segunda-feira, 27 de maio de 2019

Corrupção, o mal a evitar

Acusações de corrupção são das piores armas políticas usadas nas democracias. Deixam saber que não há transparência na condução dos assuntos públicos e que há interesses particulares a serem protegidos em detrimento de bens e serviços que deveriam servir a todos.
Não poucas vezes são a arma de escolha no combate contra as elites ou de arremesso entre as forças políticas na sua luta pelo poder ou ainda para demonizar um adversário. Independentemente do seu grau de correspondência à realidade, o impacto sócio-político de acusações sistemáticas de corrupção é a todos os níveis desastroso. Provocam descrença nas instituições, justificam a desconfiança de muitos em relação aos políticos e alimentam o cinismo sobre o próprio regime democrático. Em termos económicos, ao indiciar que as regras não são iguais, aumenta os custos para os operadores, favorece a concorrência desleal e prejudica o consumidor. Se para qualquer país são enormes os prejuízos de fazer política com acusações mútuas de corrupção, para os países que estão a se enveredar pelos caminhos sinuosos do desenvolvimento são de facto terríveis.
A experiência de vários países demonstra que é possível evitar os efeitos da “política politiqueira” que em tudo vê corrupção com uma cultura de transparência e mecanismos de prestação de contas, com particular atenção a eventuais conflitos de interesses nos processos de decisão, com um sistema judicial eficaz e com uma imprensa livre e uma cidadania activa. A urgência em agir concertadamente para não deixar esse mal se instalar é cada vez maior no mundo de hoje. Mesmo em regimes não democráticos aumenta extraordinariamente a sensibilidade perante casos de corrupção como demonstra a ofensiva anti-corrupção que está a ter lugar em vários países asiáticos como a China, o Vietname e a Malásia. A legitimidade do governo desses países parece cada vez mais depender não só da dinâmica de crescimento que conseguem imprimir como também da sua eficácia em impedir que alguns se apropriem de forma desproporcional e ilegal da riqueza criada por todos.
Nas democracias também nos últimos anos cresceu consideravelmente a intolerância perante quaisquer sinais de corrupção. Basta ver o número de ex-chefes de Estado e de governo que estão ou já foram investigados por corrupção em países como a França, a Itália, Portugal, Espanha e Israel. Na sequência da crise financeira de 2007/2008 e da Grande Recessão ficou o sentimento no grande público que os custos da crise foram sofridos desigualmente pelos mais pobres enquanto uma elite financeira responsável pela crise foi salva e até lucrou com a situação. Esse sentimento de desencanto foi ainda agravado pela aparente incapacidade das elites políticas em encontrar soluções para as piores consequências da globalização que se têm traduzido na perda de trabalho e de rendimentos de milhares de pessoas na Europa e na América. Uma incapacidade que também demonstram em pôr cobro à concentração de riqueza num número cada vez mais restrito dos chamados 1% e em encontrar sistemas de redistribuição criativos que revalidem o actual contrato social e suporte a expectativa de diminuir a desigualdade social reinante. A perspectiva de um papel mais interventivo do Estado nos próximos anos tanto no papel de regulador como também de promotor da economia e de agente da redistribuição de riqueza, essencial para se manter a paz social, diminuir o ressentimento em relação às elites e construir um futuro, obriga a uma maior preocupação com a corrupção e a estar mais atento a políticas que a podem agravar.
Em países em desenvolvimento como Cabo Verde conseguir que o Estado desenvolva esses papéis essenciais que envolvem o fomento da iniciativa privada, a consolidação do tecido empresarial nacional e a atracção do investimento sem se deixar enredar no mar de interesses muitas vezes conflituantes não é tarefa fácil. Países como os do Sudeste asiático que em décadas passadas conseguiram vencer a batalha do desenvolvimento com um forte intervencionismo do Estado na economia e na criação de um sector privado dinâmico não o fizeram sem que num momento ou outro não tivessem sido confrontados por situações que configurem clientelismo, patronagem e nepotismo. Hoje o mundo é muito diferente e a intolerância a quaisquer actos que podem indiciar alguma relação de corrupção pode ser fatal. Mantém-se porém o objectivo central de fazer surgir e consolidar-se um sector empresarial moderno sem que o Estado se deixe apanhar pelos interesses. Saber a todo o momento conciliar esse objectivo com a realidade existente da fragilidade do sector, dos hábitos de dependência do Estado, dos constrangimentos ao empreendedorismo e das insuficiências do mercado não é certamente fácil. Muitos tentaram, poucos conseguiram.
A verdade é que não se consegue construir o ambiente adequado para uma interacção frutífera entre o público e o privado com vista a potenciar o desenvolvimento do país se a política se resumir a acusações de corrupção, se medidas políticas forem vistas sempre através de um prisma de que se quer lesar intencionalmente o interesse do país e se a insistente discussão do passado servir para invalidar qualquer discussão do futuro. O que se tem visto e ouvido nestas últimas semanas no parlamento, nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais sugerem que é nessa direcção que teimosamente se está a querer ir. Que essa é a tendência que se nota em várias democracias, é um facto. Os populismos vivem de indignação, acusações e ressentimentos. Mais uma razão para não se deixar arrastar por tal caminho.
O desenvolvimento de Cabo Verde implica necessariamente uma intervenção estratégica do Estado na construção das bases da sua economia. É supostamente consenso que o crescimento económico terá que contar com um forte contribuição do sector privado que o país puder criar e motivar. Também é verdade que nenhum recurso que através dos impostos tenha sido subtraído ao rendimento das pessoas deva ser utilizado de forma ilegal por qualquer individualidade ou direccionado para interesses particulares. Se assim é, há que construir as bases institucionais, desenvolver a cultura de serviço público e fortalecer os checks and balances do sistema político para que o esforço de desenvolvimento do país não beneficie alguns em detrimentos de outros. Diálogo construtivo em vez de acusações mútuas de corrupção precisa-se para que se possa evitar os percalços de um caminho difícil e não cair numa deriva com consequências graves para o país.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 912 de 22 de Maio de 2019.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Pressão populista

Na semana passada o foco da atenção foi o Liceu da Várzea. O governo fez saber através de uma portaria que autorizava que o terreno de 12 mil metros quadrados ocupados pelo liceu fosse cedido por 5,8 milhões de dólares às autoridades americanas para completar a área necessária para construir uma embaixada de raiz em Cabo Verde.
A reacção de várias pessoas entidades e sectores de opinião não se fizeram esperar. Condenaram a decisão deixando transparecer nos argumentos apresentados sentimentos de anti-americanismo remanescente de algum anti-imperialismo terceiro mundista. Algo similar já tinha conhecido no ano passado aquando da discussão do Acordo SOFA referente ao estatuto de militares americanos presentes em missão oficial no território nacional. Foi então notória a contaminação do debate pelos mesmos sentimentos, enviesando e tornando menos produtivo o esgrimir dos argumentos pró e contra. Do imbróglio algo inesperado nos dois casos chama a atenção a agressividade com que são avançados certos tipos de argumentos, a preocupação em rotular negativamente quem tem posição diferente e as acusações às vezes frontais de que há quem esteja a submeter-se aos ditames de países estrangeiros.
Interessante que os posicionamentos sobre estes assuntos vindos a público não têm só origens em elementos inorgânicos que se fazem ouvir essencialmente nas redes sociais. Convergem no essencial com os adoptados pelas principais forças políticas da oposição. O resultado é que numa matéria de relacionamento com um estado estrangeiro o governo e a oposição aparecem de costas voltadas e de forma acrimoniosa. Isso em contraste absoluto com a atitude que os sucessivos governos formados por um e outro partido têm assumido ao longo dos tempos em relação aos Estados Unidos da América designadamente em matéria de segurança, de política de ajuda ao desenvolvimento e de luta pela democracia e pelos direitos humanos no mundo e também no âmbito de programas como o MCA de 2005 e o de 2012. Razão para dizer que as motivações das partes nestes assuntos traduzem mais a possibilidade de aproveitamento numa perspectiva político-partidária de matérias, que não poucas vezes se tornam casos por falhas na própria forma do governo de as comunicar, do que realmente uma posição do Estado. Por isso que em geral os países estrangeiros envolvidos em tais imbróglios domésticos nem se incomodam com os arremessos vindos da oposição. O entendimento geral, como recentemente fez notar um alto dignatário europeu referindo-se a dirigentes partidários estrangeiros, é que os líderes quando estão fora do poder podem dizer e fazer o que bem entenderem. Não afecta as relações entre os Estados.
As democracias vivem hoje sob pressão de populismos de vários tipos. Uma característica comum a todos eles é a aposta em políticas identitárias que têm por base a busca da identidade por contraposição ao “outro” visto por Jan-Werner Muller no seu livro de 2016 “O que é o populismo?” como um ente diferente, corrupto ou de alguma forma moralmente inferior. Acrescenta o autor que a pretensão central do populismo é afirmar “que só uma parte do povo é que é realmente o povo”. A sua força motriz é o medo. Por isso é que certos populismos na Europa e nos Estados Unidos ganham força alimentando o medo contra, por exemplo, o imigrante e o islão e outros populismos insistem que o inimigo é a elite cosmopolita e a globalização. Em todos esses casos está-se à procura de um bode expiatório, de razões para odiar e de ameaças para confrontar.
Cabo Verde não está imune a essas tentações populistas. Aliás, o populismo já vinha do regime de partido único e só ganhou uma outra dimensão com o eleitoralismo da democracia. Os efeitos da generalização do uso das redes sociais e as mudanças geracionais nos partidos políticos vieram imprimir uma nova dinâmica ao que já existia e o resultado vê-se na fragilização das instituições com destaque para o parlamento, no empobrecimento do discurso político e no ambiente de maior crispação entre os partidos. Na procura de consolidação de identidades parece que um dos ingredientes que tem provado alguma utilidade, se tivermos em consideração a gritaria em certos círculos contra “bases, complexo militar e tropa americana”, é o espicaçar do sentimento anti-americano. Vê-se o artificialismo disso tudo quando se sabe que esses mesmos círculos não se opuseram, por exemplo, aos exercícios da NATO em 2005, ou à recepção em Cabo Verde de ex-prisioneiros vindos da base de Guantánamo em Cuba ou à assinatura em Washington do acordo em 2015 que faz de Cabo Verde um dos cinco “anchor states” no sistema de segurança dos Estados Unidos nesta região. Para muita gente nesta afirmação de identidades parece que também ajuda a hostilidade à Europa com o pretexto dos vistos, o confronto permanente entre o crioulo e o português que tem feito regredir o ensino da língua portuguesa e o afirmar de uma “africanidade” que ameaça desconstruir a caboverdianidade.
O discurso político nestes últimos dias tem sido dominado pela ideia de que o Liceu da Várzea está à venda, que já se vendeu a TACV e que outras empresas vão seguidamente ser vendidas. Parece que já se descobriu o que poderá alimentar o medo em Cabo Verde. Noutros países aposta-se no medo da imigração descontrolada, mas aqui no país e em certos círculos, talvez seja a ideia de venda do país a forma encontrada de galvanizar um certo tipo de populismo atractivo para sectores que sempre viveram à volta do Estado. Nisso certamente tiveram a ajuda de quem não soube desconstruir narrativas que no bom estilo populista dividia o campo político entre os que amam a terra e os outros. E iniciativas contraproducentes como publicar resolução do governo nomeando 25 empresas estatais e participadas que deviam ser privatizadas só poderiam confirmar a narrativa já existente.
O facto é que esse tipo de discurso tende a bipolarizar ainda mais o espaço político, diminuir consideravelmente as possibilidades de acordo entre as forças políticas em questões-chave para o país e tornar de todo quase impossível discutir qualquer assunto de relevância para o futuro. Também não é o tipo de discurso que convida a acções de forma concertada e estratégica, às vezes mesmo ultrapassando legislaturas para que o futuro do país seja garantido. O populismo vive da divisão mas aprofundando as fracturas na sociedade caboverdiana talvez leve alguém ao poder mas à custa de se sacrificar efectivamente o desenvolvimento do país. Espera-se que esse facto já comprovado por outros seja devidamente interiorizado e que a tempo se arrepie caminho para que o país não seja engolido num populismo que não leva a lado nenhum.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Ainda à procura da normalidade

Quase trinta anos depois de mudança de regime político, Cabo Verde ainda não se vê como um “país normal”. Mas normalidade no sentido de pluralismo, democracia e sociedade aberta era o que realmente todos mostraram querer com o seu voto no dia 13 de Janeiro de 1991 que garantiu a maioria qualificada para se aprovar uma Constituição liberal e democrática.
Com esse gesto as pessoas quiseram exprimir que não mais estavam dispostas a aceitar um pensamento único. Não mais queriam ser tratados como cidadãos de segunda sujeitos ao governo de um grupo dos melhores filhos e deixados indefesos perante a discricionariedade e arbitrariedade das autoridades. E não mais dispunham-se a acatar um regime que coarctava a liberdade, a iniciativa e o espírito crítico. Infelizmente a realidade actual não corresponde completamente ao sonho de então e há mesmo o perigo de inversão da marcha em certos domínios.
É verdade que avanços extraordinários foram feitos na construção da normalidade desejada nos anos seguintes de construção da democracia. Mas também é facto que símbolos, ritos e personagens sobreviventes do regime antigo conseguiram insinuar-se no regime democrático, concomitantemente fazendo ressurgir com uma nova vitalidade a tentação de excluir pensamento outro, de se enaltecer e de servir a si próprio e de dobrar a Lei e as instituições ao seu interesse e conveniência. Antes, quando claramente constituía o núcleo essencial da ideologia do regime, procurava legitimar-se suportando-se no cultivo da gratidão pelo sucesso do processo de independência. Hoje, quando subtilmente impregna o Estado democrático procura justificar-se em exclusão de qualquer outra compreensão do percurso da Nação exigindo respeito pela história que só uns autorizados podem escrever e que obrigatoriamente deve ser passada às novas gerações em todas as escolas do país.
Se dúvida houvesse quanto a isso, a reacção excessiva e estrambólica de pessoas e entidades a um post na página do Facebook do deputado Emanuel Barbosa datado de 29 de Abril (opinando no essencial que por Amilcar Cabral não ser uma figura do Estado, “não se mostra aceitável que as suas fotos estejam afixadas em estabelecimento do Estado”) foi bem clara: o país tem tabus, a Constituição e as leis não se aplicam a todos e há que olhar para o lado antes de exercer o direito à liberdade de expressão. A questão central, levantada pelo deputado, se nos organismos públicos só deve estar a imagem do presidente da república porque constitucionalmente é o órgão de soberania que representa interna e externamente a república e é o garante da unidade do Estado, foi completamente ignorada. Em sentido contrário já muito visível ficou o entendimento de pessoas em certos sectores de que há símbolos nacionais outros que não os constantes do artigo 8º da Constituição e que as leis devem dobrar-se para os acomodar. Caricato no imbróglio foi a liderança do MpD através do secretário-geral demarcar-se da opinião do deputado do seu partido sobre uma figura política central ao legado histórico do seu principal adversário político, uma centralidade que o PAICV não se farta de reivindicar.
Viver num país normal onde se privilegia a liberdade pessoal, se preza a igualdade dos indivíduos e a lei se aplica a todos sem distinção pode para alguns não ser excitante como pelo menos inicialmente parece participar em alguma revolução bolivariana, seguir algum Comandante en Jefe ou extasiar-se perante os ritos patrióticos de multidões como na Coreia do Norte. Mas como venezuelanos, cubanos e coreanos e muitos outros noutros países e noutras eras podem testemunhar a excitação, enquanto durar, consegue-se à custa da perda de dignidade, de autonomia pessoal e de esperança num futuro de prosperidade. O culto de personalidade que é comum a todos esses regimes é a verdade única oficialmente aceite que faz do quotidiano um mundo de mentiras repetidas mil vezes e que precipita e atira as pessoas e a sociedade para o atraso porque elimina-se o espírito crítico, alimenta-se o conformismo, substitui-se a razão pelo sentimento e apela-se a paixões irracionais que criam a ilusão de que tudo é possível e que nada deve ser colocado no caminho da realização do objectivo traçado. Parafraseando Churchill sobre a democracia pode-se dizer que a democracia é o menos excitante dos regimes político, mas é o que um país normal faz que justamente deixa mais espaço para a criatividade e inovação, cria as condições para a produção sustentada de riqueza e abre caminho seguro para a inclusão.
O progressivo avanço simbólico de Amílcar Cabral na vida pública de Cabo Verde democrático não podia ser feito sem custos. A sua figura histórica é indissociável do PAIGC, o partido que liderou a luta de libertação na Guiné e esteve na origem de um regime de partido único na Guiné e outro em Cabo Verde. Como líder e teórico revolucionário esteve na origem da ideologia adoptada nos dois regimes de carácter totalitário. É evidente que forçar o reconhecimento do seu percurso político num contexto democrático de valores situados nos antípodas dessa ideologia cria tensões profundas que estão a ser resolvidas com mais esforço de indoutrinação nas escolas, com mais agressividade na invocação do seu pensamento em cerimónias públicas e com maior intransigência em discutir por exemplo se a sua estátua deveria estar numa rotunda como acontece em Bissau ou em repartições públicas onde legalmente nem o primeiro-ministro está e só é permitida a imagem do presidente da república, como acontece aliás em todas as democracias.
O choque contínuo daí resultante abre caminho para maior intolerância, para o estreitamento do espaço deixado ao espírito crítico e para mais crispação política visto que o PAICV proclama-se partido de Cabral. Contribui também para um esforço redobrado de indoutrinação das crianças algo directamente proibido pela Constituição que impede que o Estado programe a educação e o ensino segundo directrizes várias entre as quais políticas e ideológicas (artigo 50º nº 2 c) da CRCV). A violência verbal que se seguiu ao post no Facebook do deputado Barbosa ilustra bem o ponto em que já se chegou nesta deriva cujo imediato efeito é coarctar as liberdades. Pode complicar ainda mais a situação se na luta entre os partidos pelo eleitorado jovem todos se renderem a uma posição acrítica da forma como historicamente deve ser visto A. Cabral, como já vem acontecendo. Ninguém porém ganhará com isso. A Venezuela do comandante Chávez e agora de Maduro é o exemplo dramático do que não é um país normal.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 910 de 08 de Maio de 2019.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Mais emprego

Em mais uma celebração do 1º de Maio, Dia do Trabalhador, a atenção vai para a problemática do emprego no mundo de hoje, para a dificuldade generalizada em inverter os dados do desemprego e para o número crescente dos que desistem e se auto-excluem do mercado de trabalho.
Há quase três décadas que a economia mundial está a sofrer mudanças profundas sob o impacto da globalização, da liberalização de capitais e de avanços nas tecnologias de informação e comunicação. No processo, cadeias globais de valor criadas aumentaram exponencialmente a riqueza disponível e retiraram da pobreza centenas de milhões. Devido à dinâmica gerada, postos de trabalho foram destruídos e outros novos surgiram deixando para trás um grande número de perdedores mas abrindo oportunidades para muita gente em todos os continentes. Hoje, para uns a grande questão é como amortecer o choque negativo dessas mudanças designadamente no desemprego e na perda de rendimento sem quebrar a dinâmica económica. Para outros é como não ficar à margem de todo o processo de criação de riqueza e sem possibilidade de agarrar o comboio da prosperidade.
Depois da crise financeira de 2007/2008 e da Grande Recessão que se lhe seguiu os efeitos negativos da globalização acentuaram-se no mundo desenvolvido. Ao mesmo tempo que empregos no sector industrial desapareciam com as novas cadeias de valor, empregos criados no sector de serviços mostravam-se incapazes de os substituir porque as pessoas ou não estavam habilitadas para os exercer ou se revelavam pouco atractivos e pagavam menos. O descontentamento aí gerado passou a ressentimento com a crescente percepção pública da excessiva concentração de riqueza e aumento da desigualdade social. Muito do populismo e do sentimento anti-imigrantes que se vê em crescendo nos Estados Unidos e na Europa tem aí o seu fundamento.
Já no mundo em desenvolvimento há que se referir a pelo menos dois casos distintos. Há o caso da China e de mais outros países asiáticos que são os grandes ganhadores do actual sistema e que assistiram à ascensão de milhões de pessoas à classe média e ao crescimento económico a taxas elevadas de mais de 8% ao ano durante décadas suportada por uma rápida industrialização voltada para as exportações. Há o outro caso de países em desenvolvimento que deixaram a sua economia ficar dependente da exportação de minérios, de petróleo e de produtos agropecuários sem se diversificarem realmente. Além de crescerem com taxas relativamente baixas falharam em criar empregos suficientes e de qualidade em número e rapidez que historicamente só foi possível com a industrialização. Nem a dinâmica dos serviços, nem as promessas da economia do conhecimento enquanto motores de criação de empregos mostram-se capazes de compensar essa lacuna no processo de desenvolvimento desses países. E é a constatação deste facto que crescentemente tem levado muitos deles a reverter as suas políticas.
O problema é que o mundo de hoje, particularmente desde que a China foi aceite na OMC e se tornou na grande base industrial do mundo, não é o mesmo de décadas em que no quadro de sistemas preferenciais e de cotas alguns países asiáticos fizeram a sua caminhada com sucesso via industrialização com base nas exportações. Agora o grande desafio é inserir-se nas cadeias globais de valor e sabe-se que para isso as exigências são múltiplas incluindo custos de contexto, custo de factores e nível de formação dos trabalhadores que devem estar a um nível de poder competir com os oferecidos por outros concorrentes. A ameaça de guerras comerciais, a tentação de adopção de políticas proteccionistas pelas grandes potências e a tensão geopolítica em vários pontos do globo prometem tornar a caminhada que ora se procura iniciar ainda mais difícil e imprevisível. Tanto no passado como no presente os países que conseguiram ganhar com a sua inserção na economia mundial tiveram primeiro de construir um grande consenso interno quanto aos objectivos e as vias de os atingir. Aprenderam a abster-se do populismo e da demagogia nas discussões de política e no exercício do contraditório no quadro democrático para que negociações em questões de fundo do país tivessem alguma chance de sucesso e houvesse confiança para celebrar pactos alargados e firmar acordos pontuais.
Na campanha para as legislativas de Março de 2016 os dois grandes partidos correctamente identificaram o emprego como principal preocupação do povo cabo-verdiano. No debate político a candidatura de Ulisses Correia e Silva prometeu crescimento económico de cerca de 7% ao ano e 45 mil postos de trabalho enquanto a candidatura de Janira Hopffer Almada prometeu 15 a 20 mil empregos por ano. Interessante notar que o facto de todos concordarem ser o emprego o maior desejo das pessoas não leva depois a uma aproximação de posições para que condições sejam criadas e o objectivo de gerar mais postos de trabalho e fazer crescer com vigor e sustentabilidade a economia nacional seja materializado. Prefere-se ficar pela política que faz do adversário um inimigo e um potencial sabotador na realização dos interesses do país. E lida-se com a população tornando-se enquanto deputado da situação ou da oposição em porta-voz das reivindicações que, como disse o líder da UCID durante o debate sobre “Habitação e Habitabilidade”, as pessoas não fariam se tivessem um emprego decente.
O foco portanto devia estar em encontrar as melhores vias e fazer reformas que se impõem para criar empregos seguros e de qualidade e pela via do emprego melhorar a situação de todos. É evidente que alguns irão sempre precisar de ajuda directa e solidária do Estado que estará em melhor posição se tiver uma economia a crescer com vigor redobrado e a criar número significativo de postos de trabalho. Tornar o país mais produtivo e mais competitivo particularmente nesta fase de crescente dificuldade nas relações internacionais exigirá esforços redobrados, novos métodos de actuação dos actores políticos e mais abertura para se fazer as negociações e chegar aos acordos necessários em sectores-chave do país designadamente em matéria de administração pública, segurança, educação e política económica no seu todo.
Governar e fazer oposição já não devia passar pelo número de visitas, auscultações e socializações feitas às populações com a frequência e intensidade que ainda hoje se regista. Para além dos custos inerentes parecem ser actos permanentes de campanha eleitoral disfarçados de contacto com as populações. Fica no ar se os dignos representantes têm tempo depois do frenesim correndo pelas ilhas para estudar e reflectir sobre as questões, para encontrar as vias para as resolver e implementá-las no quadro de políticas devidamente ponderadas. A persistente precariedade e vulnerabilidade das populações põem sérias dúvidas quanto a isso. O mesmo faz o desemprego ainda elevado mesmo em face de maior crescimento económico. Há que mudar na forma de actuação da classe política e dos governantes para se poder lidar efectivamente com os constrangimentos ao desenvolvimento e posicionar melhor o país para aproveitar as oportunidades. Celebrar o 1º de Maio deveria significar a renovação do comprometimento para com a criação de condições para se ter mais empregos e propiciar maior empregabilidade a todos os cabo-verdianos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 909 de 01 de Maio de 2019.