

 O ambiente político começa a aquecer e os partidos preparam-se para “arrumar a casa” e posicionar-se para o período pré-eleitoral a iniciar em meados do corrente ano. No MpD ainda vai-se escolher a nova liderança e, como será uma eleição disputada, só depois de Maio próximo é que poderá começar a preparar-se para os embates futuros. No PAICV e UCID já com a liderança acertada, pelos menos para a próxima eleição, a incógnita a resolver será de se saber quem depois dos resultados das autárquicas estará em melhor condição para liderar nas eleições seguintes. Neste quesito já o actual primeiro-ministro se posicionou para ser o candidato do seu partido para um terceiro mandato, mas estando as autárquicas pelo meio nada pode ser dado como certo. Um resultado menos favorável, diminuição do número de câmaras ou perda de câmaras emblemáticas, poderá condicionar a decisão para continuar na liderança do partido e ser futuro candidato.

No último trimestre de 2024 deverão realizar-se as eleições autárquicas para, com a diferença de cerca de ano e meio, se avançar com as legislativas. A proximidade das duas eleições partidárias empresta uma outra importância à preparação para o novo ciclo eleitoral considerando que, em geral, os resultados dos diferentes partidos nas autárquicas afectam a percepção das pessoas quanto às probabilidades de vitória ou derrota nas legislativas com o impacto maior a ser suportado pelo partido no governo em caso de revés. Infelizmente, para o país não parece que haja consciência que se está a viver tempos extraordinários que exigem um outro repensar do país e uma nova disponibilidade para pertencer e servir a comunidade.

A crise nas câmaras da Praia e de S. Vicente demonstram até que ponto as lideranças nacionais dos partidos ficam cativas de protagonismos nas câmaras municipais que são mais tributárias da personalidade dos presidentes e da forma marcadamente pessoal como exercem o poder camarário do que resultado de uma visão política diferente. Atropelos feitos ao estatuto dos municípios tanto no funcionamento dos órgãos colegiais como no processo de aprovação do orçamento municipal e do plano de actividades, já referenciados pelo Tribunal de Contas e pela Inspecção Geral das Finanças, não merecem reparo das lideranças partidárias. Nem tão-pouco se procura promover diálogo para ultrapassar bloqueios.

A questão que se coloca aos partidos nessas situações é até que ponto a solidariedade política sobrepõe-se à lealdade devida ao cumprimento da Constituição e às leis por todos os actores políticos. Ainda uma outra questão é se com solidariedade a populistas nas câmaras não se está a abrir caminho para o populismo triunfar ao nível nacional com as consequências que se conhecem de descredibilização das instituições, incompetência e atraso no desenvolvimento. As próximas eleições deverão ser esclarecedoras a esse respeito.

Anos atrás quando ainda não se falava da tripla crise da Covid-19, da alta inflação e da guerra na Ucrânia já se tinha identificado um mal-estar nos países democráticos que ameaçava retirar legitimidade aos seus sistemas políticos. Era mais um sintoma do que se viria a chamar de crise da democracia no pós-crise financeira de 2008 e que traduzia as deficiências sentidas na representação e participação política, no sistema de partidos cada vez menos capaz de apresentar alternativas reais de governação e na erosão de instituições como os média e o sistema judicial. A emergência do populismo e da extrema direita em muitos países como reacção a essa “malaise” precipitou e aprofundou ainda mais a crise nas democracias.

Ao longo desse processo abriu-se caminho para a chegada ao poder de personalidades como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil e provocaram-se estragos múltiplos nos partidos políticos onde passaram a ser normal manifestações de ambição pura e de narcisismo deixando em muitos casos sinais evidentes de falta de humildade e de competência política. A evolução da esfera pública para um ambiente de troca de ideias e informação diversa quase sem mediadores e sujeito a comportamentos de rebanho e aberto a fenómenos de viralização de rumores, modismos e cancelamentos, que, entretanto, se verificou, certamente que contribuiu para isso. Uma evolução para a qual foi instrumental a massificação dos smartphones que deram acesso generalizado às redes sociais, plataformas e médias sociais e com isso empoderaram muitos que nunca o seriam sem o facebook, twitter instagram ou viber.

Em consequência, a forma de ascensão nos partidos mudou e perderam-se oportunidades de desenvolvimento de sensibilidades políticas que traziam pluralismo e renovação aos partidos ao mesmo tempo que criavam laços de lealdade que perduravam e permitiam governantes implementar projectos coerentes de governação. Passou a reinar a lealdade e obediência ao chefe. Cabo Verde não foi excepção e vê-se no estado em que actualmente se encontram os partidos no sistema político.

É interessante notar que a crise de representação nas democracias levou os partidos a se abrirem mais para a sociedade e a introduzir e adoptar práticas como primárias na escolha de candidatos e eleição directa do líder do partido. Não é evidente que se ganhou muito com essas inovações considerando que não conseguiram conter o descrédito dos partidos a ponto de, em vários países democráticos, partidos nacionais de grande envergadura acabaram por encolher (Portugal, Espanha) e em alguns casos quase desaparecer (França, e Itália, Grécia). Também ficaram mais expostos ao populismo e ao aparecimento de líderes com tendências autocráticas e a promessa de novas ideias para a governação não se concretizou. Pelo contrário, em muitos casos ficou a forte impressão de incompetência como resultado de se querer mudar as regras do jogo institucional, de não aplicar o princípio da separação de poderes e de se fugir à responsabilização e à prestação de contas.

Em Cabo Verde, também a introdução de eleição directa dos líderes dos partidos não trouxe vantagem. Teve o efeito de concentração do poder no líder em detrimento dos outros órgãos a começar pelas convenções e congressos. Na ausência de visões estratégicas para o país que poderiam surgir de vivo debate nos órgãos colegiais partidários e também com os militantes e a sociedade, cada vez mais a estratégia de governação parece uma cópia decalcada da agenda das Nações Unidas, anteriormente “os Desafios de Desenvolvimento do Milénio” e actualmente “a Ambição 2030”. Entretanto as crises vão acontecendo numa dinâmica de policrise onde uma crise bancária poderá vir juntar-se às existentes e constituir-se um risco real ao qual poderá ainda seguir eventual aperto no crédito com consequências globais no crescimento da economia mundial.

Sobreviver e prosperar como país nestes tempos difíceis exige muito mais do que os partidos parecem dispostos a dar, transformados como estão essencialmente em máquinas de conquista do poder. A malaise da democracia continua sem fim à vista quando nem as regras do jogo democrático se mostram dispostos a cumprir para além da conveniência política do momento e até se ensaia pôr em causa o próprio Tribunal Constitucional. A diminuição da população que o INE detectou no último censo devia servir de aviso porque pode indiciar que há muitos que já votam com os pés procurando os caminhos da emigração. A utilidade dos partidos na democracia deve ser reafirmada e a via para isso deverá passar por desenvolver uma vida interna mais rica e plural e ser capaz de lançar um olhar global sobre o país e a sua trajectória história que potencie o melhor que as suas gentes conseguiram ser e produzir. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Tribunal Constitucional, o árbitro final

 

A reacção de alguns actores políticos face ao acórdão n.º 17/2023 do Tribunal Constitucional (TC), que considerou constitucional a resolução da Assembleia Nacional autorizando a detenção do deputado Amadeu Oliveira para efeito de interrogatório judicial, não tem sido particularmente construtiva. De facto, reagir a uma decisão do TC com declaração política no parlamento e pedido de audiência ao presidente da república não é o que se espera de quem com responsabilidade deve velar pela integridade do sistema político suportado pelo princípio da separação e interdependência dos poderes.

O Tribunal Constitucional é o órgão supremo da justiça constitucional no país e, enquanto tal, é o regulador do processo político-constitucional. Como dizem os constitucionalistas, a começar pelos obreiros da Constituição americana Madison e Hamilton, numa democracia liberal e constitucional não se pode fazer a interpretação da Constituição depender do tumulto e conflito do processo político nem permitir que todas as questões constitucionais fossem decididas no âmbito da barganha política. Daí a necessidade da existência de um tribunal formado por juízes independentes que, segundo John Marshall, juiz presidente do supremo tribunal dos Estados Unidos, tido como o fundador do “judicial review”, deve “enfaticamente dizer o que a Lei é”. E nesse sentido a sua decisão é virtualmente final.

O acatar da decisão judicial, porém, não tem que significar para os outros poderes inibir-se ou limitar-se a manifestações públicas, às vezes patéticas, que só descredibilizam o sistema ou o deixam exposto a ataques dos descontentes e inimigos da democracia. Os deputados podem, por exemplo, ter a iniciativa de rever o regimento da assembleia nacional e tornar a actuação da Comissão Permanente mais conforme ao que está na Constituição. Em matéria de gestão de mandatos dos deputados pode-se ir em sede de revisão dos estatutos dos deputados para uma solução que, a exemplo do que existe em outras paragens, exige para autorização para a suspensão de mandato uma maioria absoluta de votos por escrutínio secreto no plenário da assembleia nacional. Aliás, ela já existe nos estatutos actuais para os casos de autorização de prosseguimento de procedimento criminal (nº 4 do artigo 11º) e bastaria alargar para todas as autorizações de levantamento da imunidade. Também podia-se legislar para que com os pedidos vindos do poder judicial se suspender o tempo de prescrição do procedimento criminal e na passagem de uma legislatura para outra não permitir que caducassem.

Seguir pelo caminho de legislar ou mesmo de introduzir projectos de revisão constitucional serviria para credibilizar o parlamento não permitindo que a imunidade parlamentar fosse confundida com impunidade ou que a imagem de ser joguete de outros poderes passasse. Infelizmente, a via por que aparentemente se quer ir é a de contestar a decisão do TC, que se devia tomar como final em matéria de interpretação constitucional, com acusações até de estar a rever informalmente a Constituição. E tudo por uma prática institucional, há mais de trinta anos estabelecida, que atribui à Comissão Permanente da Assembleia Nacional, funcionando entre as reuniões plenárias e sessões legislativas, a gestão do mandato dos deputados.

Quantas vezes a Comissão Permanente já deu autorização para deputados serem ouvidos como declarantes, testemunhas e até como arguidos nos meses entre Outubro e Julho em que decorre a sessão legislativa. Quantas vezes autorizou a saída do país do presidente da república. Até já autorizou o PR a declarar pela primeira vez o estado de emergência a 28 de Março de 2020. Em todas as situações sempre houve possibilidade de recurso para a plenária e no caso da autorização do estado de emergência foi posteriormente ratificada pela plenária.

Com uma prática tão consolidada de uso de várias competências entre as reuniões e as sessões plenárias durante três décadas não se vê que haja costume contra a Constituição, ou costume limitador de direitos fundamentais ou mesmo de polémica aberta sobre o papel da Comissão Permanente. O que se vê é a reacção de um partido contra as instituições porque perdeu uma jogada política de alinhamento com um discurso populista e contra o sistema judicial que acreditou podia ter-lhe dado mais deputados, deputados em mais de um círculo e número de deputados suficiente para criar um grupo parlamentar. Repete-se o padrão de tomar como os principais alvos no questionamento da democracia liberal o sistema de justiça e o parlamento e é curioso que em boa parte das vezes são os próprios partidos os principais promotores dessa descredibilização das instituições.

No parlamento a degradação do discurso político tem sido agravada com a introdução cada vez mais frequente de questiúnculas municipais em debates que deviam ser de políticas nacionais. De facto, nem os deputados nacionais são representantes das câmaras municipais, nem a assembleia nacional tem a tutela sobre os municípios e muito menos a tutela de mérito. Em consequência todos perdem. Não se respeita a autonomia dos municípios que têm os seus próprios órgãos de poder político devidamente eleitos e responsáveis perante os respectivos munícipes, desperdiça-se o tempo parlamentar, alimenta-se um protagonismo deslocado de deputados que na realidade não representam municípios e cria-se mais oportunidade de crispação entre os partidos ao se ter todos a se esforçarem por dar cobertura política às câmaras municipais onde são maioria.

Acusações de corrupção mútuas tanto no passado como no presente alargadas também às câmaras municipais contribuem para degradar o discurso político e tornar as posições ainda mais irreconciliáveis. No cômputo global tais acusações de falta de transparência e não prestação de contas acabam por não corresponder à imagem que o país projecta em vários rankings internacionais sobre corrupção e governança, mas não deixa de afectar negativamente o ambiente político. E o resultado é que os partidos cada vez menos se mostram disponíveis para equacionar e resolver os problemas reais do país. Tendem a agravá-los como acontece nos dois maiores municípios onde se mostram incapazes de influenciar os seus representantes nos órgãos de poder local de forma a terminar com a crise institucional instalada e funcionarem dentro da legalidade, respeitando os procedimentos de há muito estabelecidos.

A Cabo Verde, ainda a sofrer o impacto da tripla crise causada pelas secas, pandemia e guerra na Ucrânia e preocupado com um futuro de incertezas, o que menos precisa é de um quadro de enfraquecimento das suas instituições e da sua liderança devido a excesso de protagonismo, ambição desenfreada e insuficiente comprometimento com a democracia, o Estado de Direito e a procura do bem comum. Evitar que o Tribunal Constitucional também se transforme em alvo de ataques é fundamental para que o país mesmo em ambiente de sobressaltos e crispação tenha as referências para se equilibrar e prosseguir o caminho de consolidação da sua democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1111 de 15 de Março de 2023.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Cultura estatizada

 Na semana passada, a propósito de um parecer do Instituto do Património Cultural (IPC) sobre um projecto de lei na assembleia nacional a classificar a língua portuguesa como património nacional, o país, estupefacto, passou a saber que afinal nem os deputados nacionais nem a assembleia nacional têm competência para isso. Segundo o ministro, a iniciativa só pode partir do ministério da cultura e do IPC. Não se sabe é onde fica o princípio de que o parlamento pode legislar sobre toda e qualquer matéria, exceptuando o que é de reserva exclusiva do governo, e que no processo pode revogar qualquer dispositivo legal contrário, designadamente o que eventualmente se encontrar nos estatutos do IPC. Um outro aspecto que não se compreende é qual a razão para o alvoroço sobre considerar a língua portuguesa como património quando a na lei de bases do Património Cultural nº 102/III/1990, em que o decreto regulamentar nº 3/2020 de 17 Janeiro que cria o actual IPC, se enquadra explicitamente inclui “a língua nacional e a oficial” entre os bens imateriais que devem ser preservados, defendidos e valorizados (artigo 3º, alínea d).

É ainda curioso que três meses depois, em Abril de 2020, através da lei da A.N. 85/IX/2020 que aprova o Regime Jurídico de Protecção e Valorização do Património Cultural, finalmente se revogou a lei de bases de 1990 com o argumento, entre outros, de no articulado estar plasmado o “carácter estatizante da cultura”, ou seja, de na prática se governamentalizar a cultura. Passados quase três anos parece que não se sentiu a necessidade de mudar os estatutos do IPC para “desgovernamentalizar” e adequar-se à nova lei e o resultado é a interpretação que que só o IPC pode identificar, documentar, inventariar a classificação de bens a património imaterial, com exclusão até da própria Assembleia Nacional. Nem se conseguiu flexibilizar essa postura rígida com a abertura já presente na nova lei (artigo 17º) de o processo de classificação de bens culturais também poder ser desencadeado “pelas administrações locais ou por qualquer pessoa singular ou colectiva”, cabendo ao ministério prestar o apoio técnico requerido.

A estatização da cultura nacional pela via da monopolização governamental do que deve ser considerada cultura cabo-verdiana, história de Cabo Verde e património é uma realidade incontornável que a lei referida de Abril de 2020 pretende inflectir. Os seus efeitos notam-se, por exemplo, na insipiência no ensino da história do país, que é feito à mistura com a cultura cabo-verdiana a todos os níveis do sistema do ensino e também na ausência de departamentos e cursos de história nas universidades. Nas duas últimas décadas a estatização ganhou um outro ímpeto com a criação do Instituto de Investigação e Património Cultural, em 2004, e depois do IPC, em 2014, com atribuições na investigação nos domínios da história, sociologia, antropologia, linguística e arqueologia com vista à promoção e divulgação do que nos estatutos referiam-se como a “própria História da Nação” e “estabelecer cientificamente os verdadeiros contornos da antropologia cabo-verdiana”.

Ou seja, estudos que normalmente deviam ser feitos em meios académicos com autonomia própria das universidades e liberdade intelectual eram entregues a instituições governamentais com o objectivo de posterior divulgação junto dos canais tradicionais como escolas e comunicação social e eventual condicionamento de agentes e eventos culturais. Não estranha que com esse tipo de dirigismo do Estado em matéria de investigação histórica e cultural, contrariando o princípio constitucional de que o Estado não “programa a educação e o ensino segundo directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, se esteja a cavalgar ondas identitárias polarizadoras da sociedade a partir das quais se quer ver relações de dominador e dominado e se promove o sentimento de vitimização. O conflito aberto entre o crioulo e o português é uma manifestação clara disso.

Muito dessas dinâmicas polarizadoras não deveriam ser esperadas em Cabo Verde, um arquipélago onde vários séculos antes da independência desenvolveu consciência de nação e não tem divisões de natureza rácica, étnica ou linguística. De facto, no quadro democrático actual, globalmente ninguém é preterido no acesso a cargos políticos e outros cargos públicos por razões de tonalidade da pele, religião ou origem social e ninguém duvida que oportunidades de carreira profissional ou empresariais estão abertos a todos sem discriminação. A dificuldade que, porém, persiste e que é fracturante foi introduzida no acto da proclamação da independência com a afirmação que no âmbito do projecto do PAIGC da Unidade Guiné/ Cabo Verde se escolheu o destino africano para o povo as ilhas.

Em consequência, como o professor doutor Gabriel Fernandes explica no seu livro “Em busca da Nação” pag. 202: No novo contexto, em que a política, mais do que a cultura, é o que passa a nortear sua luta emancipatória, os cabo-verdianos não se concebem a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados”. E continua, “…os actores políticos cabo-verdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios cabo-verdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”. Hoje, já se sabe que que o projecto da unidade tinha ficado completamente comprometida com a morte de Amilcar Cabral e prisão dos cabo-verdianos em Conacri, mas como esse facto, de acordo com as declarações, em 1990, na ilha do Sal, de um alto dirigente do PAICV, foi ocultado aos cabo-verdianos o seu impacto devastador na sociedade cabo-verdiana continua a fazer-se sentir até hoje.

Toda a política cultural estatizante ou governamentalizada e a apetência para a doutrinação em particular de crianças e jovens via o sistema de ensino, a comunicação social pública, instituições do Estado e até aulas magnas proferidas por actores políticos continuam. O que se pode chamar de uma idolatria do Amilcar Cabral e da luta de libertação acompanhado de fervor na “reafricanização dos espíritos” prossegue com os sucessivos governos independentemente da cor partidária sem que se tenha em conta os seus efeitos perniciosos de polarização da sociedade, de restrição da liberdade intelectual e do despojar do país da plenitude da sua história.

A esperança que o 13 de Janeiro poderia corrigir o grave desvio verificado em 1975 não se concretizou. Parte das razões da população para a rejeição da ditadura de partido único perdeu-se pelo caminho. O episódio inusitado à volta da classificação da língua portuguesa confrontando governo e deputados é o exemplo de como se pode ficar refém do passado e condenar-se a um círculo vicioso onde se alimentam mitos, dificuldades reais acumulam-se e problemas tornam-se progressivamente intratáveis. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023.

Desafiar mitos para se chegar a um futuro democrático

 

O confronto sobre as políticas de transporte seja marítimo, seja aéreo tem aumentado de intensidade e de virulência à medida que os problemas vão se agravando e possibilidades de resolução à altura das expectativas criadas se tornam cada vez mais remotas.E é assim porque, como não se consegue discutir o presente e o futuro, vasculha-se o passado da governação dos dois partidos do arco do poder enquanto as perdas se acumulam tornando os problemas praticamente intratáveis. Hoje são os transportes e também a habitação e o programa Casa para Todos que têm ocupado muito do debate político nas últimas sessões do parlamento. Amanhã e depois chegará a vez de outros sectores como a agricultura, a pesca, a energia, segurança, educação, saúde etc. a serem submetidos ao mesmo tipo de discurso crispado e estéril que simplesmente vai adiando a abordagem séria dos problemas e a discussão de eventuais soluções.

Varrer problemas para debaixo do proverbial tapete sem o conhecimento prévio das suas causas e sem ponderar devidamente sobre as consequências de não acção ou de abordagem não suportada por uma visão estratégica torna-os a prazo extremamente difícil de tratar e resolver. Sem uma cultura de se apoiar nos factos para fazer a análise da realidade do país e para se debater perspectivas plurais de como estrategicamente agir para alterar o estado de coisas, corre-se o risco de se ter uma democracia em que a imagem do político cada vez mais se aproxima da do “vendedor de ilusões”. Vários factores, incluindo tabus em relação ao conhecimento do passado, reminiscências de ideologias de há muito datadas e partidarização fracturante do próprio regime político, não permitem que a democracia enquanto conjunto de procedimentos se revele como a via para se chegar à verdade partindo do princípio que ninguém a detém em exclusivo. Em tais circunstâncias verdade é conveniência de cada um e fica impossível seguir o conselho do historiador e autor do livro “Sobre a Tirania”, Timothy Snyder, que “é preciso aprender a história, desafiar os mitos para se chegar a um futuro democrático”.

O facto da intratabilidade de muitos problemas com que o país se confronta estar a se revelar com maior acuidade nos últimos anos que também têm sido de policrise torna ainda mais urgente que o país arrepie caminho do que tem sido a sua forma de fazer política. De facto, a sequência de três anos de uma crise pandémica, alta inflação e guerra na Ucrânia devia ter tido o efeito transformativo na forma de actuar da liderança do país e da sua classe política. Infelizmente, o que se notou foi o acentuar dos aspectos performativos da actuação dos titulares dos órgãos de soberania, em detrimento de substância, amplificados por uma presença não poucas vezes excessiva dos próprios nas redes sociais.

As consequências vêem-se na crispação política a exacerbar-se ainda mais, na crise institucional que já quase paralisa os dois maiores municípios do país, no baixar do nível dos trabalhos parlamentares e nas crescentes fricções com o presidente da república. Também se manifestam na dificuldade em confrontar as fortes limitações de país arquipélago, a perder população, com uma reduzida estrutura produtiva e uma história de precariedade que a dependência do turismo em 25% do PIB só realça. Querer resolver problemas do transporte aéreo ou marítimo sem ter presente estas realidades é o que de há muito vem sendo feito nas múltiplas tentativas de reorganização do sector e o resultado vê-se nas dívidas acumuladas e na dificuldade até em garantir o mínimo. Algo similar, mas menos visível, talvez não por muito tempo, acontece noutros sectores como se pressente nas recentes críticas dirigidas aos sectores da segurança, saúde e educação.

O que não parece afectado pelo estado da política no país é o optimismo que emana de certos sectores da governação que põe como objectivo mobilizar 5 mil milhões de euros, duas vezes e meia o valor do PIB, junto de parceiros públicos e privados até 2030 e que para isso organiza-se uma conferência de parceiros na ilha da Boa Vista em finais de Abril, como já se tinha feito em Paris, em 2018, e outras vezes na ilha do Sal. De acordo com o vice-primeiro-ministro e ministro de finanças a transição energética, climática, a economia circular são temas que, no fundo, acabam por ‘facilmente’ convencer parceiros a injectarem recursos para que sejam concretizados.

O problema com esses expedientes, que já tiveram exemplos similares no passado movidos com agendas da altura, é que no fundo muito pouco acaba por se realizar: elefantes brancos proliferam; a dívida pública aumenta e qualquer choque externo põe a nu as vulnerabilidades do país e a precariedade das populações. Viu-se isso recentemente com a crise provocada pela seca a partir de 2017 que deixou claro o fraco retorno dos enormes investimentos que tinham sido feitos a partir de 2008 em estradas, barragens e Casa para Todos. Com o fim do período de carência em 2022 aumentou em cerca de 9 milhões de contos o serviço da dívida contraída.

A repetição periódica dessas situações incluindo prejuízos sucessivos e cumulativos de natureza económica e social indiciam que algo está errado na abordagem das questões de desenvolvimento e que provavelmente há uma desconformidade entre a realidade perspectivada por políticos e governantes e os dados concretos do país. Cabo Verde, sequestrado que foi por circunstâncias históricas que acompanharam o desmantelamento do império colonial português, parece estar enredado em contos, mitos e narrativas que não deixam o país revelar-se na plenitude da sua história e do processo secular de construção de uma identidade própria.

Sem conhecimento integral da real história do país, recursos que podiam ser capitalizados para o desenvolvimento não são reconhecidos, alertas quanto aos percalços de desenvolvimento num país pequeno e arquipelágico não são escutados e conflitos artificiais podem ser criados. Neste particular, o conflito que se instalou entre o crioulo e a língua portuguesa é o exemplo de como às enormes dificuldades de um país como Cabo Verde se pode somar artificialmente mais um entrave ao seu desenvolvimento. Todos os cabo-verdianos falam o crioulo e pelo seu uso em cerimónias oficiais e momentos solenes pelo presidente da república, pelo governo e pelos deputados vê-se que não é ameaçada nem ostracizada.

A cabo-verdianidade, porém, não é expressa somente em crioulo como comprova todo o espólio literário que foi instrumental para a emergência da consciência da nação e que na sua quase totalidade resulta do uso criativo do português. Se conflito existencial entre as duas línguas não se verificava antes, não se compreende que quase cinquenta anos depois e com toda a gente a falar crioulo o presidente da república se sinta na necessidade de declarar que “N ta ben sta na linha di frénti di konbáti pa ofisializason plénu di nos Kriolu”. O posicionamento do PR levanta uma série de questões. Para começar no sistema constitucional cabo-verdiano só os deputados têm iniciativa em matéria de revisão constitucional. Sendo representante da unidade da nação e guardião da Constituição vigente não se vê como é que o PR vai ser parte no debate público e proceder para influenciar deputados que também representam os partidos no parlamento. Por outro lado, se houver revisão constitucional e qualquer que for a direcção tomada pelo legislador constituinte o PR não pode recusar a promulgação das leis de revisão (Artº 291 da CRCV).

De facto, nas circunstâncias e nos termos em que se referiu, o posicionamento do PR foi desnecessário: o crioulo só ainda não é oficial porque não se consensualizou uma versão estandardizada e escrita e desde de 1999 que há um comando constitucional a obrigar o Estado a criar as condições nesse sentido. Também foi pernicioso porque, pela linguagem utilizada, alimenta-se a conflitualidade linguística com consequência para disposição dos alunos em aprender o português e serem proficientes na língua oficial do país enquanto cidadãos plenos. Uma conflitualidade que não se pode negar considerando a hostilidade dirigida por certos sectores contra a Escola Portuguesa de Cabo Verde porque procura fazer o óbvio que é criar um meio imersivo para mais rápida aprendizagem da língua e suprir o facto que praticamente fora da escola só se fala o crioulo.

Neste início do segundo ano da guerra na Ucrânia, em que incertezas e imprevistos toldam a imagem do que pode vir à frente, o foco devia estar em conduzir o país com base segura, sem realidades ficcionadas, e pôr a democracia a funcionar de forma a encontrar soluções duradoiras para os problemas de desenvolvimento. Humildade, competência e procura da verdade deviam caracterizar a actuação dos actores de forma a se diminuir os conflitos e, com confiança e solidariedade se enfrentar os grandes desafios que o país tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1109 de 1 de Março de 2023.