segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Imunidades

Volta e meia a questão das imunidades dos deputados salta para a ribalta. Normalmente acontece na sequência de situações em a oposição e o governo se chocam nos habituais processos de fiscalização política. Deputados exigem responsabilização por actos ou omissões do governo e este ou se escusa a dar informações ou procura passar a culpa para outrem. O impasse no debate cria um ambiente de confrontação em que não poucas vezes se procura saída ameaçando com acção judicial por razões de injúria e calúnia. Daí é um passo para se desafiar o deputado a levantar a sua imunidade ou é ele próprio num gesto de bravata a oferecer-se para deixar cair a sua imunidade. Parece desses filmes repetidamente vistos que já se conhece o desfecho: perde a instituição Parlamento, enquanto sede do pluralismo e do contraditório; ganha quem não quer a responsabilização e fiscalização efectiva do governo.
Como bem dizem os constitucionalistas “as imunidades dos deputados são instrumento objectivo da defesa do próprio Parlamento. Os deputados não podem renunciar a elas; o Parlamento não pode dispensá-las”. Isso quer dizer que o que se vem assistindo nos últimos meses com ameaças de acção judicial a deputados por causa do Fundo do Ambiente ou por causa da TACV não passa de teatro político. A Constituição é clara a estabelecer que os deputados não respondem civil, disciplinar ou criminalmente pelos votos e opiniões emitidos no exercício do seu mandato. A Assembleia Nacional sabe disso e não levanta a imunidade. Os governantes também sabem disso e mais sabem que a principal razão para a existência do privilégio da imunidade é precisamente para evitar que quem governa e exerce o poder abuse de meios e instrumentos ao seu alcance para impedir a fiscalização, calar os adversários e esvaziar a democracia pluralista.  
Por tudo isso não deixam de ser patéticas as recentes afirmações da presidente do PAICV, o partido que suporta o governo, transcritas na comunicação social em que afirma “que já é altura de acabar com a imunidade parlamentar no país para responsabilizar os políticos pelo que dizem ou fazem”. A Dra. Janira Hopffer Almada parece esquecer que na democracia é essencial a prestação de contas e a responsabilização política de quem governa. Os “políticos”/governantes com promessas para serem cumpridas e objectivos por atingir durante o mandato não podem se encontrar na posição de impedir que os “políticos”/deputados os responsabilizem pelo que dizem ou fazem. As imunidades foram instituídas desde dos primórdios das experiências democráticas para evitar que nunca tenham esse poder de calar os representantes do povo e de, por essa via, reinarem sem controlo e sem responsabilidade. Indicar que “irá fazer uma proposta neste sentido proximamente aos órgãos do seu partido” é muito grave.
As eleições legislativas já estão marcadas para 20 de Março. A tensão da campanha eleitoral já se faz sentir e tende agravar em ambiente de fim de mandato. O governo tem dificuldade em encobrir deficiências e insuficiências em certos sectores – caso gritante da TACV – e cai na tentação de resolver situações de última hora em termos de leis, medidas de política e nomeações que podem configurar interesses de natureza preponderantemente partidários e eleitoralistas. A oposição tem o direito e o dever de estar particularmente atenta à actuação governamental e assegurar-se que as eleições se realizarão de forma livre sem condicionamento de qualquer espécie. Particular atenção deve ser dada à valorização do órgão Parlamento que saíra das eleições e do papel dos seus titulares que serão eleitos no dia 20 de Março. O futuro da democracia cabo-verdiana passa por aí e há que dar combate aos detractores da democracia representativa.
  Editorial do jornal expresso das Ilhas de 23 de Dezembro de 2015

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A Cimeira de Paris e o futuro

No domingo passado, dia 13 de Dezembro, chegou-se a um acordo global em matéria do clima e da necessidade de acção coordenada de todos os países para suster mudanças climáticas e evitar consequências catastróficas para o planeta nas próximas décadas. Estabeleceu-se que a temperatura da Terra nos próximos cem anos não deve ir além de 1,5º C acima do que tinha sido a média no período pré-industrial. A disponibilidade nos últimos dias em fixar o limite mais restrito de 1,5º C em vez de 2º C que já se tinha dado por consensualizado deu um sinal da seriedade com que a questão climática passou a ser assumida por todos. Para o desfecho feliz das negociações contribuiu extraordinariamente o grupo de pequenos estados insulares, entre os quais Cabo Verde, que, devido às suas fragilidades intrínsecas, mais expostos estarão no futuro próximo a fenómenos climáticos extremos (secas, cheias e ciclones) e a subidas perigosas do nível médio das águas do mar.  
Anteriormente, numa cimeira realizada em 1997, na cidade de Kyoto, no Japão, foi tentada uma abordagem global para a questão climática. Data daquela época a proposta do mercado global dos créditos de carbono. Não resultou. Subsequentemente outras dificuldades impediram a materialização de uma vontade efectiva para fazer face ao fenómeno de aquecimento global. Mais recentemente, em 2008, na cimeira de Copenhaga, nem o então recém-eleito presidente Obama conseguiu mover significativamente os cépticos quanto à realidade das mudanças climáticas e dissuadir países emergentes como a China de usar meios e processos poluentes como forma mais rápida de crescer e manter baixo os custos das suas exportações.
Sete anos depois os tempos são outros: o preço do petróleo caiu para metade, a China está em processo de mudança do seu modelo de crescimento e os avanços tecnológicos melhoraram a eficiência energética e tornaram as energias renováveis, em particular a solar e a eólica, competitivas com as convencionais. Em 2014, já se tinha verificado a convergência de posições entre os Estados Unidos e a China para limitarem as suas emissões de gases produtores do efeito de estufa que então se situavam nos 45% do total. Apesar dos avanços feitos, a assinatura, em Paris, do acordo sobre as mudanças climáticas pelos 195 países não deixou de surpreender. Constitui, de facto, um acto de extraordinária importância não só pelo consenso gerado à volta de uma questão crucial para o planeta e para o futuro da humanidade como também pelo impacto transversal que, espera-se, irá ter sobre o modo de vida, as opções de consumo e os comportamentos das pessoas, das empresas e dos países.
A partir de agora, pode-se começar a visionar a economia do futuro. Para já, não será uma economia em que o consumo de combustíveis fósseis terá a mesma expressão dos últimos séculos desde a revolução industrial. Certamente haverá uma grande transformação particularmente nos meios de transporte: os motores eléctricos tornar-se-ão dominantes e os de combustão interna serão de uma eficiência extrema e outras formas de produção de energia irão substituir as actuais. A relação entre os países produtores do petróleo e os países consumidores mudará com consequências económicas e geopolíticas importantes.
Muitas oportunidades para inovações tecnológicas e para a criação de novos negócios naturalmente surgirão para responder aos novos gostos e às novas sensibilidades. Quem puder antecipar as principais tendências e posicionar-se, para melhor as aproveitar, terá a ventura de crescer e desenvolver-se com a nova forma de estar que a humanidade terá que adoptar para que o seu planeta continue habitável por muito tempo. Cabo Verde, como um dos pequenos estados insulares que mais cedo poderá ser afectado pelas mudanças climáticas, deverá concentrar-se em transformar fraquezas em vantagem, inovando na forma como lidar com as novas exigências. Como sempre, é fundamental saber investir nos seus recursos humanos e criar um ambiente que alimente a criatividade, favoreça a iniciativa e premeia o mérito.
     Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 16 de Dezembro de 2015

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Dia da Rádio ou dia da supressão da liberdade de expressão

Uma resolução do Governo datada de 4 de Junho de 2015 resolveu fazer do 9 de Dezembro de 1974, o dia da tomada da Rádio Barlavento, o Dia Nacional da Rádio. Considerando que a justificação dada para se criar dias da comunicação social foi a de “destacar o papel dos seus órgãos na promoção do pluralismo, na difusão de informação credível e na acção fiscalizadora no quadro democrático” não deixa de ser muito estranha essa decisão. A tomada da Rádio Barlavento não foi motivada em absoluto para promover o pluralismo, muito menos para difundir informação credível ou para construir alguma crítica, controlo ou fiscalização do poder do Estado. Na prática, visou-se implantar uma voz única no país, inaugurou-se uma nova era em que a propaganda substituiu em boa parte a informação fidedigna e retirou-se qualquer hipótese de visão crítica sobre a governação do país.
A ocupação e a subsequente utilização das instalações da Rádio Barlavento para passar mensagens do PAIGC aconteceu num contexto especial. Não foi um acto isolado. Enquadrava-se entre um dos muitos actos revolucionários que tiveram lugar em Dezembro de 1974 que visavam consolidar o poder do PAIGC com exclusão de todos os seus adversários políticos. Forças políticas como a UDC e a UPICV sofreram ao longo do processo perseguições, prisões e deportação para fora do país. A sociedade civil entrou em processo de colapso quando as suas associações e os meios que utilizava para se afirmar como autónoma e se comunicar com o país foram expropriados e consolidados em órgãos do Estado a falar numa voz única ditada por um centro político-partidário todo-poderoso e sem qualquer memória do que tinha sido no passado.
 Neste sentido, a tomada da Rádio Barlavento significou também o fim da iniciativa e da criatividade individual que desde os anos quarenta vinha-se consolidando nas experiências da Rádio Clube Mindelo, da Rádio Barlavento e da Rádio Clube da Praia. Só muito mais tarde, quinze anos depois, com a liberdade e democracia implantadas nos anos 90 o país voltaria a respirar e novas iniciativas, protagonismos e oportunidades das pessoas se interagirem livremente através da rádio viriam a tornar-se possíveis.
Certamente que o governo não ignora a enorme carga simbólica que a data carrega. Quando insiste nela é porque tem um objectivo concreto a atingir ou, pelo menos, uma provocação a fazer. Na resolução chama a atenção para “o novo percurso de radiodifusão” que se teria iniciado com a tomada da rádio. Esse percurso, como se sabe bem, só pode ter sido o da estatização da rádio, uma via que nos tempos de hoje, sob a égide da constituição democrática e liberal de 1992, dificilmente os governos poderão sustentar e justificar.
 A Constituição em matéria de rádio e televisão requer a existência de um serviço público. Não o exige para a imprensa escrita porque a facilidade de acessos e os investimentos necessários estão ao alcance de indivíduos e grupos. A verificar-se uma queda rápida nos custos de se criar uma rádio e uma televisão, como vem acontecendo pelo mundo fora, é natural que cada vez menos se justifique um serviço público dedicado e que a expressão da diversidade e do pluralismo nas sociedades democráticas seja conseguido simplesmente pelas vias privadas. Em várias democracias consolidadas há um debate forte a esse respeito. No caso de Cabo Verde a dificuldade maior na implantação de órgãos privados capazes de cumprir esse objectivo está na pequenez do mercado publicitário. O facto de o sector público da rádio e da televisão procurar ostensiva e agressivamente melhorar o seu peso e quota neste mercado não é um bom sinal. Pode significar que não se quer realmente que iniciativas privadas na rádio e televisão se ponham de pé e consolidem a sua posição de contribuir para que os cidadãos satisfaçam de forma livre e aberta o seu desejo de informar e de ser informado.

 A liberdade de expressão é a rainha das liberdades. Suprimi-la leva à morte de todas as outras. A tomada da Rádio Barlavento, a 9 de Dezembro de 1974, significou calar vozes críticas e vozes contrárias. Sabemos o que é que aconteceu nos quinze anos que se seguiram: a opressão assentou arraiais no país. Por isso não é uma data que tenha cabimento em democracia. Mal andou o governo em consagrá-la como o Dia Nacional da Rádio em Cabo Verde.  

  Editorial do jornal expresso das Ilhas de 9 de Dezembro de 2015

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Entre o discurso e a prática

O governo fez aprovar na Assembleia Nacional algumas alterações à lei dos benefícios fiscais que tinha entrado em vigor em 2013. A ministra de Finanças justificou a proposta de lei com o argumento, entre outros, que irá beneficiar mais de 80% das pequenas e microempresas. A reacção das câmaras de comércio foi rápida e contundente. A de Sotavento foi categórica em afirmar que “os resultados da aplicação da lei foram nulos”. A de Barlavento assegurou que as alterações agora apresentadas “não estimulam o investimento”. 
A racionalização do sistema de benefícios fiscais serve fundamentalmente dois propósitos: permite, por um lado, que o Estado tenha imediatamente mais receitas com a eliminação dos benefícios fiscais já demostrados desnecessários e também daqueles outros cuja lógica para a sua criação perdeu-se há muito no tempo. Por outro lado, permite criar estímulo a actividades em sectores chaves da economia na perspectiva de atrair investimento externo, ganhar mercados, conseguir economia de escala e abrir-se para a inovação de produtos e processos. A ideia é o Estado perder inicialmente em receitas com os benefícios que estender à actividade económica e ganhar a prazo com mais vencimentos a serem tributados, mais lucros das empresas a serem declarados e mais IVA recebidos das múltiplas transacções em ambiente de crescimento acelerado e de baixo desemprego.
Naturalmente que para se obter melhor efeito dos benefícios fiscais a proposta de lei devia dirigir-se aos sectores com maior potencial de crescimento e de empregabilidade. Exportações e turismo saltam logo à vista. A realidade porém é muito diferente. Nota-se por exemplo que, quando instada a exemplificar aplicações da lei, a ministra das Finanças escolhe o caso da senhora do Paul que queria adquirir um fogão e um frigorífico para as suas produções caseiras de doces, frutas cristalizadas e licores. Ora, não é concentrando os benefícios fiscais nos sectores não transaccionáveis que se vai conseguir que os seus efeitos multiplicadores tenham o maior impacto na economia nacional.
Aliás, uma das supostas vantagens que a nova lei tem em relação às leis anteriores é de não distinguir entre investidor nacional e investidor estrangeiro. Mas é um falso problema até porque o quadro das leis de investimento criado nos anos noventa da estruturação da economia do mercado serviu bem até ser substituído pela actual lei de 2013. Grandes investimentos na indústria e no turismo foram feitos nesse quadro. A questão central é se o governo deve de forma privilegiada incentivar o sector de bens e serviços transaccionável ou não. Sabe-se das experiências de outros países que é dinamizando esse sector que o país tem possibilidade de crescer rápido e criar um número de postos de trabalho que efectivamente baixe o desemprego para níveis aceitáveis. Portanto, é uma questão de opção política do governo determinar qual dos sectores quer efectivamente incentivar: o transaccionável ou não transaccionável. De onde vem o capital, se do nacional ou do estrangeiro não interessa realmente.
Um outro factor que contribuiu também para a falta de resultados é a alta rotatividade dos ministros da Economia – sete ministros numa década e meia, nos governos do PAICV. Dificilmente se conseguiu a articulação necessária com outras medidas de política para ter resultados palpáveis. Os sucessivos ministros não eram pesos pesados da política no seio do governo e face à rigidez das posições vindas da ministra das Finanças dificilmente podiam fazer prevalecer as suas posições. A postura considerada pouco dialogante da ministra das Finanças por diversos representantes do sector privado certamente que não ajudou.
Porém, a maior dificuldade poderá ser de natureza ideológica. Para os grandes investimentos em geral de capital estrangeiro foram criadas “barreiras” que inicialmente eram de 20 milhões de contos e sucessivamente passaram a 10 milhões e agora a 5 milhões de contos para ter acesso a benefícios fiscais. Para as pequenas e microempresas não há preocupação real em saber de onde vem o investimento e disponibilizam-se benefícios fiscais sem verificar a dimensão dos eventuais ganhos na economia nacional. A preocupação com o crescimento rápido da economia não parece ser real. Até agora as autoridades têm-se mostrado confortáveis com o crescimento anémico que desde 2011 o país tem registado. Quando confrontados com a quase estagnação, culpam a crise mas mantêm o mesmo rumo que até agora lhes permitiu tirar dividendos eleitorais.
   Editorial do jornal Expresso das Ilhas do dia 2 de Dezembro de 2015