sexta-feira, 22 de março de 2024

Equívocos para continuar a controlar o passado e o futuro

 O governo apresentou na segunda-feira, dia 18 de Março, o programa de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e da libertação dos presos do Campo do Tarrafal. Não se conhece se o acto foi precedido da publicação de uma resolução do governo. Sabe-se, porém, por uma nota da presidência da república de 23 de Fevereiro último que o PR decidiu promover pelos 50 anos do 1º de Maio de 1974 um quadro de celebrações de Estado para “honrar o sacrifício dos que foram prisioneiros no Tarrafal”. Já meses atrás, em Janeiro, a Fundação Amílcar Cabral tinha integrado no seu programa para 2024 do centenário do seu patrono “comemorações conjuntas do 25 de Abril e da libertação dos presos políticos” e Pedro Pires tinha considerado “fundamental a intervenção do Estado de Cabo Verde e importante a intervenção da Presidência da República” nas celebrações. É precisamente o que está a acontecer.

O problema é que o processo decisório no Estado democrático parece estar invertido. Uma entidade privada lidera e o governo condescende. O parlamento não aprova comemorações oficiais, mas o governo contorna a posição da sua maioria parlamentar. O presidente da república vai numa outra direcção querendo elaborar um substancial programa comemorativo “em articulação com outros órgãos de soberania, câmara municipal do Tarrafal e outros parceiros”. Pode-se até ficar com a impressão que se voltou aos tempos do velho PAIGC/CV força, luz e guia da sociedade e do Estado.

E não é para menos se se considerar que finalmente já foi autorizada a celebração oficial do 25 de Abril em Cabo Verde. Até agora a data foi praticamente ignorada porque conflituava com a ideia expressa por Pedro Pires recentemente à Voz da América que a independência do arquipélago foi feita pelo PAIGC e pelos seus militantes e não por qualquer outro interveniente. O 25 de Abril não seria um movimento autónomo, mas sim produto da derrota infligida na Guiné e, como tal, de importância secundária. Muda-se de ideia porque, depois da visita do presidente do parlamento português Santos Silva à Fundação Amílcar Cabral e da sua declaração que a luta pela liberdade era a mesma daqueles que lutaram contra a ditadura e daqueles que lutaram contra o colonialismo, há acordo para associar as datas do 25 de Abril e do centenário de Cabral.

Ou seja, como diria George Orwell, continua-se a querer controlar o passado para poder controlar o presente e o futuro. Nesse sentido, é preciso perpetuar os equívocos. O 25 de Abril de 1974 é referenciado pelos cientistas políticos como o início da Terceira Vaga da democracia e, de facto, em Cabo Verde com a Revolução dos Cravos veio a libertação dos presos políticos no 1º de Maio, a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de reunião e de manifestação e a liberdade de criação de partidos políticos. O equívoco está em celebrar o Grande Dia dizendo que a luta era a mesma de todos pela liberdade, quando realmente as liberdades de Abril praticamente desapareceram em Cabo Verde, em Dezembro de 1974, e com a independência nacional se instalou uma outra ditadura.

Um outro equívoco com a celebração da libertação dos presos da ditadura no campo do Tarrafal no dia 1º de Maio é de se fazer de esquecido que afinal o estabelecimento prisional foi mais uma vez reaberto, em Dezembro de 1974, para receber presos políticos cabo-verdianos entre eles militantes dos partidos considerados adversários/inimigos do PAIGC. Já não o número de 20 cabo-verdianos presos pelo regime salazarista, mas sim, segundo José Pedro Castanheira, 70. Na verdade o slogan “Tarrafal Nunca Mais” se em Portugal não mais se traduziu em polícia política e em presos políticos, já em Cabo Verde, por mais 15 anos, dezenas de pessoas em várias ocasiões (1977, 1979, 1980, 1981 e 1987) foram presas, sofreram sevícias, torturas e mortes em outros “tarrafais” nas instalações militares. Até agora, apesar de o parlamento, em junho de 2019, lhes ter reconhecido o agravo e estipulado pensão financeira pelos maus tratos e torturas, não há ainda de facto reconhecimento pleno do Estado de Cabo Verde, dos partidos políticos e da sociedade pelo atropelo grave aos seus direitos e à sua dignidade. Não faz sentido celebrar a libertação dos presos políticos da ditadura salazarista sem que haja pedido de desculpa pública do Estado por todas as atrocidades do regime de partido único.

Cabo Verde teve que esperar 15 anos para voltar a exercer as liberdades que depois do 25 de Abril por escassos meses, entre Maio e Dezembro de 1974, pôde desfrutar. Só em 1992 iria dotar-se de uma Constituição que consagraria a democracia liberal, garantindo a liberdade e a plena cidadania a todos os cabo-verdianos. Não se pode, pois, dizer retrospectivamente que a luta contra a ditadura salazarista era a mesma luta que os autoproclamados libertadores desencadearam nas colónias. Como se veio a constatar rapidamente, na sequência do 25 de Abril e do desmoronamento do império colonial, o objectivo de todos era substituir uma ditadura por outra. O projecto de poder do partido ou movimento era indissociável ou até podia sobrepor-se ao projecto de libertação. Para isso recorria-se a todos os meios inimagináveis para eliminar eventuais adversários ou rivais. Daí os presos políticos, as torturas, os fuzilamentos e as guerras civis que duraram décadas.

Insistir no equívoco só ajuda a perpetuar as narrativas que os chamados libertadores ainda se servem para controlar o passado e com esse poder controlar o presente e o futuro. Se alguma dúvida houvesse dos enormes estragos provocados, a situação real de corrupção, de pobreza e de desesperança que leva muitos a procurar emigrar para a Europa é bastante elucidativa. Como alguém disse já é tempo da África se libertar dos seus libertadores. Seria uma boa ajuda nesse sentido se certos sectores da vida pública e académica portuguesa não procurassem acomodar as vaidades e as narrativas de quem durante décadas não trouxe liberdade e não promoveu prosperidade aos seus povos e países. Muito menos que lhes emprestassem com honrarias renovada credibilidade e até suporte científico para os seus desvarios revolucionários. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1164 de 20 de Março de 2024.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Salvaguardar a autonomia do BCV

 

A iniciativa do INPS de organizar leilões para depósitos na perspectiva de conseguir maior rentabilização das poupanças da instituição continua a provocar polémica. No passado dia 1 de Março o BCV, depois de, em Dezembro, ter recomendado aos bancos que se abstivessem de participar nos leilões veio dar-lhes razão na reclamação então apresentada. No comunicado, o BCV deixou claro que o processo de leilões violou o princípio de transparência e que seria passível de anulação pelas entidades competentes. O insólito aconteceu quando, numa conferência de imprensa, no dia 8 Março, com a presença dos dois ministros de tutela, o ministro das Finanças veio contrapor ao BCV afirmando que o INPS andou muito bem em avançar com os leilões e que são para continuar.

Na segunda-feira, o presidente da república em entrevista à TCV relembrou ao governo a autonomia do BCV e a sua função de entidade reguladora independente do sistema financeiro. Razão por que, segundo ele, o governo “não pode realizar reunião entre o Banco Central, o INPS e o próprio governo para articular posições” como se propôs fazer o ministro das Finanças nas suas declarações da sexta feira passada. De facto, a lei orgânica do BCV, de 2002, é clara em afirmar  que a autonomia do Banco Central deve ser respeitada, não podendo nenhum órgão ou pessoa influenciar o governador ou qualquer membro do conselho de administração no desempenho das suas funções.

 A lei traduz a opção por uma maior autonomia e independência do Banco Central que foi consagrada na revisão constitucional de 1999 na sequência da assinatura do Acordo Cambial que criou o peg fixo com o euro. O respeito pelos seus pressupostos trouxe ao país anos de inflação baixa e uma imagem de país com estabilidade cambial e do sistema financeiro. Não se pode com ligeireza ou voluntarismos fragilizar a arquitectura institucional que tem suportado essa estabilidade.

De acordo com o ministro das Finanças na TCV a iniciativa dos leilões é uma questão nova para o INPS, para o BCV e para o próprio Governo e que nem o BCV tem ou tinha regulamentos nessa matéria. A pergunta que se põe é: sendo os leilões de depósitos uma inovação, por que se avançou com o processo sem primeiro o regulamentar e sem aparentemente o acordo explícito da tutela dos dois ministros. Leilões de produtos financeiros não são propriamente desconhecidos no país. Acontecem regularmente com as emissões de obrigações e bilhetes do tesouro.

A diferença é que são regulados respectivamente pelos decretos-leis 59/2009 e 60/2009 de 14 de Dezembro que remetem para o Banco Central /Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários, aspectos operacionais de realização de leilão, de liquidação financeira e de consulta. Também é sempre ouvido previamente o BCV/AGMVM quando são estabelecidas as condições de emissão e outras questões técnicas ligadas aos leilões dos títulos do tesouro.  Na Bolsa de Valores os títulos são oficiosamente cotados e colocados por leilão. 

Por aí pode-se constatar que há processos e procedimentos em matéria de leilões já consolidados no país e com enquadramento institucional adequado que dificilmente permitem dizer que se está perante uma situação completamente nova. De facto, novidade parecem ser os leilões de depósitos de fundos sociais. Aparentemente não se registam muitos exemplos no mundo lá fora.

O caso mais referido é do Banco da Rússia onde, por razões de gestão de excesso de liquidez estrutural e também de imposição legal de aplicação de contribuições para fundos de pensões, se realizam leilões periódicos de depósitos. São realizados na Bolsa de Moscovo, o Banco da Rússia estabelece as regras para garantir transparência, protecção dos fundos de pensões e promover a competição entre os bancos e certifica-se que há conformidade com as directivas do ministério das finanças. Ou seja, há todo um enquadramento institucional prévio para se colher os benefícios do processo e para assegurar a estabilidade e a confiabilidade do sistema.

Também em Cabo Verde devia-se começar por dar esse enquadramento legal a todo o processo a exemplo do que foi feito com os leilões dos Títulos do Tesouro.  É evidente o interesse geral em rentabilizar os fundos do INPS, mas há que fazê-lo sem deixar quaisquer dúvidas quanto à transparência do processo e salvaguardando a integridade do sistema financeiro. Por outro lado, há que assacar responsabilidades e conter os eventuais estragos institucionais e reputacionais por um imbróglio que se arrasta há três meses, uma parte em surdina e mais recentemente às claras como deixam entender os sucessivos comunicados vindos a público.

Já são claros os sinais do confronto político que se anunciam e o posicionamento do governo na conferência de imprensa da sexta-feira não serviu para apaziguar a situação. Depois da chamada de atenção do presidente da república para a necessidade de se garantir o normal funcionamento das instituições, devia-se procurar pôr o processo de rentabilização dos depósitos do INPS no caminho certo e com a supervisão adequada. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024.

 

 

segunda-feira, 11 de março de 2024

De mãos dadas para enfrentar os desafios da modernidade

 Março, Mês da Mulher, é sempre o tempo ideal para um olhar sobre a grande caminhada para garantir direitos e oportunidades em pé de igualdade com os homens. Extraordinários avanços já foram feitos, em particular nas democracias, enquanto atrasos se mantêm em muitos países e autênticas regressões se verificam noutros. O acesso generalizado à educação nos diferentes níveis e a empregos em todos os domínios tem traduzido muito desse progresso.

É evidente a contribuição dada para a produção de riqueza global, para a diminuição extraordinária da pobreza e para um sentimento de realização contagiante que acabou por elevar para um outro patamar a vida de milhões de meninas e mulheres em todo o mundo. Afinal, trata-se da metade da humanidade e o seu bem-estar e felicidade significa ganho para todos.

Infelizmente, toda essa caminhada ainda não é feita sem que seja pontuada por muito sofrimento, violência, discriminação activa e tentativas de exclusão. Mesmo nas sociedades mais democráticas nota-se uma reacção agressiva de certos sectores da sociedade face aos grandes avanços conseguidos pelas mulheres. Em alguns países como o Irão e o Afeganistão essa reacção aos ganhos da modernidade toma formas extremas e é uma das fontes de alimentação da revolução que inequivocamente tem como uma das suas finalidades a subjugação da mulher. Em todo o mundo verifica-se o recrudescer da tensão entre homem e mulher, um fenómeno que provavelmente não está alheio a reconfiguração das lutas emancipatórias das minorias em lutas identitárias, pondo em confronto opressor e oprimido, e também o extremar de posições devido ao efeito polarizante das redes sociais.

As guerras culturais que hoje marcam uma boa parte da agenda política são marcadas pelo que são as expectativas dos diferentes grupos sociais quanto ao papel do homem e da mulher na sociedade. Não é à toa que já se nota um posicionamento diferenciado dos dois sexos na tradicional divisão de política nas democracias entre a esquerda e a direita com as mulheres a pender para esquerda e o homem a situar-se à direita. Numa matéria particularmente divisiva como o chamado direito ao aborto, em que estão em causa os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo e de ter ou não filhos, os tribalismos de esquerda e de direita funcionam plenamente.

Há dois anos atrás a maioria conservadora dos juízes no supremo tribunal dos Estados Unidos conseguiu revogá-lo causando grandes perturbações sociais e políticas com impacto nas eleições estaduais e federais. Na segunda-feira, dia 4 de Março, esse direito foi introduzido na Constituição na França através de uma emenda constitucional aprovado pelo parlamento. É a primeira vez que isso acontece na história das constituições democráticas.

Em várias situações de conflito aberto ou mesmo de guerra é visível a centralidade da questão do papel da mulher na sociedade e da sua dominação pelo homem. Muitas das paixões, da crueldade e do ressentimento que alimentam esses processos hoje a acontecer em vários pontos da África, do Médio Oriente e de outros continentes justificam-se pelo desejo de subjugação das mulheres. Em resultado, são votadas à exclusão e impedidas de conseguirem uma educação, são violadas e mortas para desmoralizar as hostes inimigas e até usadas como escudos humanos para conduzir furtivamente operações militares. No ataque a Israel a 7 de Outubro e na invasão de Gaza e ainda nos relatos de atrocidades verificadas em teatros de guerra como Etiópia, Ucrânia e no Congo tem-se uma ideia do pesado fardo de dor e sofrimento que recai sobre as mulheres nos conflitos armados em particular quanto se assumem como existenciais.

Também ao nível micro de pequenas cidades, das vilas e das famílias as notícias demasiados frequentes de violência doméstica que acaba por desembocar no assassinato da mulher e algumas vezes acompanhado do suicídio do homem deixam entrever que há questões complexas no processo emancipatório e que precisam ser enfrentadas para se poder chegar à almejada igualdade de direitos e oportunidades. Em Cabo Verde, nos últimos dias, o homicídio da passada segunda feira, em Porto Novo, a tentativa de assassinato e suicídio no Fogo são os mais recentes casos de acontecimentos similares que vêm se repetindo no país e têm lançado os números de homicídios e de suicídios para níveis preocupantes.

Há que compreender que se está a viver um período particularmente difícil no mundo inteiro com crises de vária natureza, designadamente climática e migratória, com novas tensões geopolíticas e com a possibilidade de reconfiguração de espaços e relações económicos. Em simultâneo, está-se perante um momento único na história da humanidade em termos de participação das mulheres na vida política, económica e social e cultural que, ao dar suporte à autonomia pessoal e estimular a competição em todos os domínios, abre a possibilidade da criação de tensões com relações e papéis sociais anteriormente existentes para o homem e para a mulher no espaço familiar, na empresa, na política, etc. Tudo isso concorre para criar alguma ansiedade em relação ao futuro e mesmo insegurança quando as pessoas, principalmente os homens, veem os seus empregos tradicionais destruídos, sentem-se impreparados para os novos empregos e ressentem a perda do estatuto social.

Mas, porque avançar é preciso e sem deixar ninguém para trás, o grande desafio que se impõe a todos é como fazê-lo sem cair em tensões paralisantes, na violência do género e em tentações de fazer recuar a história como prometem os diferentes fundamentalismos religiosos e alguns líderes de clara inclinação autocrática. Para isso é fundamental que a atenção não fique só por continuar a incentivar o avanço extraordinário que as mulheres têm feito. É preciso que incida sobre a necessidade de preparar os homens e especialmente os jovens rapazes para o mundo de competição de hoje, mas também de colaboração e solidariedade com as meninas num quadro de igualdade de direitos e de oportunidades.

A humanidade não pode sobreviver e muito menos prosperar com as suas duas metades de costas viradas. O 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, é também o dia para se lembrar que a caminhada deve ser feita de mãos dadas, não obstante todos os percalços que inevitavelmente acabam por aparecer. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1162 de 6 de Março de 2024.

segunda-feira, 4 de março de 2024

Os tempos não estão para activismos fracturantes

 Assiste-se actualmente em Cabo Verde ao renascer da tendência para o pensamento único sob a capa de slogans como “cumprir Cabral”, “cultura é resistência” e agora “oficialização Já! do crioulo”. Este último slogan saiu do fórum sobre a língua cabo-verdiana realizado no quadro das actividades realizadas no sábado passado a propósito do dia internacional da língua materna. O activismo que dá corpo a essa tendência autorreferencia-se pela aderência à ideologia da luta de libertação, pelo pan-africanismo e pela negação da especificidade da cabo-verdianidade. Até se faz reconhecer nas suas actividades através de uma espécie de “dress code” supostamente de resistência em que prefere o uso de indumentária típica de países do continente africano ou então a que distinguia os dirigentes do regime anterior.

Daí não viria nenhum mal ao mundo se fosse somente mais uma corrente de pensamento numa sociedade democrática e plural. O problema é que tem o patrocínio claro das instituições do Estado incluindo o suporte de órgãos de soberania, do sistema educativo do país, da universidade pública e da comunicação social do Estado. Com a percepção desse apoio institucional não estranha que ambicione e procure a ser único e que demonstre ostensivamente a sua intolerância em relação a ideias, narrativas ou factos que contrariam os fundamentos da sua ideologia. No caso da oficialização do crioulo a ajuda estatal tem outras utilidades, como bem comentou um dos mentores da sua promoção: “Ten ê ke ser ufisializódepadnher pa fazê tude u ke mestê fazê” (tem que se oficializar já para pôr dinheiro para fazer tudo o que é preciso fazer).

A citada expressão em crioulo recorre ao alfabeto fonológico ALUPEC como, aliás, toda a comunicação do Fórum da Língua Materna. Isso acontece porque com o apoio do Estado foi o alfabeto que se impôs em detrimento do alfabeto etimológico que escritores, poetas, compositores e outros cabo-verdianos usaram por mais de um século. Pondo de lado obra consolidada e intimamente ligada às bases fundantes da cabo-verdianidade na música e na literatura e o facto do crioulo ter base lexical portuguesa em mais de 90% adoptou-se um alfabeto fonológico não por razões práticas ou culturais, mas sim por razões fundamentalmente ideológicas. Na linha do pensamento único tinha-se que impor a realidade alternativa conjecturada em tempos revolucionários da origem africana dos cabo-verdianos. A escrita na base do alfabeto etimológico revelando as origens da sua língua materna não podia denunciar o contrário.

Curiosamente nas ilhas chamadas ABC, nas Caraíbas, onde também se fala um crioulo de base lexical em boa parte de origem portuguesa uma delas, Aruba, adoptou o alfabeto etimológico para o papiamento e a outra, Curação seguiu o alfabeto fonológico no seu papiamentu. Seria interessante estudar o impacto prático da adopção dos dois alfabetos com as suas vantagens e desvantagens tendo, porém, em conta que, diferentemente de Cabo Verde com língua oficial portuguesa, o papiamento tem muito pouco do holandês, que é a língua oficial nas duas ilhas. Sem falar que não há programas de reafricanização dos espíritos do tipo existente em Cabo Verde que enviesam qualquer abordagem da realidade cabo-verdiana suportada no facto de que a consciência nacional emergiu em Cabo Verde muito antes da independência e não como resultado de lutas anticoloniais.

Talvez por causa disso não se nota nessas duas ilhas o tipo de activismo frenético que se vê em Cabo Verde. O papiamento é uma das línguas oficiais nas duas ilhas desde há mais de dez anos, mas não é língua da administração pública e apesar de ser ensinada nas escolas não é a língua de ensino. Ao holandês é reservado esse papel. Não é uma situação muito diferente do que se passa em Cabo Verde. Aqui as normas constitucionais pertinentes estão na constituição no artigo 9º sob epígrafe línguas oficiais, mas ainda não há paridade com o português. O presidente da república exprime-se oficialmente também em crioulo, o debate parlamentar muitas vezes acontece em crioulo e nos tribunais pode-se depor também em crioulo. Com esse nível de assunção pela sociedade e pelo Estado não se pode dizer com seriedade que a língua cabo-verdiana é discriminada ou secundarizada.

Por razões práticas que têm a ver designadamente com o facto de não se ter uma escrita estandardizada, suporte documental e outros recursos disponíveis em crioulo é que ainda não foi adoptado pela administração pública e pelo sistema de ensino. Precipitar o processo com voluntarismos do tipo “oficialização Já” que só servem de alimento para guerras culturais não terá qualquer efeito positivo por falta de meios de suporte para a sua materialização efectiva. Não deixará, porém, de ser disruptivo, com consequências potencialmente graves. Saber isso e insistir na mesma linha só se compreende se o objectivo é alimentar a polarização social e política mesmo quando o discurso vai no sentido contrário.

Cabo Verde chegou à independência com todos os cabo-verdianos a falar crioulo sem distinção com base no estrato social, no nível de educação ou na ilha de origem. Aparentemente dentro do império português o crioulo era consensual como língua de comunicação de todos os cabo-verdianos enquanto o português era a língua da administração do estado e a língua de ensino. Também parece que não havia conflito significativo no uso das duas línguas. A literatura fundante da cabo-verdianidade era expressa quase toda ela na língua portuguesa. O crioulo, por seu lado, desenvolvia-se na sua expressividade e plasticidade como nova língua na concepção de John McWorther, linguista da Universidade de Columbia e autor de vários livros sobre os crioulos, servindo-se do português mas sem perder a sua identidade. O Dr. Baltasar Lopes notou o facto no seu livro O Dialecto Crioulo de Cabo Verde ao escutar estudantes do liceu a discutir filosofia, física e matemática em criolo nos intervalos das aulas.

A forma como o consenso foi rompido e em consequência fracturas tão grandes foram abertas na sociedade cabo-verdiana é algo que devia merecer a reflexão de todos. Hoje é evidente que Cabo Verde, não obstante os enormes investimentos no sistema educativo do país ao longo de décadas, está longe de ter os níveis de competência linguística que o desenvolvimento no mundo globalizado exige e que podiam constituir vantagem na realização da vocação do país como prestador de serviços. Para isso terá contribuído certamente o desperdício de energia em guerras culturais quando o foco deveria ser outro: educar toda a criança e todo o jovem para ser mais proficiente no uso das línguas que permitem o acesso ao conhecimento, à tecnologia e ao estreitar das relações com outros povos, dando conteúdo à ideia de Cabo Verde como Terra da Morabeza.

Infelizmente os tempos não se mostram mais favoráveis para se arrepiar caminho. Agendas politicas ideológicas potenciadas por comemorações de datas de referência vão exacerbar os conflitos e as fracturas sociais e políticas. A sobreposição com o ciclo eleitoral poderá levar a intolerância ainda mais longe. O envolvimento ambíguo do Estado e dos seus titulares já está a criar tensões institucionais e os sinais apontam para dificuldades acrescidas à frente. O que se observa noutras democracias de deterioração da vida pública e de perda do sentido de Estado parece estar a ganhar terreno no país. Cabo Verde não se pode dar-se a esse “luxo”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1161 de 28 de Fevereiro de 2024.