segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Estabilidade garante-se com maioria coesa

 

A discussão e a aprovação na generalidade do orçamento do Estado vai acontecer durante os trabalhos da Assembleia Nacional que se iniciam hoje, dia 24 de Novembro, com muita controvérsia pelo meio.

A proposta de lei do OE 2022 foi apresentada ao público em Outubro e tem sido alvo de debate público acalorado tanto pelo suposto impacto que teria tido nos resultados das eleições presidenciais como pelas reacções negativas recebidas de vários sectores da população e operadores económicos. A intenção do Governo de aumentar impostos, em particular de elevar a taxa do IVA de certos produtos de 15 para 17%, não foi digerida muito bem pela generalidade da população que desde Setembro/Outubro já se vê a braços com aumentos gerais dos preços, em particular dos preços de combustíveis, de energia e de transporte. A questão à volta dos impostos ganhou traços mais complicados quando alguns deputados da maioria deixaram transparecer, em declarações à imprensa e nas redes sociais, posições não convergentes com as propostas do governo de aumento do IVA.

No espírito de alguns estar-se-ia a desenhar algo similar ao que aconteceu em Portugal algumas semanas atrás com a não aprovação do Orçamento do Estado e subsequente dissolução do Parlamento pelo Presidente da República. A parecer confirmar isso, veio na semana passada o acto insólito do Primeiro ministro, acompanhado do ministro de Finanças e da ministra de Assuntos Parlamentares, ir ao palácio presidencial apresentar o orçamento do Estado ao Presidente da República. Logo de seguida, o Presidente da República chamou para consultas os partidos com representação no parlamento. Das declarações dos dirigentes partidários à saída, ficou-se a saber que havia abertura para diálogo em sede de discussão orçamental e em matéria de elevação do nível da dívida interna que, por duas vezes, tinha sido presente ao parlamento e não passou. Do protagonismo inusitado do Presidente da República ficou patente a fragilidade negocial do Governo junto da oposição e dúvidas aumentaram quanto à própria coesão da maioria parlamentar.

Em sistemas de governo de pendor parlamentar, esse tipo de intervenção do Presidente da República só acontece em situações extremas como a que se verificou recentemente em Portugal em que um governo minoritário se viu sem o apoio dos correlegionários da chamada geringonça para aprovar o orçamento do Estado. Aí, sim, depois de avisar para as consequências de não aprovação do instrumento fundamental da governação, o PR agiu em conformidade. No caso de Cabo Verde, não parece que o espaço para as conversações com as forças da oposição tinha sido realmente esgotado. Só há pouco tempo é que se trouxe verdadeiramente para atenção das pessoas e dos protagonistas políticos a situação grave da dívida pública, os efeitos nos preços derivado do aumento distorcido da procura global de produtos, acompanhado de estrangulamentos logísticos graves nos transportes e, ainda, o enorme peso que irá representar o serviço da dívida a partir de 2022 com um aumento de mais 9 milhões de contos. Era só uma questão de tempo para, em sede parlamentar, se chegar a entendimentos e a compromissos para se ultrapassar a actual situação.

Por outro lado, não se compreende que, inadvertidamente ou não, se queira passar a ideia de uma maioria fragilizada. Como se pôde vislumbrar, há seis meses atrás, na aprovação da moção de confiança que se seguiu à apresentação do Programa do Governo, a maioria parlamentar é aparentemente sólida e não se vê razões para que em outros momentos cruciais para a garantia da continuidade do governo, como aprovação de Orçamento de Estado e votação de moções de censura ou de confiança, não vote em conformidade, mesmo que noutros momentos um ou mais deputados expressem desacordos pontuais. A acção do governo, enviesando desnecessariamente o processo de discussão e a aprovação do orçamento – que iniciado no Governo, vai ao Parlamento e só depois chega ao Presidente da República para promulgação –, diminui o papel do Parlamento e abre o caminho para uma reconfiguração das relações entre órgãos de soberania que desnecessariamente pode beliscar a estabilidade política que todos dizem prezar.

Grande parte do debate durante a campanha eleitoral para as presidenciais incidiu sobre a questão da relação do Presidente da República com o Governo. Todos os candidatos, com excepção do candidato abertamente presidencialista, professavam colaborar com o governo e não ser um factor de instabilidade política no país. A ênfase nesta questão às vezes até parecia excessiva porque parecia confundir lealdade institucional que deve existir entre órgãos de soberania com algum tipo de colaboração em que a função do PR de árbitro e moderador do sistema saía de alguma forma diminuída. Curiosamente, o que se vem notando nas últimas semanas é precisamente o contrário. O Governo dá sinais de fragilidade, de indecisão e até subserviência enquanto o Presidente da República não perde tempo em deixar o país saber o que pensa dos problemas e desafios que está a enfrentar neste momento de crise. O problema é que para além da imagem projectada por uns e outros, o sistema determina quem, de facto, tem os instrumentos para governar e é responsável pelos resultados obtidos.

O sistema de governo é mais eficaz, com benefícios para todos, em termos de liberdade e democracia, de capacidade de resolução dos problemas e ultrapassar vulnerabilidades e de criação de condições para prosperidade futura quando os seus titulares cumprem precisamente o que lhes compete. Naturalmente que há sempre jogo político e tensões que se desenvolvem no processo. Se tudo for percebido como feito em nome do interesse comum, credibilizam-se as instituições e valorizam-se ainda mais o pluralismo e a separação de poderes pelas vantagens a todos os níveis que trazem para o país, em particular a estabilidade política que tem caracterizado a democracia cabo-verdiana desde os seus primórdios há trinta anos atrás. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1043 de 24 de Novembro de 2021.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Não adiar o futuro com divisões

 

Pela primeira vez num acto solene de primeira grandeza como é o de investidura do presidente da república o discurso do presidente eleito foi proferido num modo bilingue, parte em português, parte em crioulo. Ninguém ficou grandemente surpreendido considerando que há muito que o uso da língua materna cabo-verdiana pelos titulares dos órgãos de soberania é corriqueiro no país. O PR, o PM, os ministros e os deputados em várias circunstâncias fazem declarações, debatem no parlamento e dirigem-se às pessoas e ao país em crioulo, usando as diferentes variantes conforme a audiência ou a origem do orador. Os cidadãos também podem tratar os seus assuntos com administração pública e depor nos tribunais em crioulo. A língua é falada de forma generalizada no país por todos os estratos sociais e é um instrumento fundamental de expressão da alma cabo-verdiana particularmente na sua música, em todos os géneros cultivados nas ilhas e nas comunidades no estrangeiro. Se para alguns ainda houvesse algum sentimento que o crioulo era oficialmente discriminado seria de esperar que com esse acto do novo PR, num momento alto da vida da república, tal dúvida fosse completamente dissipada.

Estranhamente não é o que aconteceu. Em vez da acalmia dos ânimos num momento único que devia ser de união, o que se seguiu foi o recrudescer da militância em prol de uma oficialização que supostamente estaria a ser preterida. De facto, o artigo 9º da Constituição da República sob a epígrafe línguas oficiais estabeleceu desde 1999 que todos os cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las. Também determina que o Estado promova as condições para a oficialização da língua materna a par com a língua portuguesa, o que evidentemente implica que tenha escrita aceite por todos. Ou seja, está-se a perseguir um fantasma, visto que a oficialização é real, como o seu uso normal nos mais diferentes actos deixa transparecer, em vez de concentrar na criação de condições para se ter a língua escrita. Até parece que convém excitar paixões apontando exemplos de discriminação, identificando vítimas e alimentando ressentimentos em vez de se estimular os impulsos e sentimentos positivos de perseverança, criatividade e espírito de união necessários para a realização prática das condições exigidas pela constituição.

Não mais existindo razões reais para continuar a pressionar o sistema político no sentido da oficialização, para além da vontade de uns de se mostrarem “mais puros e autênticos” à custa de adversários fictícios, o foco desvia-se para o sistema de ensino. Não se tem a língua escrita padronizada, mas quer-se que seja ensinada nas escolas e liceus do país. Não há professores formados nem se produziram manuais, mas tudo aponta que as aulas para os alunos do secundário a partir do 10º ano vão começar no próximo ano lectivo. O que, segundo declarações feitas na TCV, no domingo dia 14, por membros do governo e outras personalidades, parece ser uma decisão assente, curiosamente ainda não foi levada para discussão e aprovação no órgão próprio, no Conselho de Ministros. Também não se sabe se mais tempos lectivos vão ser adicionados aos alunos ou se se vai subtrair de disciplinas fulcrais o tempo para leccionar a língua materna e nem se conhecem os outros custos tangíveis e intangíveis a incorrer com a iniciativa. Entretanto, para muitos pais apreensivos, observando de fora esta ofensiva militante que já vem de longe, só lhes resta, se tiverem sorte e meios, procurar outras escolas com outro currículo e outra gestão como, aliás, vem acontecendo há vários anos.

Todo este conflito fictício em que o crioulo é apresentado como uma língua discriminada tem tido custos pesadíssimos que estão à vista de todos, mas que são ignorados como, aliás, muitas outras coisas no país. Posto em confronto de natureza identitária com o português, torna-se num sério obstáculo à aprendizagem afectando transversalmente a qualidade do ensino em Cabo Verde. Ninguém, porém, parece preocupado com o facto dos enormes investimentos no sistema educativo não trazer os retornos desejados. O facto de se exigir aos estudantes cabo-verdianos que vão para universidade em certos países lusófonos prova de proficiência no português não parece ser motivo de preocupação, nem tão pouco o facto de entre os países de expressão portuguesa serem os cabo-verdianos a ficar para trás no domínio da língua com prejuízo para a sua empregabilidade entre os emigrantes em Portugal. Para quem alimenta este conflito o que interessa são os reflexos da polarização em outras disputas políticas e culturais pois, fazendo muitos deles parte de uma elite que envia os filhos para as melhores escolas, não são prejudicados com as consequências. Antes pelo contrário, consolidam a sua posição.

Cabo Verde tem ganho uma grande reputação pela sua estabilidade política na democracia ao longo dos últimos 30 anos. Para essa estabilidade contribui extraordinariamente o facto de Cabo Verde ser um povo e uma nação unido pela cultura, pela língua e por um destino comum no decurso de séculos e em condições adversas dentro de um império colonial. É fundamental não permitir que esse ganho extraordinário seja diminuído com divisões que opõem ilhas e regiões do país numa luta por recursos, com importações de preconceitos de raça e de cor de há muito sem sentido no país em termos sociais, económicos ou políticos e com questões identitárias desconhecidas para uma gente de há muito imbuída de uma consciência de nação. Aprecia-se a riqueza que se tem quando se observa o desastre terrível que se abateu sobre a Etiópia, um país que estava em pleno progresso e um exemplo de sucesso em África, por causa de conflitos étnicos. Por outro lado, há que ter em atenção que a democracia, porque tem na sua base a liberdade e o pluralismo, pode na sua dinâmica levar a polarizações, impasses e mesmo ao extremar de posições com base em conflitos políticos, sindicais e outros. Manter a unidade de propósitos em questões fundamentais evitando fractura divisivas e artificiais é essencial para se beneficiar da dinâmica democrática e para fazer avançar o país sem que se incorra no perigo de paralisia e regressão que podem advir de instabilidade política com impacto duradoiro nos domínios económico e social.

No mundo de hoje com as grandes crises, a pandémica e a económica e social, e os grandes desafios, a transição energética e as alterações climáticas, é de maior importância que se construa nas sociedades democráticas um capital de confiança traduzido na confiança nas instituições, no alto grau de civismo e no foco no interesse comum. Países com esse capital conseguem com mais facilidade e mais solidariedade enfrentar as dificuldades presentes como os surtos de covid-19, as resistências à vacinação, os altos preços de energia, a inflação que vai fazer subir o custo de vida e diminuir o poder de compra e as dificuldades em conseguir emprego de qualidade. Central para se conseguir esse capital de confiança vai ser o comportamento dos governantes e da classe política em geral. Mais do que nunca, o país precisa de uma liderança de qualidade, competente e comprometida com o interesse comum e que não se deixa levar pelo caminho fácil, mas custoso do ilusionismo. Do presidente da república, órgão singular e suprapartidário, espera-se que aja para reforçar a unidade da nação para que a dinâmica da governação democrática mostre os seus frutos sem perigo de divisões que criam ineficiências, distracções e bloqueios e deixam o futuro permanentemente adiado.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1042 de 17 de Novembro de 2021.

 

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Fará história quem oferecer nova narrativa

 

O novo Presidente da República, doutor José Maria Neves, no seu discurso ontem na cerimónia de investidura disse a dado passo que Cabo Verde “vive uma situação de crise a qual foi revelada e agravada pela pandemia cujos efeitos têm sido extensos e profundo”.

Tais efeitos vêem-se, segundo ele, nos níveis da dívida pública e do défice público nas altas taxas de desemprego, nas manchas significativas de pobreza e na acentuada desigualdade e exclusão social. É um facto que a situação do país piorou com a covid-19 como, aliás, todos os países do mundo, mas já não é tão claro que a crise em que se encontra tenha sido revelada em 2020 pela pandemia.

Provavelmente já vem de longe quando, na sequência de grandes investimentos nos princípios da década, se seguiram anos de quase estagnação económica com médias de crescimento anual de 1% do PIB. Mostrou a cabeça com clareza quando a seca de 2017-2019 revelou as vulnerabilidades do país e a precariedade de vida das populações, particularmente no mundo rural, não obstante os programas multimilionários de luta contra a pobreza implementados ao longo dos anos, designadamente o do Banco Mundial, de 117 milhões de dólares, iniciado em 2005. A conjuntura económica externa favorável dos anos antes da pandemia terá ajudado a camuflar a situação com crescimento a aproximar-se à volta dos 5%, mas os problemas de fundo da dívida pública elevada, da falta de diversificação da economia, do desemprego e da crescente desigualdade social já lá estavam. O que leva a pensar que a crise em que se encontra o país tem raízes mais profundas e que não deriva simplesmente de opções políticas recentes do governo.

Saber identificar essas causas mais profundas que mantêm Cabo Verde vulnerável e as suas populações em situação de precariedade profunda após 46 anos de independência é a tarefa urgente que se impõe neste momento. Já se conhece parte das consequências da covid-19 mas não se sabe ainda até onde pode ir considerando que a covid-19 ainda não está sob controlo e não se consegue prever o quanto vai afectar a economia global nos próximos tempos. Concomitantemente, está-se perante outros desafios como o da transição energética e o das alterações climáticas cujas consequências de omissão ou de uma má abordagem ninguém realmente conhece e que podem ser simplesmente catastróficos. Para se poder navegar no meio de tantas incertezas, o mínimo que se deve fazer é procurar ter uma visão realista sobre o país e mobilizar vontades para ultrapassar os obstáculos que até agora impediram o país de pôr o seu desenvolvimento em bases mais seguras, mais sustentáveis e mais esperançosas para toda a gente.

Do presidente da república, que é o garante da unidade nacional, espera-se que tenha um papel central na promoção do diálogo necessário para se conhecer os constrangimentos que impedem o país de avançar num passo rápido, mesmo nas melhores conjunturas, e chegar aos acordos para a realização das reformas que o país precisa. A coincidência do início de um novo mandato presidencial com a crise que, pelo seu impacto expõe as fragilidades do país e as vulnerabilidades das populações de uma forma nunca antes vista, pode constituir-se numa oportunidade única para se proceder à tal reflexão. Na sua qualidade de árbitro e moderador do sistema político e exercendo a sua magistratura de influência, o novo presidente da república poderia desempenhar um papel fundamental em todo esse processo e fazer o debate fluir, colocando o foco no interesse comum da nação e minimizando diferenças ideológicas. O país encontra-se numa encruzilhada e fará história quem contribuir para que encontre a melhor saída.

O facto de depois 46 anos de independência ainda não ter a estrutura produtiva diversificada que seria de desejar nem a estrutural empresarial necessária para criar empregos de qualidade e exportar bens e serviços é uma falha que devia inquietar toda a gente. Piora a situação é que, com as insuficiências existentes, não se estabeleceu no país uma cultura de trabalho voltada para a criação de riqueza que pusesse ênfase na produtividade e na qualidade do serviço prestado. Pelo contrário, ao mobilizar a ajuda externa para as colmatar, em particular no que respeita a assegurar algum rendimento para as pessoas, desenvolveu-se um sistema de dependência que acabou por se sobrepor a tudo o resto no país.

O Estado agigantou-se e centralizou-se cada vez mais, criando uma classe média dele dependente para empregos, favores e acessos privilegiados. Também, como sempre acontece quando se estabelecem sistemas de natureza rentista, a desigualdade aumenta e fica difícil quebrar círculos viciosos de pobreza. Finalmente, o exercício do poder político a todos os níveis acaba misturado com a gestão da dependência alimentando o eleitoralismo na governação e práticas ilegais como compra de votos nos períodos eleitorais. Não admira que, privilegiando sistemas distributivos em detrimento de estruturas produtivas, se note a diminuição do capital social com deterioração do civismo e do associativismo devida à corrida desenfreada para aceder aos recursos existentes. Em tal ambiente, o nível de criminalidade, particularmente em certas zonas mais carenciadas do país, tende a crescer.

Também não é alheio a isso que Cabo Verde de hoje conviva com questões fracturantes que já se mostram preocupantes e prejudiciais. O PR ontem no discurso de tomada de posse teve de se referir ao novo pacto de poder entre as ilhas, talvez para atenuar a tendência actual de se ver em Cabo Verde nove países. Para o que foi uma nação una, acentua-se a ideia de que o país se divide em “badios” e “sampadjudos” e narrativas de ressentimento fazem escola em certos círculos. Uma outra questão fracturante é a da língua crioula, tida como não oficial mesmo quando é discurso de investidura do PR, que é posta em contencioso identitário com o português com evidente efeito negativo na qualidade da sua aprendizagem no sistema de ensino. Sair com sucesso da crise deve significar deixar para trás questões que esgotam a energia da pessoas e da sociedade em querelas, diminuem a cooperação entre elas e enfraquecem o sentido de um desígnio comum.

Yuval Harari, o historiador e filósofo autor do livro Sapiens, numa entrevista recente ao jornal New York Times chamou a atenção para as grandes narrativas, as estórias que fazem parte do imaginário colectivo e que a crença nelas permite que as pessoas cooperem à escala global da sociedade. Segundo ele. “a estória em que você acredita é a que molda a sociedade que você cria”. Naturalmente que atitudes diferentes resultam se nessas estórias se é sujeito e protagonista com autonomia ou se se é passivo e objecto da acção de outrem. Cabo Verde construiu-se como uma nação ao longo de séculos em condições adversas dentro de um império mas a narrativa que prevalece é que a sua nacionalidade foi ganha e decidida nas matas da Guiné-Bissau a 600 kilómetros de distância.

É evidente que nada de bom pode daí resultar. Com essa narrativa, a população, vista com paternalismo pelos poderes constituídos, é esvaziada da energia e autonomia com impacto directo na disponibilidade para cooperar ou contribuir na realização dos desígnios nacionais. O círculo vicioso da dependência reproduz as vulnerabilidades e a precariedade de tudo o que se construiu acaba por se revelar na primeira crise grave que surgir. Inverter a situação implicará reformas só possíveis com uma nova atitude moldada por uma narrativa que resgata o protagonismo, a autonomia e audácia perdidas em ideologias desajustadas e jogadas renovadas de poder paternalístico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1041 de 10 de Novembro de 2021.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Evitar a captura do Estado

O mundo a querer sair da terrível pandemia causada pelo Sars2-cv-19 que já contabiliza cinco milhões de mortos depara-se agora com a grande tarefa de enfrentar as consequências da gestão da crise.

Assim é, porque medidas extremas como quarentenas repetidas, apoios monetários directos às pessoas desempregadas e sem rendimentos e inoculação massiva de vacinas desenvolvidas em tempo recorde tiveram que ser tomadas para se poder conter um vírus que em menos de seis meses já tinha contaminado praticamente todo o planeta. E o acto de “parar” o planeta, metaforicamente ou não, não podia deixar de ter um impacto enorme que hoje se sente em todo o mundo, em particular na disrupção das cadeias de produção e de abastecimento e nas falhas de produtos de consumo, na pressão inflacionista visível na alta de preços de quase tudo e na crise energética exacerbada por más opções tomadas no âmbito da transição energética.

A acrescentar a isso há ainda as perturbações no mercado de trabalho causadas pelas reacções às vacinas e ao processo de vacinação que têm contribuído para agravar a escassez de bens básicos de consumo e de componentes para produção, dificultando extraordinariamente um regresso à normalidade pré-pandémica. Como pano de fundo disto tudo tem-se ainda os extremos climáticos observados em vários pontos do globo que indiciam problemas mais graves derivados do aquecimento global, do degelo das calotas polares e da elevação dos níveis médios das águas dos oceanos. A humanidade é assim lembrada de uma assentada de que perigos, ameaças e desafios de grande envergadura colocam-se com urgência e que na ausência de uma resposta concertada só pode vir desgraça que, como bem provou a Covid-19, ninguém pode, à partida, dizer que está imune nem mesmo os países tecnologicamente mais avançados ou os mais ricos. A COP26 em Glasgow que se iniciou no dia 1º de Novembro é a última das múltiplas tentativas das Nações Unidas em federar vontades dos diferentes países para organizar uma resposta conjunta aos problemas potencialmente catastróficos das alterações climáticas resultantes do aquecimento global. Espera-se que das conversações havidas saiam compromissos das partes que renovem a esperança que não se está a caminhar inexoravelmente para um desastre climático de proporção planetária.

Ao nível de cada país o que cada vez mais se espera é que o Estado seja mais eficiente na utilização dos meios e recursos e mais eficaz na sua actuação. A importância crucial de se ter um Estado efectivo viu-se durante a situação emergencial vivida durante a crise pandémica. Vai continuar a ser necessário face às dificuldades que se apresentam tanto para materializar a retoma económica e ajudar na reconfiguração do que será o novo normal como também para enfrentar o desafio da transição energética essencial para a contenção dos efeitos das alterações climáticas. Com as receitas em queda por causa da crise, as exigências quanto à qualidade das despesas e às opções dos investimentos devem ser maiores assim como mais rigorosa terá que ser a fiscalização política da administração pública para evitar que recursos sejam capturados por interesses políticos, corporativos e outros em detrimento do interesse geral. A crise política que Portugal vive neste momento na sequência da não aprovação do Orçamento do Estado para o ano 2022 é ilustrativa do que já acontece em muitos países. Em tempo de vacas magras e de incertezas é maior a tentação de “captura do Estado” por parte de grupos de interesses. Impedir que isso aconteça é um dos grandes desafios da actualidade.

O Estado para ser eficaz tem que ser credível. Para manter a credibilidade não pode passar a imagem de se desviar dos seus propósitos em prol do interesse geral para satisfazer interesses particulares. Em Cabo Verde, o caminho, por exemplo, não pode ser a rigidez da despesa pública agravada em 90% com a implementação dos PCCS, em detrimento de investimentos em serviços públicos e infraestruturas essenciais para uma maior dinâmica económica particularmente quando não é muito visível a melhoria da qualidade dos serviços prestados e a contribuição para a diminuição dos custos de contexto essencial para um bom ambiente de negócios. Nos tempos actuais de grandes dificuldades os sacrifícios devem ser suportados por todos e as exigências de rigor, produtividade e competência devem-se aplicar sem se deixar desviar por considerações de natureza eleitoralista.

Também questões importantes para o presente e futuro não podem ser ignoradas. A forma como na reunião plenária da Assembleia Nacional da semana passada se discutiu a justiça, a segurança e a educação, matérias essenciais para o país, não foi a melhor nem a mais produtiva. Quando se tratava da justiça, a oposição punha enfase nos meios disponibilizados pelo governo e não havia responsabilização das magistraturas pelos resultados, não obstante funcionarem em regime de autogestão. Quando veio à baila a questão da qualidade da educação, foi a vez do governo de acusar a oposição de desrespeitar o trabalho dos professores. Algo similar aconteceu com a segurança e mais uma vez o argumento de respeito pelos polícias foi utilizado pelo governo. São exemplo de tácticas sempre utilizadas no parlamento e noutros fóruns para bloquear o debate sobre matérias essenciais ao país. Com isso, excita-se o espírito corporativo em várias classes de profissionais da administração pública tornando-os insensíveis e hostis a qualquer crítica ou avaliação do seu sector de actividade. Entretanto, os problemas vão-se acumulando debaixo do tapete.

Quando não há uma discussão séria de questões essenciais, nota-se a deterioração dos serviços como é o caso que ficou patente nas declarações recentes do Procurador-Geral da República (PGR) ao longo das quais diz que “na prática não constitui segredo para ninguém que a cooperação e a concertação entre os órgãos da policia criminal ainda estão longe do desejado e desejável, com tendência para regredir e com prejuízo claro para a investigação criminal, o que não pode acontecer”. Ou seja, toda a gente sabe que há tendência para regressão na cooperação entre as polícias com impacto na segurança, mas não há debate nem fiscalização da matéria no parlamento. Provavelmente se for agendado vai sempre surgir de um dos actores políticos a acusação de que se está a pôr em causa os polícias. Não admira, pois, que o PGR sugira que “as questões devem ser resolvidas internamente”. A grande questão é quem se responsabiliza se o prejuízo para a investigação criminal por falta de cooperação se verificar como receia o PGR.

Hoje, mais do que nunca, não é de deixar o Estado e a sua administração pública à deriva e sob ameaça de captura por interesses de grupos. A presente situação de alta geral de preços – que pode vir a revelar-se transitória porque resultante em boa medida de estrangulamentos na produção e distribuição e de um surto na procura após a pandemia – não deve servir de pretexto para reivindicações salariais desajustadas e possíveis disrupções laborais que o país não consegue comportar no momento. Os desafios actuais exigem um Estado competente, eficiente e eficaz e capaz de uma intervenção qualificada a vários níveis para potenciar a iniciativa e a criatividade de cada indivíduo com vista à criação de riqueza e prosperidade. Para isso todos devem contribuir e por aí que se deve encaminhar com estabilidade política, mas também com honestidade e respeito pelo pluralismo e pelo exercício do contraditório. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1040 de 3 de Novembro de 2021.

 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Descobrir a origem das coisas

 

Findo o ciclo eleitoral, as pró­ximas eleições que serão para as câmaras municipais só vão realizar-se no último trimestre de 2024 ficando as legislativas para 2026. Este grande interva­lo de tempo sem eleições podia ser uma grande oportunidade para – num quadro plural, mas que também deve ser de conver­gência em aspectos fundamen­tais – a sociedade se mobilizar e encontrar vias para a constru­ção de uma prosperidade sólida e sustentável.

Os enormes desa­fios que se colocam neste mo­mento ao país e vão-se colocar nos próximos anos assim o exi­gem. Infelizmente não é o que provavelmente vai acontecer. A tentação é de continuar a fazer política da mesma forma venha seca, venha pandemia ou venha crise económica mundial. O re­cente ciclo eleitoral foi ilustrati­vo a esse respeito.

De facto, não se aproveita­ram os vários embates eleito­rais para trazer para a consciên­cias das pessoas os problemas do país. Os actores políticos limitaram-se a renovar as pro­messas e a fazer acusações mú­tuas do não cumprimento do que foi prometido no passado. Em consequência, a situação real do país não passou a ser mais conhecida e eventuais so­luções para sair da crise socioeconómica não foram realmen­te debatidas. O impacto da cri­se pandémica no mundo e dos efeitos nos bens e serviços, as­sociados aos aumentos no preço dos combustíveis, aos estran­gulamentos no shipping e nas cadeias de produção e de distri­buição, às alterações climáticas, e a dificuldades na transição energética, não foi explicado de forma inteligível à população.

Pelo contrário, deixou-se en­tender às pessoas que por acção ou por omissão o governo é de alguma forma responsável pela inflação nos preços que se já se fazem notar em todos os secto­res. Há mesmo quem atribua o desaire eleitoral do candidato apoiado pelo partido no gover­no ao mau “timing” dos aumen­tos do preço dos combustíveis e de energia e água e também à proposta intempestiva de au­mento do IVA. Entretanto, não se dá a devida atenção às razões de fundo das vulnerabilidades nacionais, às ineficiências em vários sectores que prejudicam a produtividade e a competi­tividade do país e a comporta­mentos avessos a critérios me­ritocráticos, à orientação por resultados e à valorização do conhecimento que são nocivos. E sem essa atenção, e sem a cla­rificação dos problemas reais, dificilmente será possível fede­rar vontades na sociedade para fazer as reformas necessárias do Estado, da educação e da economia e se ter, de facto, de­senvolvimento sustentável.

Todos dizem que a realidade actual de uma economia pouco diversificada, dependente do turismo, altamente endividada (mais de 155% do PIB) e sem possibilidade aparente de cres­cer a taxas superiores a 7% do PIB consideradas necessárias para debelar o desemprego, mesmo numa conjuntura fa­vorável como foi a anterior à pandemia, não pode continuar. Agir, porém, é mais difícil. Mesmo quando se procura fa­lar a verdade dos factos não se é ouvido. O governo através do ministro das Finanças tem-se referido em vários momentos ao problema da dívida pública que está a atingir níveis quase insustentáveis. Para 2022 o ser­viço da dívida pública, segundo ele, vai aumentar 9 milhões de contos com o fim das mora­tórias dos créditos contraídos entre 2008 e 2016, passando a totalizar cerca de 24 milhões contos. Perante esta declara­ção, aparentemente nem o país pestaneja e nem se vê razão suficiente para os partidos com assento no parlamento chega­rem a acordo e alterar na lei os mínimos dos valores do défice e da dívida interna para o Estado de Cabo Verde poder fazer face aos seus compromissos junto dos credores.

Caso para perguntar que si­tuação difícil ou crise consegue forçar as pessoas, a sociedade e os actores políticos a focar nas reformas que devem ser feitas e chegar aos compromissos ne­cessários para as materializar. O poeta Ovídio Martins dizia que “as secas já não nos me­tem medo porque descobrimos a origem das coisas”, mas na realidade parece que o que se descobriu foi a solução da aju­da externa quando há qualquer calamidade seja ela seca, pan­demia ou desastre natural. As reformas para diminuir vulne­rabilidades e ganhar resiliência são sucessivamente adiadas ou quando encetadas ficam aquém dos resultados pretendidos. O que parece perdurar é a con­vicção de que talvez o país seja “too small to fail” e qualquer ajuda, qual migalha a cair do prato dos outros, tem grande impacto na sua pequena econo­mia. Nesse sentido, ninguém se sente grandemente pressionado para fazer os arranjos políticos e sociais que poderiam apressar reformas e assegurar que tives­sem os resultados desejados.

Para responder ao grande fardo de cumprir com o servi­ço da dívida pública (capital mais juro) já se estão a mobi­lizar parceiros como o BAD, o Banco Mundial, Luxemburgo, Portugal e a União Europeia sendo todos os contactos feitos e as promessas de ajuda anun­ciados com grande fanfarra pelo governo. Do FMI vieram cerca de 30 milhões de dólares correspondentes a 21 milhões de SDR, de direitos especiais de saque. Foi o que coube a Cabo Verde em resultado da distri­buição feita pelo FMI por todos os países do mundo de acordo com as suas respectivas cotas a partir de um bolo comum cor­respondente a 650 bilhões de dólares. O interessante neste esquema para ajudar os países com dificuldades acrescidas devido à crise pandémica é que os SDRs recebidos não contri­buem para o aumento da dívida pública.

O FMI, através do fundo Poverty and Resilience Trust constituído a partir de SDRs cedidos por países sem difi­culdades orçamentais, preten­de alargar ainda mais a ajuda aos países mais pobres. Cabo Verde deve poder usar esse ca­nal multilateral para conseguir mais SDRs e reestruturar a sua dívida externa com esquemas que lhe permitam moratórias mais longas e juros mais bai­xos. Devia-se explorar também canais bilaterais com os países mais próximos e em particular com aqueles como Portugal em que uma parte da dívida é de natureza comercial (exemplo Casa Para Todos) e o serviço da dívida é mais pesado. Nos anos noventa inovou-se com a criação do Trust Fund para di­minuir o impacto do serviço da dívida interna acumulada na transição da economia estati­zada para economia de merca­do. Talvez seja agora o tempo para uma entidade igualmente inovadora para fazer face aos constrangimentos orçamentais que irão ser postos pela dívida externa a partir de 2022.

Não se deve é ficar por aí. O espaço ganho deve ser utilizado para se avançar com as refor­mas que podem tornar o Estado e a sua máquina mais eficiente e eficaz e também mais útil e competente enquanto agente do desenvolvimento. A rigidez das despesas do Estado que segundo o OE de 2022 atin­ge os 90 % deve ser diminuída consideravelmente. Para isso e também para se poder atingir os objectivos de resiliência e sustentabilidade, compromis­sos sociais e políticos terão que ser firmados. Se em tempo de crise profunda não se conseguir o que a realidade nacional e in­ternacional força todos a fazer para se poder construir um fu­turo de prosperidade, ninguém garante que mais tarde haverá motivação para isso. É respon­sabilidade de todos assegurar que esta crise não seja mais uma oportunidade perdida. Ao governo da República natural­mente cabe uma responsabili­dade muito maior.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.