segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Segurança, fundamental para o Turismo

O atropelamento de turistas na pedonal das Ramblas, em Barcelona, sexta-feira passada, dá continuidade a uma série de ataques brutais na Europa mas também em África em que o alvo são os turistas. Seja em Paris, Manchester, Londres, Berlim, Nice ou Bruxelas, Egipto, Costa do Marfim ou Mali o objectivo dos terroristas é matar o máximo número de pessoas, de preferência nacionais de vários países. No caso de Barcelona, as vítimas, entre mortos e feridos, eram de 34 países. Tais tácticas, para além dos terríveis custos humanos que provocam, do medo que instilam e da falta confiança entre as pessoas que geram, tendem a afectar severamente a actividade turística que, cada vez mais em vários países, vem-se afirmando como um dos principais motores do crescimento económico e de criação de emprego.
O Conselho Internacional do Turismo (ITB) no seu último relatório sobre as tendências de viagens, citado pelo jornal Financial Times, diz que a segurança tornou-se o principal critério na escolha dos locais de férias: quase metade dos turistas têm sérias preocupações com a segurança e que dois terços dizem que só viajam para destinos internacionais que consideram seguros, sem registo de conflitos ou instabilidade. Segundo o mesmo jornal, só a cidade de Paris perdeu mais 1,5 milhões de turistas na sequência dos vários ataques terroristas. Antes, destinos como a Tunísia, o Egipto e a Turquia tinham pelas mesmas razões perdido turistas a favor de destinos como Espanha, Canárias e Cabo Verde. Não espanta pois que o ataque em Barcelona tenha deixado apreensivo operadores como a TUI e a Thomas Cook com a possibilidade de perdas no fluxo turístico para vários pontos de Espanha e das Canárias. Mesmo nos destinos que ainda não foram afectados aumenta a preocupação que, com os terroristas a tomarem qualquer concentração de turistas como alvo, sejam também vítimas de um ataque. Uma situação que a se verificar teria um efeito demolidor em países como Cabo Verde em que é visível a preponderância crescente do sector do turismo sobre a economia nacional.
A segurança é vital para o presente e futuro do Turismo em Cabo Verde. Era de esperar uma maior atenção do Estado em matéria de segurança nas ilhas do Sal e da Boa Vista, as ilhas mais viradas para o Turismo e com maior concentração de turistas europeus. Os dados da criminalidade nas duas ilhas tanto em termos de ocorrências como de complexidade dos crimes cometidos apontam que a acção do Estado não está a ter a eficácia desejada. É claro  que injecções de meios materiais e humanos não estão a dar os resultados pretendidos, como, aliás, não deram frutos em momentos anteriores com o anterior governo.
As duas ilhas, em particular a Boa Vista, que à partida tinham poucos milhares de habitantes, viram a sua população triplicar e quintuplicar com migrantes nacionais vindos das outras ilhas e estrangeiros maioritariamente vindos de países africanos atraídos pela dinâmica rápida do turismo financiado pelo investimento directo estrangeiro. À complexidade humana, económico-social e cultural com seus reflexos na natureza e níveis da criminalidade e impacto na ordem e tranquilidade, contrapôs-se uma abordagem policial que não se diferencia grandemente do que se fazia noutros pontos do território nacional. Ficou-se pelo mesmo sistema de forças, a mesma cultura organizacional e os mesmos métodos de actuação. É evidente que não podia funcionar e não funcionou em particular nas ilhas que mais mudaram sob o impulso do exterior e que continuaram a ver largas extensões do seu território sem controlo efectivo das autoridades. Nem tão pouco podia funcionar nas ilhas em que, assim como o crescimento do turismo não foi acompanhado de avanços correspondentes nos domínios designadamente da habitação, saneamento básico, saúde, energia e água, também no campo policial ficou-se aquém do exigível pela complexidade das situações enfrentadas no dia-a-dia.
No Boletim Oficial de ontem, 23 de Agosto, vem publicado que a verba de 219 mil contos do Fundo de Sustentabilidade Social para Turismo financiada pela taxa turística vai para equipar a polícia nacional com veículos, comunicações e outras aquisições. Para a polícia judiciária foi alocado o valor de 27 mil e 500 contos basicamente para os mesmos efeitos. É evidente que com a criminalidade que tende a crescer na ilha do Sal e na Boa Vista essas forças são insuficientes particularmente quando se tem presente as ameaças que pairam sobre o turismo e os turistas e ainda a realidade da grande extensão territorial, povoamento escasso e exposição das ilhas a desembarques e outras operações sem autorização. Urge de facto, a exemplo do que outros países com situações similares fizeram, criar uma outra força de segurança incluindo a guarda costeira e os fuzileiros navais que imponha a autoridade do Estado nos mares, nas costas e nas extensas zonas do país de parca população e tenha capacidade militar para responder a situações de terrorismo ou de crime organizado.
O Turismo é ao mesmo tempo frágil e crucial para dinâmica do país nos próximos tempos. E sabe-se que o factor segurança é o que fundamentalmente está a contar na escolha do destino pelo turista. Há que ser criativo, seguro e eficaz para evitar que Cabo Verde perca mais esta oportunidade. Importa, de facto, continuar a fazer convergir sobre si uma procura externa valiosa, absolutamente necessária para dinamizar a sua economia e colocá-lo na via do desenvolvimento.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 821 de 23 de Agosto de 2016. 

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Clarificar a política de habitação

A problemática da habitação voltou ao centro das atenções do Governo. No debate sobre o estado da Nação o Primeiro Ministro na sua intervenção inicial comprometeu-se com o valor de 945 mil contos para eliminar as barracas de do bairro da Boa Esperança na Boa Vista e com 2 milhões de contos para acabar com as barracas de Alto S. João, Alto de Santa Cruz e Terra Boa na ilha do Sal. Ainda na mesma intervenção o PM voltou a referir-se a 14 milhões de dólares conseguidos da China e que seriam dedicados à habitação social. Na semana passada, o ministro das Finanças e o PCA do BCA assinaram um acordo em que o Estado assumia pagamentos devidos ao BCA e o banco disponibilizava uma linha de crédito no valor de 15 milhões de contos, uma parte para financiar a habitação e outra para apoiar empresas em particular as start-ups. Tudo indica que o governo resolveu enfrentar um problema dos mais graves que aflige o país e cujo impacto socioeconómico já não se pode ignorar. A questão que se coloca agora é saber qual a melhor visão e estratégia para evitar os erros do passado e ao mesmo tempo lançar as bases seguras para resolução possível do problema da habitação.
Num passado recente pretendeu-se que a solução podia ser encontrada no programa Casa para Todos que com uma linha de crédito de 200 milhões de euros disponibilizada por bancos comerciais com aval do Estado português iria construir 8 mil casas e a partir da venda das mesmas prosseguir a construção de mais fogos. O Novo Banco criado na mesma ocasião teria um papel central no suporte financeiro para a compra das casas. Sabe-se o que realmente passou. Construíram-se realmente cerca de 3 mil casas, foram vendidas muito poucas e a grande maioria das actualmente ocupadas estão em situação de renda resolúvel e de caracter social. O Novo Banco praticamente faliu e foi fechado por resolução do Banco Central. Também contrariamente ao que acontece na generalidade dos casos em que há obras com investimento público de grande envergadura não se verificou o arrastamento da economia nacional – a economia nesses anos praticamente estagnou – nem foi beneficiado o sector privado nacional da construção civil. Isso porque, apesar do surto de construção que se verificou com a utilização da linha de crédito, na forma como foi negociada as sociedades empreiteiras tinham que ser maioritariamente portuguesas e uma percentagem elevadas dos materiais deveria ser comprada em Portugal. Uma solução que não cometa os mesmos erros terá que ir por outras vias.
A oferta habitacional em Cabo Verde para ser adequada deve poder responder não só ao crescimento da população como também às necessidades de mobilidade de mão-de-obra do campo para cidade e de uma ilha para outra. Nos últimos tempos o fluxo migratório interno tem-se dirigido particularmente para a ilha do Sal e da Boa Vista. Décadas atrás, S. Vicente era o destino de muitos que procuravam nos serviços e na indústria os meios para o seu sustento. Praia, a capital do país, com o crescimento da máquina do Estado e actividades dela dependente cresceu extraordinariamente ao longo dos 42 anos de independência, atraindo população do interior de Santiago e das outras ilhas. O resultado desses fluxos migratórios não planeados vê-se na expansão caótica da Praia, nos bairros precários de S.Vicente e nas barracas da Ilha do Sal e da Boa Vista. Claramente que as autoridades não anteciparam o fluxo migratório e muito menos se prepararam adequadamente para lhe dar resposta em termos de ordenamento urbano, saneamento básico, segurança, comunicações, energia e água.
Para piorar as coisas, de forma generalizada alimentou-se o sonho da casa própria quando era evidente, que para o país realizar melhor o seu potencial de crescimento, as pessoas teriam que poder mover-se para onde surgissem oportunidades de trabalho e sinais de uma maior dinâmica económica. E não deveriam ficar presas onde não havia uma perspectiva de trabalho gratificante só porque havia uma mensalidade a pagar ao banco pela casa que até foram incentivadas a construir no quadro de uma política de apoio à habitação própria. De facto, não parece que alguma vez houve uma discussão sistemática sobre o que mais convinha a Cabo Verde: habitação própria ou arrendamento. Num país que ainda está por identificar os seus principais motores de crescimento económico e de criação sustentada de emprego, optar por promover habitação própria em detrimento de arrendamento só podia levar ao fenómeno terrível das barracas e ao caos urbano nas principais cidades. Entretanto, com as opções feitas e na falta de políticas claras, não se tem um vibrante sector privado a construir, nem há um mercado de arrendamento e muitas pessoas deixam a casa para irem residir noutra ilha ou numa cidade porque no seu lugar de origem não há economia que as suporte. O dilema de manter a casa e ao mesmo tempo viver precariamente junto do local de trabalho não é resolvido, entre outras razões, porque se vê que políticas públicas de desencravamento, de ligação energia, água e comunicação valorizam a casa, mas não criam as condições económicas que fariam o dono regressar. Tem casa própria, mas vive mal noutra ilha por razões de incoerência nas políticas públicas.
Em Portugal dias atrás voltaram a criar uma secretaria de Estado da Habitação. A dinâmica económica exige políticas que vão ao encontro das necessidades de mobilidade de mão-de-obra no sentido de maior eficiência e também de criação de ambientes propícios à inovação. Uma política de promoção do arrendamento com as três vertentes de facilidade de financiamento, enquadramento fiscal e seguro das rendas vai ser posta em movimento pelo governo português. A par disso pretende-se uma intervenção pública na oferta da habitação que se aproxime dos níveis europeus de cerca de 12% e que em países como a França vai aos 15% e na Holanda atinge os 31% da oferta habitacional do país.
Quando se equaciona outra vez o problema da habitação em Cabo Verde, deve-se ter em devida conta, por um lado, o facto evidente dos fluxos migratórios no país e, por outro, as “chagas sociais” criadas nos centros urbanos das várias ilhas por décadas de políticas inadequadas no sector. Soluções devem ser encontradas que permitam às pessoas ter habitação condigna sem rendas pesadas, que promovam investimento privado na habitação para arrendamento, que desenvolvam o sector da construção civil e mantenham as actividades económicas locais competitivas e sustentáveis a prazo. A via a seguir é a de optimizar e tornar mais abrangentes os ganhos e não a de deixar o país com um peso ainda maior da dívida pública e sem solução à vista.   

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 820 de 16 de Agosto de 2016. 

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Privatizações na ordem do dia

O Governo, de repente, resolveu pôr as privatizações na ordem do dia. Aprovou uma resolução que estabelece que 23 empresas públicas ou participadas pelo Estado serão privatizadas ou cedidas em forma de concessão. Os objectivos, segundo a resolução, são o “empoderamento do sector privado nacional e estrangeiro”, a consolidação da economia e a criação de oportunidades em sectores-chave da economia. Estima-se na resolução que o possível encaixe das operações de venda seja de 10 milhões de contos apesar de, como diz o ministro das Finanças, o governo não estar à procura de receitas extraordinárias para confrontar o duplo problema do défice orçamental e da dívida pública. Como era previsível, as reacções das forças políticas e da sociedade não tardaram a aparecer ao que imediatamente se caracterizou como o segundo surto de privatizações depois do primeiro, que o MpD tinha protagonizado, na década de noventa.
Infelizmente, muitos processos em Cabo Verde, como o da privatização de empresas públicas nos anos 90, nunca são fechados nem beneficiam do olhar em retrospectiva que poderia justificá-los ou no mínimo contextualizá-los para melhor os compreender e retirar lições com vista à acção futura. Ficam cativos de narrativas que depois vão alimentar o arsenal dos partidos políticos nos seus confrontos e evitam que se avance na compreensão dos problemas do país e na construção da vontade colectiva para vencer os extraordinários desafios que se colocam. As privatizações nos anos noventa aconteceram em simultâneo com processos similares em vários outros países. Foi o momento histórico do abandono da economia estatizada para economia de mercado e por uma razão simples: além de serem apanágio de regimes autoritários e totalitários há muito que tinham levado à estagnação económica contrastando com a dinâmica das economias de mercado nos países livres e democráticos. Em Cabo Verde há quem fique colado a slogans de campanha do tipo “venda da terra” e perde de vista como, com a restruturação da economia nos anos 90, se elevou o potencial económico e o país cresceu a ponto de hoje o rendimento per capita se situar em 3000 dólares enquanto em 1990 não passava dos 898 dólares. 
Como em vários outros países que fizeram a transição para a economia de mercado, as privatizações inicialmente foram fundamentais para se desenvolver o sistema financeiro, para modernizar sectores-chave como telecomunicações, energia e água, transportes marítimos e aéreos e criar condições para a emergência de uma classe empresarial nacional capaz de se engrenar em cadeias de valor suportadas pelo investimento directo estrangeiro e voltadas para a satisfação da procura externa de bens e serviços. Depois dessa primeira fase estruturante, privatizações em geral acontecem para diminuir riscos fiscais de empresas públicas deficitárias, conseguir receitas extraordinárias quando em processo de consolidação orçamental ou para estrategicamente se conseguir ganhos de eficiência que beneficiem o conjunto da economia nacional. Em todos os casos é evidente que há resistências e as opções do governo podem não reunir consenso geral. A verdade é que particularmente para casos como o nosso de desemprego estrutural e de dinâmica económica muito aquém do necessário para o país prosperar há que tudo fazer para que a economia seja mais eficiente, mais produtiva e mais competitiva.
A questão do papel do Estado na economia nacional deve porém ser discutida com a devida profundidade. Nem o sector privado pode substituir o Estado em todas as situações nem os mecanismos do mercado conseguem resolver todos os problemas a contente dos consumidores, utentes e clientes no que respeita a preços e qualidade. De facto, há situações de mercado imperfeito e/ou de falha de mercado que exigem intervenção do Estado para suprir deficiências ou preencher eventuais vazios. A posição nestas matérias não deve ser ideológica, mas sim realista e pragmática. Aliás, realismo e pragmatismo e um elevado senso de oportunidade e timing devem presidir a actuação do Estado num país como Cabo Verde de diminuta população, mercado fragmentado, deficiência de transportes e relativamente remoto em relação aos grandes mercados globais. Agindo de outra forma, continua-se simplesmente a acumular perdas nos muitos take offs, novas largadas e novos paradigmas que os sucessivos governos insistem em proclamar, mas que acabam por revelar-se mais como ilusionismo do que algo concreto e sustentável.
A partir daí não tarda muito que a factura acabe por mostrar-se numa dívida pública pesada, de  difícil sustentabilidade e que deixa o país sujeito aos rigores de eventuais ajustamentos estruturais. Na última reunião do GAO os parceiros vieram lembrar que a dependência da ajuda externa tem custos. Os parceiros com o Banco Mundial à frente declararam que não avançam com ajuda orçamental enquanto a situação da TACV não fosse completamente resolvida. Não consideraram suficiente a resolução com a entrega à Binter do serviço doméstico da TACV e querem também que se privatize a TACV internacional para depois decidir a retoma da ajuda orçamental. Na semana passada, em sede de comissão de inquérito parlamentar ficaram explícitos os custos da iniciativa que, em 2010, juntou o programa Casa para Todos ao projecto do Novo Banco nas vésperas das legislativas. Provavelmente terá trazido vantagens eleitorais ao então governo mas são os outros que inevitavelmente vão ter que pagar, de uma maneira ou outra as consequências de iniciativa.
Liberalização económica, privatizações e facilidades de crédito são muitas vezes utilizadas para se soltar energias, ambições e vontade de sucesso no sentido de se construir no país uma máquina poderosa de criação de riqueza a médio e longo prazo. Na consecução desses objectivos, esses instrumentos não são porém suficientes. Várias acções, designadamente de acesso aos mercados, de política virada para a exportação, de melhoria dos sinais de contexto e de criação de competências académicas na população juvenil têm de ser tomadas para se ter sucesso. A grande tarefa é aperceber-se que não têm todos o mesmo impacto e o potencial efeito de cada um só se revela no momento certo quando devidamente encadeado e maximizado.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do EXPRESSO DAS ILHAS nº 819 de 9 de Agosto de 2016. 

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Perigos da pessoalização da política

No fim do ano parlamentar vê-se que divergem as opiniões sobre o estado da Nação mas em relação ao estado do Parlamento a posição é quase unânime que não está bem. Os trabalhos na plenária parecem desenvolver-se num registo quase caótico com múltiplas intervenções de deputados em todas as matérias e interrupções sucessivas com interpelações à mesa e defesas de honra. Demasiadas vezes funciona-se como se não houvesse uma estratégia de grupo parlamentar para, de forma mais eficaz e com economia de tempo, debater as questões. Passou a ser costume os sujeitos parlamentares dirigirem-se directamente aos que escutam na rádio ou assistem pela televisão num esforço de se apresentarem como representantes de interesses que supostamente estariam a ser postos em causa pelos argumentos dos colegas de outras bancadas ou como porta-vozes de recados enviados pelo eleitorado. Nestas circunstâncias é difícil para a Mesa da Assembleia Nacional mostrar que está efectivamente em controlo dos trabalhos. Não estranha que tenham acontecido ao longo deste ano parlamentar situações prejudiciais para a imagem do Parlamento e para a legalidade dos seus actos como as de dar como aprovadas matérias sem a maioria regimental exigida ou sem os votos de todos os deputados presentes na sala de sessões no momento de votação.
As reacções à esta percepção geral de fragilidade do Parlamento nesta legislatura têm levado vários observadores a propor alterações no sistema eleitoral e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidatos a deputados. Outros vão mais longe e, além de pedirem a adopção do sistema uninominal em substituição do proporcional actualmente existente, querem acabar com a disciplina partidária que para eles tem impedido que os deputados sejam realmente representantes do povo. Para outros observadores, o problema estaria com os partidos políticos que monopolizam a vida política, alimentam a crispação e estando no governo vêem o adversário como quem não tem em conta os interesses do país e funciona numa lógica de “quanto pior, melhor”. Curiosamente, quem faz essas propostas não tem a preocupação de trazer à discussão os exemplos actuais e muitos outros do passado onde essas soluções foram adoptadas e as consequências em termos de configuração do quadro partidário e de estabilidade governativa, que se seguiram à sua implementação, foram desastrosas. Pode-se criticar muitos aspectos da chamada democracia de partidos, mas a história das democracias depois da segunda guerra mundial mostra como ela foi crucial para a estabilidade nas décadas de prosperidade quase ininterrupta e sem precedentes que se seguiram.
Percebe-se facilmente que parte desta reacção deriva da chamada crise de representação que aflige hoje muitas democracias avançadas na Europa em que as pessoas vêm como os seus governos são ultrapassados por forças exteriores de natureza económica criadas pela globalização e também por outras de natureza política no quadro da União Europeia. Outra parte dessa atitude porém tem uma base na realidade nacional e provém da reacção às décadas de regime autoritário no país que deixaram uma desconfiança profunda em relação à democracia representativa e justificam a postura ainda nostálgica de “democracias revolucionárias” que encontra alguma satisfação em privilegiar formas de democracia participativa sobre a representativa. Tendo isso como pano de fundo e no actual ambiente dominado pelo médias e com a internet e acesso às redes sociais a todo o tempo tudo parece convergir para que se caia na chamada pessoalização da política em que a acção política em vez de levar ao debate de temas e ideias focaliza-se no ataque pessoal. De facto, fica mais fácil e mais imediato mobilizar sentimentos e despertar emoções e paixões do que engajar-se na discussão de opções políticas num quadro do pluralismo em que se assume que todos procuram o melhor para o país.
A focalização nos políticos e em particular na sua imagem e notoriedade vem-se verificando progressivamente de algum tempo para cá na política cabo-verdiana. Em certos aspectos não é muito diferente do que se passa noutros países a braços com crises diversas incluindo a de representação, não identificação com as elites e protagonismo individual mais acentuado nas redes sociais. É um fenómeno que vem acompanhando o recrudescer do populismo nas democracias ocidentais com as consequências mais conhecidas do Brexit, da eleição de Donald Trump, reconfiguração dos partidos em Espanha com o Podemos e Ciudadanos e o colapso dos partidos franceses nas últimas eleições. Se nesses países de democracia consolidada tem-se contado com a resiliência das instituições e a influência dos órgãos de comunicação social e a presença de uma sociedade civil autónoma para conter os efeitos mais nefastos do fenómeno, não se pode dizer o mesmo nas novas democracias onde todos esses ingredientes essenciais ainda estão em estado embrionário. Em Cabo Verde foram também sentidos os ventos fortes do populismo no período pré-eleitoral tanto em movimentos da sociedade civil (MAC #114) como na dinâmica dos grandes partidos. Acabou por afectar profundamente a escolha de candidatos a deputados com as consequências já conhecidas para além de condicionar a relação que no pós-eleições viriam estabelecer entre os órgãos de soberania todos eles centrados nas pessoas.
Se não for devidamente contida, a pessoalização da política tem os efeitos que se conhecem, por exemplo, em fragilizar as instituições, esvaziar o debate público e promover candidatos a autocratas. A luta contra os efeitos nefastos da partidarização da política não deve conduzir à pessoalização da política que se nutre do populismo para manter a imagem e garantir níveis elevados de notoriedade. Cabo Verde é uma democracia ainda por consolidar e neste ano do vigésimo quinto aniversário da Constituição 1992 deve estar alerta para todos os perigos que podem ameaçar a democracia representativa, a única que historicamente garantiu a liberdade e abriu caminho à prosperidade. Os inimigos são muitos e, neste momento, no mundo inteiro, o populismo, em suas várias formas, é o pior de todos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 818 de 02 de Agosto de 2017