segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Solidariedade

 

Já próximo do fim deste ano atípico de 2020 e em plena época natalícia as pessoas em todo o mundo animam-se com a perspectiva de virem a ser vacinadas contra a Covid-19 e de se verem livres desta pandemia que se tem revelado desastrosa e mortífera para a humanidade.

O futuro já não parece tão complicado face ao feito impressionante de, em tempo recorde, se ter desenvolvido vacinas revolucionárias, tanto na forma como actuam e mobilizam o sistema imunitário como ao nível de eficácia atingido (à volta de 95%), e prontas a ser aplicadas massivamente nos próximos meses. Renovaram-se as esperanças de que mais cedo do que seria esperado haverá condições para a retoma económica e alguma normalização da vida social e cultural.

O facto de isso resultar de uma cooperação internacional inédita, traduzida em investimentos massivos na pesquisa científica com foco na produção de vacinas e também na colaboração estreita entre comunidades científicas de diferentes países, funcionou como um bálsamo para o sofrimento suportado com os milhões de mortos e os confinamentos obrigatórios. Por ter trazido resultados por altura do Natal reforçou a importância da solidariedade entre as pessoas, visto agora como um sentimento que não deve ficar só pela família e pela nação mas estender-se a todos num abraço global. Os desafios que se colocam à humanidade a começar pelas alterações climáticas e incluindo a transição energética e outras pandemias que, segundo os experts, inevitavelmente irão se verificar no futuro, clamam por essa solidariedade global.

Outrossim a pandemia veio pôr um foco especial sobre as graves consequências do aumento da desigualdade social que desde a Grande Recessão de 2008 se tornou particularmente perceptível na maior parte dos países do mundo e em especial nas economias mais desenvolvidas. Ficou visível que as camadas sociais mais pobres e mais desfavorecidas foram particularmente atingidas pela doença e desproporcionalmente sucumbiram devido ao efeito cumulativo dos sintomas provocados pelo coronavírus e das comorbidades de que já padeciam. Na sequência da covid-19 já não havia como negar os sinais, que vinham já antes, que o modelo económico social suportado no livre movimento de capitais e em cadeias mundiais de valor num quadro de crescente globalização da economia tinha deixado de funcionar para todos. Também ninguém podia esconder que as tensões sociais criadas, a perda de status de sectores da população anteriormente pertencente à classe média e o alargamento de cinturas de pobreza estavam a afectar gravemente a própria saúde das pessoas e contrastavam com a concentração desmedida da riqueza numa pequena percentagem da população.

O desencanto provocado pela quebra do contrato social implícito na crença que todos ganham com o crescimento económico tem vindo a alimentar o populismo e a crise das democracias. Reverter a situação vai implicar um esforço dirigido para aumentar a confiança e a solidariedade entre as pessoas. A exemplo da cooperação internacional para produzir vacinas, deverá haver uma luta ao nível local e nacional para mais solidariedade social, cívica e política. A luta contra a covid-19 será bem-sucedida se, a par da massificação das vacinas e dos avanços no tratamento dos sintomas da doença, se manter o ambiente social de confiança e de oportunidade que motive as pessoas a proteger umas às outras e a desenvolver uma nova etiqueta na relação interpessoal, mais consentânea com a presença ainda por alguns anos do coronavírus e do seu modo de contágio.

Nos países que vivem com o sentimento de quebra do contrato social, um outro público a ser alvo de uma nova abordagem é o constituído pelos chamados trabalhadores essenciais. Ou seja, todos aqueles que a exemplo dos profissionais de saúde, da segurança, da protecção civil, dos trabalhadores nos supermercados e em toda a logística de abastecimento e distribuição permitiram que o confinamento se verificasse sem perturbações de maior. Reconhece-se que o teletrabalho que permitiu que apesar de tudo muito nas empresas e no Estado funcionasse em tempo de “lockdown” só foi possível porque trabalhadores essenciais continuaram a deixar a segurança das suas casas e a exporem-se no exercício da sua actividade. Ao longo da pandemia pagaram um duro preço em número de infecções e também de mortes. Mais solidariedade significará para esse grupo um maior apreço e reconhecimento do seu trabalho e o inflectir da tendência na degradação dos níveis salariais desses serviços quando outras profissões têm ganhos desproporcionais.

Em Cabo Verde a grande luta é ter-se solidariedade social sem ser esvaziada pelo assistencialismo que torna as pessoas dependentes e construir a solidariedade cívica para além das afinidades partidárias e dos interesses dos partidos. A covid-19, a exemplo do que aconteceu noutros países, revelou as vulnerabilidades existentes e penalizou quem mais em situação desvantajosa vivia. As dificuldades em controlar surtos em vários pontos do território nacional têm a ver com as condições socio-económicas e habitacionais das populações que dificilmente conseguem cumprir com as exigências dos confinamentos, do distanciamento social e de higienização permanente das mãos e das superfícies. Para ultrapassar isso há que ir para além dos modelos de desenvolvimento que geram ganhadores entre os que giram à volta do Estado e dos projectos de ajuda externa e perdedores entre aqueles que deviam ser os putativos benificiários dos mesmos.

Em tempo de Natal é de maior importância relembrar o papel da solidariedade na consecução de todos os direitos humanos e como base para cooperação entre as pessoas e a renovação da confiança indispensável para a construção da prosperidade. Uma solidariedade também acompanhada a nível individual de auto responsabilidade e sentido de dever para com a comunidade de modo a não ser pervertida pela tentação de culpar o outro, de se vitimizar e de se deixar consumir pelo ressentimento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 995 de 23 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

País de monólogos

 

A qualidade duvidosa do debate político em Cabo Verde leva muitos a pensar em como agir para o melhorar. Há quem considere que o surgimento de outros partidos, o fim do bipartidarismo e a eventualidade de governos de coligação ou mesmo de governos minoritários podiam trazer grandes benefícios para o sistema político.

Assumem que sem maiorias absolutas todas as forças políticas seriam forçadas ao diálogo. Apesar de não haver qualquer evidência que isso possa acontecer, considerando as experiências anteriores e recentes tanto a nível local como central, a crença existe e é generalizada. Aparentemente as pessoas estariam dispostas a sacrificar alguma estabilidade governativa se em contrapartida houvesse menos crispação entre os actores políticos e maior consenso nas grandes questões do país.

A verdade é que provavelmente a questão de falta de diálogo é mais profunda do que parece. Não é algo que se resolve naturalmente com mais intervenientes e mais fragmentação política. Primeiro, todos teriam que assumir que têm responsabilidade em fazer as instituições funcionar e em debater profunda e demoradamente as questões, evitando bloqueios e procurando eficácia na acção. Porém, ainda está-se longe de alcançar a cultura cívica e política que pudesse constituir-se no respaldo de que a democracia tanto precisa para funcionar na plenitude. O espaço público ainda é dominado por narrativas politico-ideológicas tributárias da origem histórica dos grandes partidos que de alguma forma continuam a reproduzir a bipolarização original com o seu cortejo de insultos, acusações e denúncias sem deixar muito espaço para compromissos em questões fundamentais.

Ouvindo o ruído criado pelas múltiplas interacções na esfera pública, facilmente pode-se constatar que Cabo Verde é um país de monólogos. O diálogo praticamente não existe. Nem a situação extrema da pandemia conseguiu que se levantassem as barreiras e fosse produzido um diálogo compromissório à altura dos desafios actuais. A discussão na semana passado do Orçamento do Estado para 2021, que podia ser uma novidade, porque feita no quadro da nova lei de bases do OE e com o objectivo de manter mais funcional a gestão financeira do Estado num ano de eleições, resvalou para a crispação do costume, com acusações de eleitoralismo e populismo à mistura. Mesmo face à ameaça da covid-19, é como se cada um se mantivesse no seu registo sem que houvesse intermediação, troca de ideias, o exercício construtivo do contraditório e mesmo o fact checking, a verificação dos factos.

Curiosamente não é uma falha que se limita à interacção na área política. Perpassa toda a sociedade, afecta a comunicação social, escolas e universidades e outros centros que deviam ser de cultura e conhecimento. Como diria Jonathan Rauch da Brookings Institution num artigo recente no National Affairs, a informação até pode circular vinda de vários lados, mas a constituição do conhecimento é deficiente. Por isso e por outras razões que é cada vez mais evidente a discrepância entre o investimento feito pelo Estado, pelas famílias e pelos indivíduos na educação a todos os níveis e o retorno global para o país em termos, designadamente de nível académico, de competitividade em sectores da economia do conhecimento e de capacidade de governança. A perda também se reflecte nos indivíduos que em vez de verem abrir oportunidades de carreiras e de negócios e outras possibilidades de mobilidade social e de realização pessoal acumulam frustrações num ambiente profissional e económico-social demasiado restrito para o seu potencial e ambição.

Sem diálogo já se viu que fica difícil fazer a alternância política funcionar em prol de Cabo Verde. A falta de consenso em questões fundamentais abre caminho para eternos recomeços sempre que há mudança de governo. Também a ausência de debate construtivo não contribui para o amadurecimento das posições partidárias e governativas, ficando o país e a sociedade com a percepção que novas dinâmicas não são despoletadas mesmo com diferentes governos. Uma outra consequência dessa falta de diálogo é a dificuldade enorme de se desenvolver uma estratégia para contornar a extrema dependência do país em relação ao exterior. Como a cooperação com outros países e com instituições multilaterais pela sua natureza e impacto, tempo próprio e interesses de agenda dos parceiros não é substituto para um plano de desenvolvimento, a verdade é que sem uma vontade nacional consolidada para contrapor a logica dos projectos acaba-se por não aproveitar o potencial do que é disponibilizado. Ainda incorre-se no risco real de suportar custos presentes e futuros de opções erradas e de projectos mal concebidos e sem encadeamento, fazendo do país um cemitério de projectos ou um parque de elefantes brancos.

A verdade é que quando não se tem um plano e uma estratégia própria não há como escapar à agenda dos outros. Há que por exemplo liquidar, privatizar ou de outra forma alienar activos para continuar a receber ajuda orçamental. Também se adotam opções de parceiros em matéria de aplicação de investimentos para poder aceder a linhas de crédito mesmo que os custos futuros ultrapassem os benefícios. E ainda se aceitam políticas de combate à pobreza, à partida sem sustentabilidade futura, apenas pelo impacto esperado durante a vigência do projecto. Os custos disso tudo, porém, não ficam por aí. Acaba-se por perder de vista a relação entre meios e fins, investimento e retorno e custos e benefícios. Depois de décadas de ajuda, fica-se admirado como a administração do Estado ainda continua desfalcado em termos de competência governativa e expertise em várias áreas.

O impacto sobre a sociedade em se manter um modelo de desenvolvimento que reproduz dependência a todos os níveis não deixa de ser inibidor de iniciativas individuais e de expressões de criatividade e motivação para inovação, em suma, de se constituir num forte empecilho ao diálogo necessário entre as pessoas e as instituições para se forjar um caminho próprio. Por outro lado, as vulnerabilidades que têm sido reveladas e dramaticamente vividas pelas populações depois de décadas de crescimento económico deviam ser alertas suficientes de que o país não deve continuar como até agora. No mesmo sentido deviam-se ter os sinais de frustração e até de desespero que se vêem manifestando particularmente entre os jovens. Tal estado de coisas, na falta de alternativas viáveis de rendimento e oportunidades, tende a provocar uma corrida aos recursos e ao controlo dos poderes dos Estado com o fito de assegurar quem os deve aceder e onde os aplicar.

A persistir no mesmo caminho não há como não reproduzir o ambiente de polarização que sustenta o bipartidarismo. Ultrapassar a situação actual significaria cortar com o círculo vicioso que mantém Cabo Verde como um país de monólogos e passar a dialogar como só é possível num ambiente de liberdade e pluralidade. E nisso há que se mover, como diria Barack Obama, com “a feroz urgência do agora”

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 994 de 16 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Acabar com as lutas partidárias na administração pública

 

O impacto das eleições autárquicas e a proximidade das eleições legislativas em Março/Abril já se faz sentir nas estruturas do Estado tanto a nível central como local.

Sucedem-se movimentações de pessoal na administração central e nos municípios que uns dizem ser fruto de retaliação politicamente motivada e outros justificam como empregos criados sem possibilidade de sustentabilidade. Multiplicam-se denúncias de funcionários que terão feito a balança eleitoral pender para um lado ou para outro seguidas de exigência das bases partidárias para se tomar medidas em conformidade de promoção ou despromoção. Nota-se o alvoroço repentino que ataca muitos – tanto os que vêm o momento como oportunidade como os outros que se sentem apreensivos perante a imprevisibilidade dos resultados. No meio disto tudo, até a demissão inesperada da ministra da Educação, alegadamente a seu pedido, não escapou às especulações, acusações e manifestações de júbilo.

O frenesim que se sente actualmente em toda a administração pública repete-se em todos os ciclos eleitorais iniciando antes das eleições e perdurando durante vários meses na renovada realidade pós-eleitoral. Mesmo durante a legislatura nunca desaparece completamente porque a pressão das fileiras partidárias mantém-se seja para pressionar, seja para denunciar, conforme o caso. O país acaba por pagar os custos da instabilidade na função pública em tudo o que respeita ao pessoal, às carreiras e aos níveis de competências e expertise que consegue acumular. Juntando-se a outros factores, não espanta que anos e décadas passadas após a criação de uma máquina do Estado ela não se revela particularmente competente e eficaz em dar corpo às orientações e políticas dos sucessivos governos nem na prestação de serviços aos utentes. Num mundo em que todos voltaram a reconhecer a importância de um Estado apto e funcional é de maior importância não mais adiar as reformas necessárias para a administração pública ultrapassar as suas actuais ineficiências, garantir isenção e imparcialidade na prestação de serviços aos utentes e mostrar-se totalmente engajada na prossecução do interesse público, independentemente da cor político-ideológica do governo do momento.

A situação da pandemia da Covid-19 veio relembrar a importância crucial de se ter um Estado capaz, ágil e sábio para se poder enfrentar os vários desafios desencadeados, entre outros factores, pelas mudanças nas configurações das forças mundiais e pelas alterações climáticas e outras ameaças globais. A proximidade das eleições não deve servir de pretexto para se repetir os jogos do passado em que uns se preparam para substituir outros enquanto tudo fica na mesma ou pior. Nas legislativas de 2016 talvez se podia ter feito diferente. O primeiro-ministro de então, já no fim dos seus 15 anos de governo queixou-se em várias ocasiões da partidarização da administração pública. Segundo ele a AP precisava ser mais imparcial, mais universal e menos partidarizada e estar mais virada para a produtividade e para o bem comum. Em face desta constatação, apesar de tardia, talvez tivesse havido possibilidade dos actores políticos chegarem a algum tipo de consenso quanto a reformas que desembocassem na reconversão da administração do estado numa força profissional construída em base meritocráticas e com uma cultura de serviço que a fizesse mais amiga das empresas, dos cidadãos e do desenvolvimento global de Cabo Verde.

Não foi todavia o que aconteceu. Rapidamente as forças políticas voltaram-se a engalfinhar à volta dos lugares na AP na perspectiva de garantir lugares para correligionários e de assegurar alavancas de poder e a oportunidade esfumou-se. Um facto que se tem muitas vezes de conviver nas democracias é que ganhar eleições não se traduz automaticamente em poder, autoridade e influência na sociedade, na economia e mesmo nas instituições. Não poucas vezes quem assume o governo depois da vitória eleitoral depara-se com a realidade da penetração ideológica da outra força política no corpo social e político do país constituindo logo à partida numa forte resistência à implementação das suas políticas. A complicação é maior na ausência de uma administração pública profissional porque ela própria se torna no principal campo de batalha na luta para traduzir a vitória nas eleições em exercício efectivo do poder. Passados quase cinco anos infelizmente a lição ainda não foi apreendida e, em vésperas de eleições, todos se preparam para repetir as lutas passadas e nos mesmos moldes. Aparentemente, mesmo com a pandemia, não se tem consciência de quão crítico se tornou para o país ter uma administração pública à altura dos desafios da actualidade.

Cabo Verde nos índices do Doing Business e de Competitividade, colocado entre 119º e 137º lugar num total de 180 países, tem sido incapaz de ganhar posição que o podiam qualificar como um país atractivo para o investimento externo, um país competitivo e facilitador da actividade privada. Contribui fortemente para isso a ineficácia da actuação estatal que afecta grandemente os custos de contexto e constrange a actividade empresarial. E isso não é segredo para ninguém. A insensibilidade da administração pública perante as necessidades do mundo de negócio de há muito que foi constatada pelos sucessivos governos. O facto de ainda não ter melhorado nos índices de competitividade e do Doing Business demonstra que as tentativas de reforma não têm tido o sucesso desejado.

Uma das razões para o fracasso tem sido precisamente a instabilidade da administração pública derivada da extrema partidarização. Uma outra razão é o protagonismo crescente de interesses corporativos que jogando muitas vezes com promessas e críticas feitas pelas forças políticas no governo e na oposição consolidam-se no seio da administração pública absorvendo cada vez mais recursos sem que a eficácia global do Estado aumente. Pelo contrário, nota-se uma tendência para mais reivindicações, mais greves mesmo nos sectores tradicionalmente mais comedidos com os de segurança. De acordo com as declarações do Vice-primeiro-ministro cerca de 40% dos mais de 7 milhões de contos de aumento nas despesas de funcionamento do Estado e verificados entre 2016 e 2020 foram para cobrir aumentos salariais, promoções, progressões e requalificações acordadas ou prometidas anteriormente. O país e a sociedade, entretanto, não deixam de notar que apesar dos agentes e estruturas do Estado absorverem um maior quinhão da riqueza nacional não viram maiores benefícios em termos de eficácia da acção estatal com impacto na actividade económica.

A desigualdade social crescente entre quem está no Estado e quem depende do sector privado formal ou informal poderá a prazo criar problemas. Com a pandemia viu-se que houve aqueles que ficaram com os salários intactos e os que tiveram de se contentar com os programas de lay-off ou com subsídio de desemprego à medida que as actividades económicas se iam reduzindo com o avanço da crise sanitária. Não é uma situação que deva perdurar. Melhorar a eficácia do Estado deve ser uma tarefa vital para os próximos tempos e não se compadece com a continuidade das lutas políticas pelo controlo da administração pública que até agora só tem levado a mais custos para os contribuintes sem que se vejam os benefícios. Melhorar o Estado para que se criem e se aproveitem as oportunidades é tarefa urgente e fundamental para se voltar aos caminhos de prosperidade com liberdade e paz social. Das próximas legislativas deve vir um pacto nesse sentido.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 993 de 9 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Conflito despropositado

 

No passado dia 25 de Novembro o país foi surpreendido por uma declaração, assinada pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça com excepção da presidente, que no essencial diz que o poder judicial foi alvo de uma das investidas mais afrontosas à sua dignidade e que enquanto se mantiver o clima de hostilidade e de desconsideração à dignidade do poder judicial não vão comparecer a qualquer acto ou solenidade oficiais.

A investida afrontosa teria sido a intervenção de uma deputada no âmbito do debate anual sobre o estado de Justiça em que para demonstrar a necessidade de uma justiça eficaz e em tempo útil se serviu do caso em que magistrados judiciais depois de acusados de vários crimes e ilibados por uma investigação do ministério público apresentaram queixa por calúnia e difamação contra o autor e ainda estão à espera do julgamento. Em Fevereiro de 2019 o caso foi ao tribunal mas o juiz posteriormente pediu escusa e o julgamento ficou suspenso. Por decisão recente vai ser retomado em Janeiro de 2021.

Compreende-se o sentimento de frustração dos magistrados perante um caso que os afecta directamente na sua dignidade e que dura tanto tempo a ser resolvido. Não parece razoável é que queiram imputar à deputada na sua intervenção na plenária da Assembleia Nacional “o propósito de emprestar credibilidade a impropérios deferidos contra certos magistrados”. O discurso do deputado na plenária da AN goza de imunidade mas está sujeito ao contraditório das forças políticas presentes num parlamento que é plural. Partes do discurso até podem ser retiradas da acta por decisão do Presidente ou do plenário. Não foi o caso como os próprios magistrados reconhecem na declaração ao se referirem ao facto de em nenhum momento se ter uma só voz a convidar a deputada a respeitar o bom nome de cidadãos indefesos. Ou seja, o mais provável é que não houve propósito de desrespeito e o silêncio de todos os outros sujeitos parlamentares dificilmente pode ser interpretado como “quem cala, consente”.

No parlamento ninguém é calado e ninguém é forçado a consentir. As imunidades, o estatuto de oposição, os direitos das minorias e os procedimentos de garantia do exercício do contraditório existem para assegurar isso. Neste sentido, é claramente excessivo extrair da não contestação do discurso da deputada um eventual posicionamento do parlamento de hostilidade em relação ao poder judicial e presumir que mereceu aprovação dos demais órgãos de soberania porque de nenhum deles houve pronunciamento sobre o assunto nos 27 dias seguintes. Os factos, quanto à relação do poder político com o poder judicial, apontam no sentido oposto.

As sucessivas revisões constitucionais e particularmente a revisão de 2010 sempre traduziram-se em mais independência para os juízes e mais autonomia para o ministério público. As leis aprovadas pelo parlamento em sucessivas legislaturas, tanto em matéria organizacional e funcional dos tribunais e das procuradorias como em matéria cívil e criminal e de aumento da capacidade de autogestão das magistraturas, têm beneficiado de um elevado grau de consenso entre as forças políticas, algo que não se vê noutros sectores da governação. Da mesma forma, os sucessivos governos têm sido pródigos em dispensar meios e recursos para o sector dentro das normais limitações orçamentais. O que vem aumentando é a insatisfação com a administração da justiça traduzida em vários apelos para diminuir a morosidade, aumentar a produtividade e melhorar a qualidade, em particular quando está a ficar cada vez mais claro que a falta de eficácia não é só uma questão de meios insuficientes.

Agora parece que às frustrações das pessoas e do cidadão comum vêm-se juntar à insatisfação de magistrados judiciais que, de há muito, esperam que a justiça se realize e sejam reparados por alegadas calúnias e difamações dirigidas contra eles. Pode ser um bom momento para uma reflexão aprofundada sobre o sistema de justiça que não seja prejudicada por interesses político-partidários e por outros de natureza corporativa.

A democracia e o Estado de direito democrático tem na sua base o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, pelo primado da Lei e pela independência dos tribunais. O regime perdura se se assegurar a existência de um poder judicial em que todos podem confiar e que não se deixe condicionar ou limitar por outros poderes do estado e interesses privados. Nesse sentido, é de maior importância dotar as magistraturas da capacidade de autogestão para desempenharem as duas funções sem dependências e sem condicionalismos. Também serem capazes de adoptar uma ética e um ethos essenciais para o exercício da função com competência e sentido do bem público é fundamental para a credibilidade junto ao público, para manutenção de um ambiente de liberdade, paz e justiça e para o equilíbrio dos poderes no sistema democrático.

Na revisão da Constituição de 2010 o legislador constituinte revelou-se bastante inovador com o modelo de autogestão das magistraturas. Foi-se em vários aspectos muito além do que se encontra noutras democracias. Entre outras inovações, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deixou de ser o presidente do Conselho Superior de Magistratura (CSMJ), as secretarias judiciais passaram para a superintendência do CSMJ e alterou-se a composição do STJ que ficou aberto apenas a magistrados judiciais. Mais responsabilidades e mais meios foram disponibilizados nestes últimos dez anos ao sector da justiça mas é evidente que ninguém está satisfeito. Houve progresso visível em vários domínios mas a questão central da morosidade e as dificuldades em operacionalizar um serviço de inspecção judicial efectivo tem sido matéria sempre retomada no debate parlamentar anual do estado da Justiça. A isso tudo poderá não estar alheio algum corporativismo que por várias formas tende a emperrar o funcionamento de sistemas com perdas de eficácia visíveis.

Passados dez anos após a revisão da Constituição que adoptou o novo modelo de gestão do sistema de justiça talvez seja oportuno uma avaliação das suas virtudes e defeitos e dos seus custos e benefícios no sentido de se encontrar a melhor via para aumentar a eficácia da Justiça. O momento parece o mais apropriado considerando que todos, incluindo os próprios magistrados, se mostram insatisfeitos com a actual situação. É, porém, mais aconselhável para todos os actores no sistema democrático ir por uma via construtiva de diálogo alargado do que entrar por um jogo de culpas mútuas que, como em geral acontece nas críticas ao sistema políticos nas democracias, acabam por fazer do parlamento o alvo principal. Tão pouco é aconselhável subtrair-se aos momentos solenes do sistema democrático como é o do Início do Ano Judicial presidida pelo presidente da República e da responsabilidade do Supremo Tribunal de Justiça que nos últimos anos tem sido realizado nos primeiros quinze dias de Novembro, evocando um suposto “clima de hostilidade institucional”.

Todos têm a responsabilidade de construir para a presente e futuras gerações um Cabo Verde de liberdade, paz e justiça. Como bem dizia alguém, não há maior privilégio do que estar presente no momento da criação. Há que assumir o papel histórico que a cada um coube desempenhar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 992 de 2 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

País do faz de conta

 

Na semana passada os meios de comunicação social e as redes sociais estiveram saturadas de notícias e posts a descrever, a opinar e a reagir às eleições da mesa de assembleia municipal, primeiro em S. Vicente e depois na Boa Vista.

Controvérsias diversas surgiram à volta da interpretação de vários artigos entre os quais o 67º n.2 , o 68º n.1, e o 81º n.1 a) dos Estatutos dos Municípios que incidem sobre o processo de instalação do órgão autárquico e sob o modo de eleição do presidente, vice- presidente e secretário. Para uns, é claro que o n.2 do artigo 67º estabelece que a “mesa provisória presidida pelo primeiro nome da lista mais votada e secretariado pelos dois membros mais novos” deve proceder “à eleição dos outros membros da mesa”. Para outros, a eleição deve ser feita como se o articulado da norma fosse a mesma do n.1 do artigo 45º da lei portuguesa sobre as autarquias, que diz que a mesa deve presidir a primeira reunião para efeitos de “eleição do presidente e secretários da mesa”.

Esgrimidos todos os argumentos e feitas todas as jogadas políticas e deixando de lado eventuais diferenças na interpretação sistemática da lei, a verdade é que pelos resultados das eleições nas duas ilhas, fica-se com a impressão que algo não bateu certo. Nos dois casos, a força política com a maioria de votos conseguidos nas urnas ficou excluída da mesa da assembleia municipal. Como justificar a falta de correspondência entre a representação na mesa e a configuração das forças políticas saída das eleições quando se sabe que essa é uma regra seguida em todos os órgãos colegiais, a começar pela Assembleia Nacional que distribui os cargos de presidente, vice-presidentes e secretários de acordo com os resultados eleitorais?

Há quem argumente que é a democracia a funcionar no seu pleno, outros que dizem que é um possível ensaio de uma “geringonça” nacional para futuros usos no plano nacional e há quem simplesmente diga que perante a vontade da maioria todos têm que se dobrar. Razões à parte, o mais provável é que se trata de uma jogada política com eventual desgaste de uns e proveito de outros com vista às eleições legislativas que se prevêem para Março próximo. De facto, não se pode realmente falar de uma “geringonça à portuguesa” porque das assembleias municipais não saem soluções de governação dos municípios visto que o órgão executivo, a câmara municipal, é directamente eleito e o presidente da CM é o primeiro da lista mais votada. Por outro lado, é duvidoso que é pelo controlo da mesa da assembleia municipal e exclusão de outros que se melhora o grau de fiscalização da câmara municipal ou se cria o ambiente próprio para os acordos, compromissos e consensos necessários à prossecução dos interesses dos municípios.

Se é legítimo que forças políticas procurem posicionar-se com vantagem para futuros embates eleitorais não é razoável que no processo acções que mais parecem “chicanas políticas” ponham em causa a efectividade dos órgãos eleitos e desvirtuam o sentido do voto dos cidadãos. Já tinha acontecido acontecido algo similar em São Vicente em que na primeira Assembleia Municipal da ilha um representante da força política menos votada nas autárquicas de 1991 foi eleito presidente da mesa pela força do voto maioritário do grupo de cidadãos MPRSV. Ninguém então ganhou com essa jogada política e muito menos o partido que se prestou a isso, como se pode comprovar ainda hoje.

Nas democracias a vontade da maioria só é legítima se exercida no quadro constitucional e legal. Outrossim, é fundamental que haja um consenso alargado sobre a necessidade de cumprimento das normas existentes para que negociações entre os partidos sejam produtivas, os compromissos assumidos sejam honrados e a confiança que mantêm intacto o pacto social e político seja renovada. Para alguns que avaliam o diálogo actual entre as forças políticas como difícil e aconselham ou desejam resultados eleitorais que não garantem maiorias absolutas podem ir já se preparando para grandes sobressaltos. Governos minoritários terão muitas dificuldades num quadro constitucional que exige a aprovação por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções da moção de confiança indispensável para iniciar a governação e não simplesmente a inexistência de uma moção de rejeição como em Portugal. Também dificilmente se poderá governar se as leis têm que ser aprovadas por maiorias absolutas e não com maiorias simples em que abstenções não contam.

É caso para pensar que é preciso ter algum cuidado com os desejos ou sonhos. Uma maior fragmentação do espectro partidário no país poderá não trazer mais diálogo entre as forças políticas mas certamente que resultará em maior instabilidade governativa. Está-se para ver como vai evoluir a “inovação” introduzida na Boa Vista de se permitir a apresentação de candidaturas só num dos dois órgãos do poder local quando aparentemente soluções viáveis de governação requerem presença nos dois. A pergunta que fica é se nos próximos embates eleitorais haverá candidaturas só para as câmaras e outras só para as assembleias.

A cultura política prevalecente de pisar os direitos das minorias sempre que a situação se propiciar não ajuda a que se crie a confiança necessária a um diálogo entre as partes. Por várias razões a alternância política verificada tanto ao nível nacional como ao nível local ainda não se mostrou suficiente educativa a esse respeito. O país, porém, assim como noutras coisas, faz de conta que vive uma outra realidade onde não existem as insuficiências várias em termos de autonomia das pessoas e fragilidades da sociedade civil que deixam a democracia aberta a ataques de demagogos e populistas de toda a espécie. Nem os efeitos da pandemia da Covid-19 se têm revelado capazes de moderar as posições e abrir caminho para o diálogo que vai ser necessário para enfrentar os desafios enormes que o país tem à frente.

Há que arrepiar caminho porque as próximas eleições não devem ser pretexto para uma maior polarização do país. Mais do que nunca o futuro vai depender da convergência de posições que se conseguir produzir neste momento crucial. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 991 de 25 de Novembro de 2020.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Parar de Cavar

 

Sempre que a questão da TACV vem à baila o governo é peremptório a dizer que “a CVA continuará a existir e a ser a companhia de bandeira”. Para qualquer observador não deixa de ser temerário fazer uma afirmação dessas nos tempos actuais da pandemia da Covid-19, de forte recessão mundial e de crise profunda no sector da aviação comercial.

Se para países altamente desenvolvidos como a Alemanha a decisão de financiar a Lufthansa para sobreviver os momentos difíceis que os especialistas do sector dizem que vão prolongar-se até pelo menos 2024, para outros mais modestos como a Islândia essa não é uma opção que possam considerar.

No caso de Cabo Verde com as fragilidades estruturais da sua economia e a dívida pública a aproximar-se dos 150% do PIB uma decisão de tal envergadura pelas suas implicações financeiras deveria merecer a maior ponderação. Não é porém o que recebe. Qualquer debate sobre o estado actual e o futuro da TACV desperta paixões avassaladoras e é motivo de troca de acusações mútuas entre as forças políticas. Em geral, soluções não são apresentadas e dos embates só se depreende que há acordo genérico e vontade em preservar a empresa aparentemente mesmo à custa do endividamento.

O último aval do Tesouro para a empresa se financiar foi concedido com a justificação que se impunha pagar os salários em atraso aos trabalhadores. Avales anteriores de várias centenas de milhares de contos procuraram viabilizar operações da companhia em vários momentos quando procurava desenvolver um hub na ilha do Sal que iria ser instrumental na movimentação de passageiros entre Europa e América do Sul e entre Africa e América do Norte. Os mais recentes avales porém têm suportado financiamentos de custos fixos existentes não obstante a companhia aérea ter deixado de voar desde 19 Março com o fecho das fronteiras devido à pandemia da Covid-19.

Sem estar a gerar receitas e com o próprio plano de negócios inviabilizado com a crise no sector é evidente que os avales do Estado tornaram-se operações de alto risco com implicações no défice orçamental e dívida pública. A empresa dificilmente hoje ou no futuro próximo terá condições de cumprir as suas obrigações junto dos credores deixando o Estado completamente exposto. Significativamente, quem parece que não ficou exposto no negócio é o grupo Icelandair. No seu relatório de contas deixa claro que a sua exposição ao associado TACV/CVA é zero e que nas transacções com a empresa as receitas geradas pela Cabo Verde Airlines ascenderam a 37,2 milhões de dólares e as despesas a 1,1 milhões de dólares.

Privatizações de empresas estatais acontecem por várias razões. São essenciais, por exemplo, quando se faz a transição de uma economia estatizada para uma economia do mercado como aconteceu nos anos noventa do século passado em Cabo Verde e nos vários países que deixaram o bloco soviético para se juntarem à economia mundial. Privatiza-se também para se liberalizar ainda mais a economia e potenciar a iniciativa privada como aconteceu na América e na Europa na sequência das políticas de Reagan e de Margaret Thatcher. Noutras situações, opta-se por privatizar empresas para diminuir o risco fiscal e conseguir receitas extraordinárias. No caso da TACV, era óbvio que devia ser privatizado por ser um risco sério para as finanças do Estado. Nos fins de 2015 e início de 2016 viu-se que também se tinha tornado num risco político para qualquer governo particularmente em tempo eleitoral. Desencadeou-se o processo sob a batuta do Banco Mundial que para o efeito fez questão de reter a ajuda orçamental (40 milhões de dólares) até que o processo ficasse completo. O grande problema é que mesmo com a privatização os riscos não foram eliminados e com a Covid-19 estão a ganhar proporções assustadoras.

A opção feita de privatização centrou-se na construção de hub na ilha do Sal que iria movimentar passageiros entre os vários continentes. Para além do impacto geral na economia que se esperava dessas operações ainda se queria incentivar o turismo no país através da promoção de Cabo Verde como um stopover na travessia da Atlântico. Para isso, ter como parceiro estratégico uma das empresas que constituem o grupo Icelandair mostrava-se promissor considerando a experiência e o sucesso do grupo em construir um hub no Atlântico Norte com stopover na Islândia. Seria uma jogada de risco mas que permitiria potenciar vários activos da TACV em algo que, se bem-sucedido, poderia constituir-se num grande ganho para o país.

Pelo relatório de contas do quarto trimestre de 2019 do grupo Icelandair ficou claro porém que sem um forte financiamento das operações do hub, o negócio correria sérios riscos. Aparentemente, a parceria estratégica não incluía uma componente financeira como normalmente se vê nos casos de privatização de companhias aéreas. Estranhamente, parece que o parceiro estaria a contar com o Estado para comparticipar do esforço financeiro quando, ao mesmo tempo, o governo com a venda das restantes acções até Dezembro de 2019, queria cumprir com o Banco Mundial e ver-se livre do risco associado. A meio do impasse criado, veio a pandemia e tudo parou. Não se realizaram mais voos mas continuaram os custos com os trabalhadores e supõe-se também com o leasing dos três aviões que, entretanto, foram estacionados na Flórida.

A questão que se coloca é se o plano de negócios do hubjá não existe, desapareceu”, como disse o Vice-Primeiro Ministro (VPM), por que é que os accionistas até agora não chegaram a acordo em como agir para conter e controlar os prejuízos e tomar uma decisão em relação ao futuro. Está-se a pagar o leasing dos aviões nos mesmos termos de antes? Será possível rentabilizar a empresa regressando ao plano de negócios anterior dos voos étnicos e de conexão com Lisboa, como foi sugerido pelo VPM, quando já se descontinuaram as operações domésticas e a regional? Vai-se continuar com um accionista que mais parece ser fornecedor de serviços de leasing de aviões do que o parceiro estratégico que aposta no negócio de criação de um hub no Atlântico? Vai-se deixar protelar uma situação que tudo leva a crer só irá piorar no estado actual da pandemia com custos impressionantes para o país porque mais uma vez a TACV está-se a revelar um risco político e os accionistas sabem disso? Há que pôr fim ao impasse que se vem arrastando ao longo de largos meses desde Março. Como bem disse alguém “Quando estiver no fundo do poço, a primeira coisa a fazer para sair dele é parar de cavar”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 990 de 18 de Novembro de 2020.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Confiança no processo democrático

 

A vitória de Joe Biden nas eleições americanas provocou um suspiro de alívio em quase todo o mundo. A perspectiva de finalmente deixar para trás a presidência desastrosa de Donald Trump permite que se encare o mundo com menos incertezas e que se espere da actuação dos Estados Unidos da América, no plano internacional, um efeito congregador de esforços de todos os países na resolução dos problemas globais.

Emergências planetárias como a pandemia da Covid-19 e as alterações climáticas que requerem intervenção coerente e sistemática de todos os países tinham-se tornado difícil ou impossível de se conseguir depois da actual administração americana se ter desertado do Acordo de Paris sobre o clima e adoptado uma gestão caótica da luta contra o coronavírus.

Também a democracia sofreu em todo o mundo assinalando-se em vários países o aparecimento de líderes populistas e a adopção de políticas iliberais que em vários graus levaram ao enfraquecimento das instituições e a uma deriva autocrática. Uma outra consequência foi o enfraquecimento do multilateralismo que entre vários efeitos prejudiciais sobre a ordem internacional nos domínios de segurança, saúde e comércio prejudicou a solidariedade entre as nações e incentivou fenómenos de desagregação supranacionais como o Brexit na Europa. Não admira que ao longo de toda a semana passada a contagem dos resultados da votação tivesse sido seguida com ansiedade em todo o mundo e houvesse uma explosão de alegria depois da confirmação da vitória de Joe Biden. Como várias vezes já se disse, meio a brincar, todos deviam poder votar nas eleições americanas considerando o impacto que têm no mundo.

Da América, não poucas vezes são visíveis as tendências em termos de fenómenos políticos, sociais e culturais que depois acabam de uma forma ou outra por ser adoptados localmente. Vários são os comentadores que, por exemplo, tomam a derrota de Donald Trump como o prenúncio do enfraquecimento de autocratas e seus imitadores que se têm proliferado nos últimos tempos por todo o mundo. Outros porém vêem na grande votação que mesmo assim ele recebeu os sinais de que os sentimentos, medos e ressentimentos que o projectaram não desapareceram. Pelo contrário, aumentou o número dos que nele votaram e de forma abrangente incluindo minorias e estratos sociais que supostamente seriam os alvos dos seus ataques designadamente os latinos, os afro-americanos, as mulheres e as pessoas LGBT.

Esperava-se nessa eleição uma “onda azul”, fruto da incompetência, insensibilidade e promoção do discurso do ódio constatadas por todos nos últimos quatro anos, que sob a liderança do partido democrata resultasse numa vitória retumbante sobre Trump e o trumpismo. O facto de não ter acontecido como esperado dá indícios que a dinâmica das políticas identitárias continua bastante viva mas que preocupações com a economia, a segurança, a boa governação e a imagem das instituições acabaram por sobrepor-se, ainda que por uma margem pequena. O grande desafio da democracia americana será saber como sair da política tribal de “nós” contra “eles”, que leva a bloqueios políticos e ao exacerbar dos radicalismos nos dois lados, para uma política de compromissos, que deixa espaço para acomodar posições das partes, possibilidade de consensos em questões fundamentais e estratégicas.

As democracias em todo o mundo estão em crise precisamente porque há uma percepção forte nas pessoas e na sociedade que o processo político não está a dar respostas às questões essenciais. Apontam-se falhas como a corrupção persistente, a falta de alternativa real de governação (aparentemente todos fazem o mesmo) e a deficiência de representação política (interesses outros são privilegiados). Todos as vêem mas não há acção concertada para as ultrapassar. Entretanto, a desigualdade social aumenta, diminuem as oportunidades de mobilidade social e bolsas de pobreza consolidam-se. Com a desesperança instalada o território fica fértil para os extremos em matéria de imigração, de convicção religiosa, de raça e de género se digladiarem, provocando ondas crescentes de xenofobia, racismo, discursos de ódio e terrorismo religioso. As instituições e os políticos descredibilizam-se e gera-se uma situação em que muitos em novas e antigas democracias se deixam tentar por discursos de autocratas e práticas iliberais de atropelo de direitos fundamentais. A pandemia da Covid-19 veio, porém, lembrar a importância da governação que prima pela competência, pela honestidade e pela adesão à verdade factual e científica. Da América já há um sinal nesse sentido e também um aviso.

O voto expressivo no trumpismo deixa transparecer que há ainda muito por fazer para evitar que a situação crítica vivida pelas pessoas ganhe contornos existenciais e a partir daí se deixem envolver em lutas identitárias e se predispõem a aceitar práticas de governação contrárias à democracia e à liberdade. Com a vitória do Joe Biden foi dado a oportunidade para se reparar os males que têm acompanhado o processo acelerado de globalização, a liberalização dos capitais, a mudança para o digital e o recrudescer das migrações internacionais. É o momento para se restaurar a política e a confiança que é possível encontrar soluções para os graves problemas com que todos se deparam. Nas democracias em geral o sentimento é que foi quebrado o contrato social vigente ao deixar-se que a riqueza concentrasse nuns poucos, que o Estado se mostrasse impotente perante interesses particularmente do sector financeiro e ao mesmo tempo incapaz de conter o declínio da classe média e de quebrar as bolsas de pobreza que todos os dias se alargam. Há que inverter a situação e reconstruir um contrato social que dê esperança e confiança às pessoas. O futuro da liberdade e da democracia depende disso.

Em Cabo Verde a pandemia da Covid-19 veio pôr a nu mais uma vez e de forma dramática as profundas vulnerabilidades do país. Ao crescimento económico que já tinha atingido os 5,7% em 2019, depois de anos de estagnação na primeira metade da década, vai suceder uma contracção na ordem dos 8%. Já os anos de seca de 2016-2019, pelo impacto que tiveram na população rural, tinham dado conta da precariedade de existência em vários pontos do território nacional. Ficou claro que os enormes investimentos feitos nos anos anteriores e que elevaram a dívida pública a 126% do PIB não traziam os benefícios prometidos. Com a pandemia a dívida em Dezembro, segundo o BCV, vai atingir os 150% do PIB.

A questão que se coloca é como no quadro democrático e mantendo os equilíbrios na sociedade e a paz social se vai lidar com os problemas difíceis de perda de emprego e perda de rendimento devido à covid-19 e a quebra na actividade turística. O ciclo eleitoral já se iniciou com as eleições autárquicas de Outubro mas pelo teor das promessas feitas pelas diferentes forças políticas não é evidente que estivessem a tomar em devida consideração a situação real do país. Para as legislativas deverá haver uma outra atitude. O ilusionismo na política em Cabo Verde é uma prática que vem de longe mas que já tarda em pôr um fim. Perde-se tempo e delapida-se a confiança das pessoas e da sociedade quando mais se precisa. Como as eleições americanas eloquentemente demonstram é fundamental manter a confiança no processo democrático para evitar lutas “tribais” e descredibilização das instituições. Garantido isso, as soluções para todos os desafios poderão ser encontrados. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 989 de 11 de Novembro de 2020.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

No rescaldo das eleições autárquicas

 

Larry Diamond o cientista político americano de renome mundial nos estudos da democracia escreveu na semana passada no jornal New York Times que regimes democráticos suportam-se em três pilares: a liberdade, o primado da lei e eleições livres, plurais e justas.

Disse isso a propósito das eleições americanas de 3 de Novembro de 2020 cujo desfecho ele próprio espera que venha pôr um fim à uma deriva iliberal que tem procurado abalar, senão deitar abaixo esses pilares. No seu texto constata que a liberdade e, em particular, a liberdade de expressão e de imprensa não têm sido limitadas apesar do feroz ataque à comunicação social vindo de vários quadrantes e que o império da lei tem não foi posto totalmente em causa apesar do funcionamento deficiente e inconsequente de instituições e entidades importantes da república. Caso diferente porém tem acontecido com o direito ao voto e a organização das eleições.

Múltiplas interferências no processo eleitoral foram feitas para impedir as pessoas de votar. Acções judiciais têm sido introduzidas para bloquear a aceitação de boletins de votos. Alimenta-se permanentemente a desconfiança sobre os resultados finais das eleições levantando o fantasma da fraude. O actual presidente Donald Trump até chega ao ponto de deixar pairar no ar dúvidas se aceitará uma derrota eleitoral e fazer a transferência de poder, o ritual fundamental das democracias em que se reconfirma que os mandatos são efectivamente limitados e que a possibilidade de alternância é sempre garantida. O espectáculo deprimente que tem sido a corrida eleitoral americana com todas as tentativas de manipulação das eleições abalou a imagem da democracia americana e veio demonstrar que nenhuma democracia, mesmo a mais antiga, não está a salvo de convulsões que podem pôr em risco a sua existência se os princípios de honestidade, integridade, decência e adesão à verdade e aos factos são escamoteados. Em tempos de crise, como a provocada pela da covid-19 que para além de ser sanitária também é económica e social, a ausência desses princípios na classe política e na própria sociedade são ainda mais gravosas. Traduzem-se em mortes e sofrimentos desnecessários e quebras na prosperidade que levarão anos a recuperar como se pode hoje constatar na América de Trump.

Cabo Verde, já imerso no seu sétimo ciclo eleitoral e a cerca de dois meses de celebrar a sua transição para o regime democrático, deve poder avaliar do estado dos pilares da democracia de que fala Larry Diamond. Começando pelo pilar das eleições livres e justas, a realização recente das eleições autárquicas a 25 de Outubro permite observar que o nível de organização do processo eleitoral tem melhorado consideravelmente não se registando as disputas eleitorais acrimoniosas verificadas no passado. Incidentes continuam a acontecer ou porque se teima nalguns sítios em fazer a chamada boca de urna ou persiste a desconfiança de que há tentativas de compra de bilhetes de identidade e de se usar outras manobras para impedir as pessoas de votar ou coagi-las a dar o seu voto num determinado sentido. Acusações mútuas são trocadas entre as forças políticas com maior veemência por parte dos vencidos, mas na generalidade dos casos sem a apresentação de provas convincentes para além do “diz que diz” e em muitos casos como justificativa para resultados abaixo das expectativas.

Recursos judiciais levados a cabo durante o processo eleitoral serviram para clarificar certas matérias designadamente no que respeita à liberdade de propaganda política que tirando a obrigatoriedade do acesso igual das forças políticas concorrentes a recursos públicos disponibilizados não deve ser limitada em nome do princípio de igualdade como se pretendeu. Também importante foi a decisão do Tribunal Constitucional em considerar inconstitucional a norma do Código Eleitoral que exigia aos subscritores de listas de grupos de cidadãos que mostrassem prova de não estarem vinculados a partidos políticos. Era uma restrição de direitos políticos que não se justificava e que vai na linha de impedimentos cuja natureza os devia fazer depender mais da responsabilidade individual ou dos partidos do que de uma acção coerciva do Estado que pode pecar pela desproporcionalidade e infringir no essencial dos direitos fundamentais.

A questão que se pode colocar, em certos aspectos similar ao que nos Estados Unidos chamam de princípio de Purcell, é se os tribunais podem mudar as regras do jogo, ou seja, as normas do Código Eleitoral nas vésperas de um pleito eleitoral enquanto o parlamento dez meses antes não o pode fazer. De qualquer forma os sucessivos posicionamentos do TC no sentido de libertar a lei eleitoral de restrições excessivas estão a contribuir para tornar mais pleno o direito de votar e contrariar uma cultura partidária que já vinha fazendo escola, de compra de votos e de bilhetes de identidade e também de exploração de qualquer discrepância nos cadernos para impedir as pessoas de votar. O caminho no sentido de eliminar desconfianças no sistema eleitoral é fundamental para a saúde da democracia como o exemplo actual dos Estados Unidos faz relembrar.

Também importante para a integridade do sistema político é manter a confiança na justiça e no Estado de Direito de democrático, um outro dos três pilares referidos. Confiança ganha-se e renova-se sempre que a justiça é realizada com qualidade e com todas as garantias, mas em tempo útil. Como em qualquer outro sector da vida nacional seja ele educação, saúde, habitação ou infraestruturas a disponibilização de meios materiais e humanos no nível desejável a todo o tempo não é possível, pois os recursos são escassos. A constatação de deficiências não deve, porém, constituir-se em justificação suficiente para a morosidade da justiça. E é assim porque há uma expectativa quanto à realização da justiça que não pode ser defraudada sob pena de descrédito. Quer-se um nível de produtividade aceitável na resolução de casos e que o público tenha a percepção que infractores estão a ser julgados e que prescrições, falhas no processo e não cumprimento das garantias de defesa não serviram de fundamento para não se acusar e julgar. Espera-se por isso um esforço maior da magistratura e toda a estrutura judicial para garantir que a confiança no sistema não seja beliscada. Diferentemente da educação e da saúde em que objectivos não cumpridos são sujeitos à penalização política e a possibilidade de mudança de políticas, uma justiça em queda de confiança abala todo o regime democrático. Os outros dois pilares do regime – liberdade e eleições livres – só conseguem manter-se se o sistema judicial independente do poder político for suficientemente eficaz. Para isso é fundamental o engajamento de todos, não só dos magistrados como da classe política e de toda a sociedade.

Quanto ao pilar da liberdade, a acção do Estado nestes tempos de covid-19 pode vir a revelar-se uma ameaça. Como já foi constatado em várias paragens, governos e outras instituições do Estado são tentados em tornar permanentes poderes e competências assumidas na luta contra a pandemia e que inclui restrições diversas, aumento da dependência dos indivíduos em relação ao Estado e maior controlo da actividade económica. Para atingir esses fins alguns não hesitam em contornar a lei, comprimir direitos fundamentais e forçar algum alinhamento do sistema judicial. Há mesmo quem em nome da crise queira interferir com eleições e prolongar mandatos. Na justificação por esse acréscimo de poder do Estado recorre-se à necessidade de acção coerciva do Estado porque as pessoas não cumprem com as regras de distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos e meio circundante. De facto, como a transmissão do vírus é fundamentalmente via aerossóis expelidos nos actos normais de respirar e falar, um papel essencial para quebrar eventuais cadeias de contágio cabe a cada pessoa. Todos devem assumir, cumprindo as regras referidas, como uma espécie de disjuntor que corta a corrente. É um exercício de responsabilidade individual que para além dos ganhos imediatos no combate à epidemia ajuda a salvaguardar a liberdade, porque retira ao Estado razões para manter restrições diversas, situações de confinamento e estados de emergência que, quando perduram no tempo, acabam por inevitavelmente enfraquecer as democracias. O que se passa nos Estado Unidos veio demonstrar que todas as democracias são vulneráveis. É de suma importância que se salvaguarde a integridade dos três pilares que as suportam. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 988 de 4 de Novembro de 2020.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Eleições em tempos de crise

 

Com a realização das eleições autárquicas no domingo passado deu-se o pontapé de saída para o ciclo eleitoral 2020-21 que inclui ainda eleições legislativas e presidenciais separadas umas das outras em média por períodos de seis meses. É um ciclo especial porque a proximidade das eleições aumenta extraordinariamente a possibilidade de contágio, ou seja, de os resultados de uma eleição afectar a outra.

Aconteceu há cinco anos atrás: a maioria esmagadora das câmaras municipais foram ganhas pelo partido vencedor das legislativas e ao maior partido da oposição coube apenas duas em 22 câmaras. Agora, porém, a sequência das eleições, primeiro autárquicas e depois legislativas e por fim presidenciais, é inversa. A expectativa geral é como o efeito de contágio ir-se-á manifestar.

Os resultados eleitorais já conhecidos dão conta de que algum reequilíbrio no controlo das câmaras já se verificou com o MpD com catorze e o PAICV com oito ultrapassando a situação algo anómala que saiu das eleições anteriores. Por outro lado, viu-se que tendo os dois grandes partidos lançados na campanha das autárquicas de forma que mais parecia um ensaio para as legislativas o mais natural é que, dependendo dos resultados, quisessem condicionar leituras políticas da sua prestação e melhorar a imagem. Câmaras ganhas ou perdidas em número e em valor simbólico iriam juntar-se a outros elementos e factores para aparecerem como os favoritos nos embates seguintes. Ninguém aparentemente esperava que houvesse um resultado com o potencial de mudar as regras do jogo, ou seja, de ser um “game changer”. A inesperada vitória do PAICV na capital do país terá sido um sinal de que eventualmente o país poderá estar aberto à alternância na governação. Aconteceu algo similar nas eleições autárquicas de 2004 em que a então oposição conquistou um número significativo de câmaras emblemáticas mas depois a mudança não se concretizou. No caso actual com a proximidade das legislativas o mais provável é que ninguém queira correr riscos e todos se precipitem já na campanha eleitoral relegando tudo para segundo plano.

O grande problema é que o país e o mundo enfrentam no momento uma pandemia que, para além de ser um grave problema de saúde pública, já se transformou numa crise económica e social afectando todos os aspectos da vida das pessoas com particular impacto na educação e formação de crianças e jovens. Em tal contexto é evidente que a perspectiva de uma focalização da atenção do governo e das forças políticas numa pré-campanha meses antes das legislativas não é reconfortante para ninguém, nem é recomendável. O pior que pode acontecer é assistir-se à repetição do que se viu antes e durante as últimas eleições em que governantes e dirigentes políticos concentraram-se em lutas locais para controlo dos órgãos municipais enquanto prioridades nacionais como a luta contra a Covid-19, a retoma da actividade económica nas ilhas turísticas e o processo educativo não recebiam a atenção desejada.

Realizar eleições democráticas em tempos de crise não é tarefa fácil. O facto das eleições de domingo passado se terem desenrolado sem problemas de maior é um sinal forte do nível institucional já conseguido no domínio eleitoral e também do elevado civismo da população que mesmo em situação de fortes constrangimentos se prestou a ir ordeiramente às urnas. O engajamento das pessoas e os muitos recursos utilizados constituem razão mais do que suficiente para que a democracia não signifique apenar ir periodicamente votar. Nesse sentido, projectos políticos apresentados e promessas feitas aos eleitores devem ser exequíveis e enquadraram-se no âmbito das atribuições e competência dos órgãos que vão ser eleitos. De outra forma não passam de compromissos tomados no vazio que desacreditam os políticos e a política e permitem aos eleitos exercerem o poder sem a responsabilidade e a necessidade de prestação de contas, essencial ao funcionamento democrático.

O poder local também é beliscado quando em campanha promessas são feitas que só podem ser realizados no quadro das opções do governo e recorrendo aos recursos do Estado. O municipalismo que tem na sua base o princípio de que os interesses locais não se esgotam no interesse nacional e que a prossecução desses interesses deve ser feita autonomamente por órgãos próprios fica prejudicado quando em processo eleitoral se proclamam alinhamentos partidários com o governo e se recorre massivamente a presença de membros do governo mesmo que nominalmente na sua condição de dirigente partidário. Apesar de se dizer que não existe nenhum impedimento na lei, não deixa de haver dever de reserva que limita a participação de figuras do governo e do Estado para não ferir o sentido de autonomia que constitucionalmente está na base do poder local. Não é por acaso que os municípios estão apenas sujeitos à tutela da legalidade, excluindo qualquer tipo de tutela de mérito.

O diluir de fronteiras entre as competências locais e as nacionais que se constata na prática leva a que muitos munícipes vejam na actuação dos eleitos excessivas preocupações com políticas e rivalidades partidárias de carácter nacional em detrimento de uma focalização na resolução dos problemas locais. O cansaço e o descrédito de muitos em relação a esta situação poderá estar na base do fenómeno de aparecimento da maioria das candidaturas de grupos de cidadãos nestas eleições autárquicas. O facto, porém, de não conseguiram apanhar percentagens significativas do eleitorado para além dos casos da Ribeira Grande de Santo Antão, Sal, Santa Catarina e Tarrafal de Santiago, mostra como para a generalidade dos eleitores é ainda fundamental o papel dos partidos para consolidar vontades que depois determinam resultados eleitorais. Aliás, a surpresa da vitória do PAICV na Praia sugere o que acontece quando um partido em tempo certo consegue ultrapassar as fracturas no seu eleitorado para o levar a votar enquanto o adversário de alguma forma deixa a sua base de suporte desmobilizar-se.

Agir no quadro das competências dos diferentes órgãos de poder político tanto a nível central como local e respeitar as regras do jogo democrático são essenciais para que a democracia não se resuma ao exercício periódico do voto. Evita-se assim a descredibilização das instituições e da classe política e eleva-se o nível de eficácia do regime de forma a poder ultrapassar as múltiplas crises desencadeadas pela Covid-19 sem que sejam sacrificados no processo os ganhos já conseguidos de liberdade e democracia. As prioridades do país em conter o coronavírus, reativar o turismo e normalizar o ensino escolar não devem ser secundarizadas a favor de campanhas eleitorais antecipadas. Os resultados das autárquicas na Praia até podem configurar um game changer mas é importante ter sempre em mente que as eleições vão-se verificar no seu tempo próprio e que até lá a governação do país deverá prosseguir tranquilamente com a participação de todas as forças políticas. Neste momento crucial é fundamental que se salve o país destas crises e que se cuide da democracia, essencial para a liberdade, paz e justiça. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 987 de 28 de Outubro de 2020.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Consequências

 

A semana passada foi marcada pela revelação na imprensa internacional de uma alegada missão oficial à Venezuela seguida de comunicado do governo a desmentir o facto e a demitir das suas funções numa empresa pública o suposto emissário.

O visado respondeu com uma nota à imprensa onde deixou claro que foi contratado pela defesa de Alex Saab, a figura central do caso de extradição ainda à espera de uma resposta do Supremo Tribunal de Justiça. Confirmou que esteve nas redondezas da Venezuela mais precisamente nas ilhas de São Vicente e Granadinas, mas tratava-se dos seus próprios negócios e não fazia parte de qualquer delegação do Estado de Cabo Verde. Seguiram-se outros comunicados entre o governo e a oposição com as costumeiras acusações que na ânsia de ganhos político-partidários a curto prazo mais ofuscam do que iluminam os problemas. Entrementes plantaram-se dúvidas quanto à seriedade e honestidade do governo, acusado de querer à socapa negociar com o regime de Caracas, precisamente quando arranca o ciclo eleitoral com as eleições autárquicas.

Numa carta aberta, datada de 10 de Agosto, Alex Saab, depois de descrever o seu percurso como empresário e a situação de detenção em que se encontra actualmente, fez saber ao primeiro-ministro de Cabo Verde que “não tem dúvidas que a sua inacção terá consequências jurídicas e políticas”. Após o aviso veio a oferta de “ajudar Cabo Verde mais do que os Estados Unidos em 100 anos”. Pelos desenvolvimentos da semana passada apercebe-se que provavelmente já se estão a verificar as consequências da inacção. A imagem do governo foi beliscada. Para muitos a narrativa do envio de uma missão oficial à Venezuela é verosímil. Contribui para a credibilizar o perfil dos alegados emissários e a circunstância de terem ocupado altos cargos públicos, de serem activos nos círculos do poder e manterem relações próximas com decisores relevantes. O facto de virem confirmar que fizeram a viagem para a América do Sul emprestou plausibilidade ao que foi relatado na imprensa internacional não obstante as discordâncias quanto às partes do trajecto e aos motivos da viagem. O que faz dessa narrativa quase uma impossibilidade é o governo não ter nada com que negociar. Estando o processo de extradição em curso ela “só pode ser decretada por decisão judicial” (nº 6 do artigo 38º da CRCV).

Infelizmente o governo não foi desde o início claro e directo a explicar que Cabo Verde por ser uma democracia e um Estado de direito e também um pequeno país arquipelágico tem deveres de cooperação com os outros países na luta contra o terrorismo, contra todos os tipos de tráfico e formas de lavagem de dinheiro. As fragilidades do país fazem dessa cooperação uma via essencial para garantir a segurança, liberdade e prosperidade. É evidente que riscos existem em particular quando do outro lado estão entidades estatais e não estatais poderosas habituadas a imporem-se pela força e que recorrem à chantagem e a ameaças para atingir os seus objectivos. Ocorrendo uma dessas situações, o importante é reconhecê-la, denunciá-la e alertar o país para o perigo que daí pode advir. O pior que se pode fazer é deixar-se dividir pela acção exterior e tornar o confronto político-partidário num prolongamento ou apêndice dessa luta que, na sua essência, põe em causa os fundamentos de uma vida em liberdade com paz e justiça.

Porque a defesa dos interesses de Cabo Verde deve nortear o seu posicionamento quando cumpre o dever de colaboração, a cooperação com outros países tem que incluir uma componente de capacitação efectiva do país. Ser útil não pode simplesmente significar que o país se torna num espaço avançado de intercessão e confronto de infractores cujos produtos traficados têm um outro destino e outro mercado, arcando com os custos correspondentes: risco de ter elementos extremamente perigosos em prisões inadequadas, processo judicial longo e complexo e ameaças de retaliação vindas de organizações criminosas transnacionais poderosas. Não parece que se ganha muito em ser referência internacional na captura de grandes quantidades de droga simplesmente porque quem fez a investigação e tem todas as informações sobre o percurso passou convenientemente a informação para a polícia local fazer a apreensão. É só ver a fragilidade da capacidade nacional em controlar as costas das ilhas, em reagir a emergências e desencadear operações de busca e salvamento local para se concluir que toda a colaboração que o país tem dado no combate ao narcotráfico não tem sido devidamente compensada ou por falta de disponibilidade dos “parceiros” ou por inépcia dos sucessivos governos. Já é tempo de se alterar as coisas tanto no sentido de se acautelar situações de risco excessivo para o país como para garantir que se consiga ganhos reais dessa cooperação.

Cabo Verde já iniciou um novo ciclo eleitoral com as primeiras eleições marcadas para daqui a dois meses. O facto de se estar a viver um momento sensível com forças poderosas estrangeiras pendentes de uma decisão judicial abre a possibilidade de interferências no processo eleitoral com base em motivações das mais diversas. O enlamear deliberado da imagem do governo que se verificou na semana passada onde se juntaram recursos consideráveis para garantir plausibilidade de uma narrativa negativa pode não ser uma acção isolada e que outros exemplos de punição ou de retaliação por supostos agravos poderão estar na forja. Nestes dias como se pode constatar do London Daily Post de 20 de Agosto sob o título “Luxemburg invests in Cape Verde – newest narco-state” pôs-se a circular a ideia de que Luxemburgo deveria perguntar se vale a pena gastar os seus euros com Cabo Verde. Pode ser coincidência, mas não deixa de ser preocupante que na mesma semana em que se procura denegrir a imagem do país também se ponha em causa a cooperação generosa de Luxemburgo.

Uma realidade com que hoje em dia qualquer democracia pode deparar-se é a possibilidade de interferência de outros países nos processos eleitorais. Com a ajuda das novas ferramentas da internet e recorrendo às redes sociais e às fake news, aparentemente nenhuma democracia está livre de tentativas de manipulação, nem as mais antigas e consolidadas muito menos as recentes e altamente polarizadas. As eleições nos Estados Unidos, em 2016, e posteriormente em outros países europeus não deixam quaisquer dúvidas a esse respeito. De facto, ninguém ignora que hoje técnicas de condicionamento de eleições, mobilização de votantes e de criação e destruição de candidatos fazem parte do arsenal que um Estado ou mesmo outras entidades podem usar para conseguir desfecho favorável para candidatos preferidos e punir proponentes de certas políticas.

Para quem vai a eleições dentro de pouco tempo, todo o cuidado é pouco. Dos partidos políticos e também dos candidatos é de se exigir um maior esforço na salvaguarda dos princípios que permitem a qualquer cidadão exercer livremente o seu voto. Deve-se deixar claro que a opção pela liberdade e democracia não é negociável e que é de rejeitar qualquer tipo de interferência. Mais do que nunca há que evitar o extremar de posições e focalizar-se no debate construtivo que conduz à realização do interesse geral.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 978 de 26 de Agosto de 2020.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Deixar de repetir os mesmo erros

 

Aproximam-se as eleições e para a má sorte de todos a questão da TACV ameaça tornar-se outra vez um foco importante de discórdia entre os partidos remetendo outras matérias para um plano secundário. O problema é que sempre se quis confundir a transportadora aérea com a política de transportes no país e não se vê qualquer solução para os problemas de deslocação das pessoas entre as ilhas e para o estrangeiro que não passam por salvar de uma forma ou de outra a “companhia de bandeira”.

Outra vez e desta feita em plena pandemia de covid-19, que praticamente deitou abaixo a indústria da aviação em todo o mundo para só vir a recuperar em 2024-5 segundo alguns peritos do sector, ouve-se de todos os quadrantes incluindo o governo que há que salvar a TACV.

A aparente unanimidade no objectivo não se traduz porém numa convergência de posições para o realizar. Pelo contrário, a tentação é de se entrar num jogo de passar culpas ao outro procurando dividendos político-eleitorais mesmo a custo de enfraquecer a mão de quem no momento negocia. Depois fala-se em chantagem, mas não se assume que de uma forma ou outra todos contribuem para que aconteça designadamente com falta de transparência, críticas desabridas e importância eleitoral excessiva atribuída ao desfecho do processo.

Não espanta que terminado o ciclo eleitoral, ganhando quem melhor pôde capitalizar as deficiências tornadas evidentes para todos, se volte à situação anterior com uma empresa sugadora de recursos públicos, ineficiente nos serviços prestados e incapaz de realizar os objectivos estratégicos preconizados seja de hub ou plataforma aérea e mesmo de elo seguro de ligação com a diáspora. Tem sido sempre assim. Quando se está em campanha como que se perde de vista a complexidade do sector da aviação civil e só ficam as acusações mútuas.

Num ápice parece que são esquecidos todos os planos de negócios adoptados ao longo dos anos que não resultaram e os diferentes conselhos de administração que não conseguiram imprimir uma outra orientação ou reestruturar a empresa para ser mais competitiva e ganhar mercados e as tentativas de privatização que falharam. Apesar dos prejuízos acumulados ano após ano continua-se a alimentar o sonho da companhia de bandeira sem completamente se assumir que o espaço de manobra se torna mais estreito à medida que a dívida pública aumenta com o assumir dos prejuízos acumulados das empresas públicas. Depois a realidade cai em cima na forma de missões do FMI e do Banco Mundial com as suas fixações nos dados do défice orçamental e da dívida pública e como esses números se desviam do quadro macroeconómico desejável.

Aconteceu em 2016, mas já se tinha verificado em outros momentos como, por exemplo, na primeira década deste século em que se fez um contrato de gestão para reestruturar a TACV e privatizá-la mas o plano falhou completamente. As instituições de Bretton Woods predispõem-se a ajudar, mas acabam por impor condições que deixam os governos com as mãos praticamente atadas e levam a situações como as vividas actualmente. Logo no início do mandato deste governo suspenderam a ajuda orçamental até que o processo de privatização da TACV ficasse completa. Quando em Maio de 2017 o governo cedeu o mercado doméstico da aviação à Binter fizeram saber que ainda não era suficiente e que a ajuda continuaria suspensa até à total privatização da transportadora aérea nacional, o que viria a verificar-se em Março de 2019.

A 6 de Junho com pompa e circunstância o governo assinou com o Banco Mundial o acordo de ajuda orçamental de 40 milhões de dólares e a TACV transformada em CVA lançou-se na criação de um hub aéreo a partir da ilha do Sal com um parceiro “estratégico” islandês detentor de 51% das acções e o Estado de Cabo Verde com os restantes 49%. Segundo o que foi acordado, o processo de privatização porém não deveria parar e teria que ser terminada em princípio até Dezembro de 2019. Foram vendidas parte das acções aos trabalhadores e a emigrantes num total de 10% ficando o Estado com 39% que deveria ceder a privados nacionais por razões que se desconhecem. Se era para liberar o Estado da responsabilidade futura de financiamento da empresa não parece que tenha sido esse o entendimento do parceiro islandês considerando que os créditos conseguidos junto à banca sempre contaram com aval do Estado correspondente à cota completa de 49%, ou seja, incluindo a parte já comprada pelos trabalhadores e emigrantes.

A parceria estratégica com a Loftleidir não parece que tenha tido uma componente financeira no sentido de facilitar o acesso ao crédito em bons termos que fosse capaz de suportar o desenvolvimento de novas rotas e a criação de novos mercados atraídos pela possibilidade de um “stopover” na ilha do Sal. E isso era imprescindível como confirma a própria Icelandair nos relatórios de contas de 2019 e no relatório trimestral de Março de 2020. Depois de constatar que os resultados operacionais do último trimestre de 2019 e do primeiro trimestre de 2020 ficaram abaixo das expectativas, o grupo islandês deixou claro que para evitar desenvolvimentos negativos no futuro tinha que se conseguir financiamento de longo prazo. Só que, segundo uma nota do Conselho da Administração da CVA, a responsabilidade para o financiamento e desenvolvimento imediato e futuro da companhia aérea dependia de uma mensagem clara dos principais accionistas, incluindo, portanto, o Estado de Cabo Verde.

Da parte da Icelandair a preocupação com o futuro da CVA expressa nos relatórios referidos tinha a ver com um eventual impacto negativo sobre a Loftleider caso não se confirmasse o leasing de 4-5 aviões que estava previsto para 2020. No resto, o grupo não se vê exposto a qualquer risco na TACV. Imagine-se quem ficou a assumir os custos associados ao risco do negócio que depois de dois trimestres seguidos de resultados abaixo das expectativas foi-se abaixo com a covid-19 a partir de Março devido às restrições globais nas viagens aéreas e ao fecho generalizado das fronteiras. Pode-se dizer que se sabia à partida que o negócio da instalação de um hub no Atlântico Médio na perspectiva de repetir o sucesso mais a Norte do hub islandês era de alto risco. Talvez, tirando de lado a total liquidação da empresa, não houvesse outra saída considerando as expectativas do país, a sensibilidade política da questão TACV e a pressão das organizações financeiras internacionais e dos parceiros para se eliminar o risco orçamental representado pela companhia.

O facto é que se acabou por ficar com um parceiro que devia ser estratégico no desenvolvimento de um negócio potenciador de vantagens múltiplas para o país designadamente no turismo e em serviços prestados ao exterior, mas que aparentemente tinha como principal objectivo assegurar o leasing dos seus aviões em condições privilegiadas. Situações do género aconteceram várias vezes no passado e resultaram muitas vezes da situação de fraqueza com que partem para as negociações, do sentimento de dependência que se tornou quase uma segunda natureza e da propensão para ceder à pressão dos parceiros e poder continuar a beneficiar da ajuda externa.

Estes tempos de pandemia devem fazer lembrar a importância de se construir resiliência para enfrentar choques de toda a espécie. E é evidente que essa construção é incompatível com atitudes e comportamentos de dependência que, como nestes e outros casos, só deixam custos que o país e todos os cabo-verdianos vão ter que arcar no futuro. Razão suficiente para não deixar que a questão séria dos transportes aéreos do país seja consumida pelo problema da TACV e que o país pague com juros ainda mais altos pelo que tem a fazer para sair do imbróglio actual. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 977 de 19 de Agosto de 2020.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Autoridade e confiança andam juntos

 O governo através da resolução n.º 113/2020 renovou o estado de calamidade nas ilhas do Sal e de Santiago agravando drasticamente as medidas dirigidas para impedir ajuntamentos de pessoas.

O nível de contágio nas duas ilhas tem-se mostrado preocupante e procura-se com abordagens mais resolutas das autoridades de fiscalização impor o uso de máscaras e obrigar ao distanciamento social tanto em espaços públicos abertos ou fechados como também a nível privado com a proibição de convívios alargados de amigos e familiares. A situação da covid-19 no país não é boa. Está-se já a passar o limiar dos 3000 casos confirmados quando há menos de dois meses e meio, no fim do estado de emergência a 29 de Maio, o total de infecções se situava em 409. O número de novos casos continua a ser dos mais altos em África e o país continua na lista negra dos países que não podem voar para Europa nem receber passageiros da União Europeia.

As autoridades insistem em dizer que o pico da epidemia foi atingido em Julho e que agora a tendência é para redução, mas é a impressão generalizada que a situação não está controlada. Aliás, as últimas medidas visando fundamentalmente coagir as pessoas não transmitem essa sensação de controlo. Pelo contrário, deixam passar a ideia de que a persuasão se alguma vez funcionou deixou de o fazer e já não se consegue apoio suficiente das pessoas e particularmente dos jovens para quebrar as cadeias de contágio. Se, como como diz a economista Anne Krueger, éa adesãodo público a medidas preventivas que determinará a que ritmo o vírus será vencido e se ela não está a verificar-se ao nível desejável há que reconsiderar os métodos seguidos. De facto, não há como evitar uma reflexão descomplexada sobre a estratégia seguida até agora na luta contra a pandemia, sobre as opções em matéria de comunicação e o nível de competência como foram implementadas as medidas e orientações dadas.

Infelizmente não é essa atitude que se constata e o teor da última resolução do governo a renovar o estado de calamidade é elucidativo a esse respeito. Implicitamente deixa claro que a culpa na falta de controlo da covid-19 em Cabo Verde está nas pessoas e, em conformidade, as medidas nela constantes visam essencialmente reprimir comportamentos desviantes. Repete-se o que se faz nos pronunciamentos públicos em que invariavelmente procura-se culpabilizar as pessoas pelos surtos e ilibar a actuação das autoridades de qualquer responsabilidade. Quando, como se viu na semana passada, que não era possível escapar a alguma responsabilidade oficial pela deterioração da situação imediatamente começaram as acusações intestinas entre serviços que pela sua gravidade receberam reparo público do presidente da república. Porém, a falta de coordenação e de troca de informações entre serviços vitais para a luta contra a pandemia que todos esperavam que estivessem a agir em perfeita sintonia implementando uma estratégia comum, não deixou ninguém tranquilo. E a produção da resolução com medidas controversas quanto à sua oportunidade, proporcionalidade e eficácia e ainda constitucionalmente duvidosas, porque restritivas de liberdades, só veio reforçar essa intranquilidade.

Interroga-se se mais uma vez se está-se a esconder os problemas procurando passar uma imagem de firmeza, mas na prática deixando escapar um cheirinho de insegurança disfarçado de arrogância. Ouve-se o director nacional de saúde dizer, citado pela Inforpress, “nós é que fazemos o diagnóstico, nós é que tratamos os dados e somos nós que publicamos os dados” e pergunta-se se é o mesmo assertivo “nós” que responde pela situação actual de várias dezenas de casos diários criando constrangimentos na vida económica e social e mantendo o país isolado de espaços vitais para a sua economia e sobrevivência. A verdade é que corre-se um risco grande em confrontar o coronavírus com muita assertividade particularmente aquela que esconde fragilidades na coordenação, no tratamento de dados e no uso dos meios disponíveis.

Por ser um vírus novo e portanto desconhecido, mas muito eficiente em causar contágio a velocidade e escala pouco usual, não poucas vezes está-se perante situações complicadas como foi na Boa Vista que levou ao contágio de meia centena de pessoas num hotel em Abril passado, ou à importação do vírus em Santiago em Maio ou ao súbito irromper do surto da covid-19 no mês de Junho na ilha do Sal. Todas elas situações que para serem enfrentadas com algum sucesso exigem que haja humildade, espírito de entreajuda e disposição para aprender e inovar na busca de soluções. Na semana passada viu-se um novo contágio em S.Vicente e nesta segunda-feira foi anunciado um surto na Cadeia de São Martinho. Não deixa de ser preocupante que fazem lembrar falta de coordenação, ineficiências operacionais e simples falhas de comunicação que já deviam ter sido superadas há algum tempo. Isso porém só poderia acontecer se da responsabilização por erros anteriores cometidos tivesse surgido boas práticas, lealdade institucional e maior comprometimento com a verdade. As desavenças recentes não dão muitas esperanças nesse sentido.

Muitos perguntam pelas razões por que as pessoas e em particular os jovens vêm mostrando fraca adesão às orientações das autoridades sobre como lidar com a epidemia da covid-19. Claramente que é demonstração de falta de confiança para a qual terão contribuído vários factores entre os quais a arrogância burocrática e política, a ambiguidade na actuação pública que não assume situações complicadas e a quase indisfarçável vontade das autoridades em declarar que o vírus tinha sido vencido para poder arrebatar a glória da vitória. Quando, como deveria ser previsível, o coronavírus se mostrou difícil de esmagar e rapidamente cresceu depois do período de confinamento devido em parte a alguma precipitação no levantamento de algumas restrições ficou difícil depois de descompressão levar a população a retrair-se como fizera nos dois meses de estado de emergência. Neste aspecto o facto de o governo se ter lançado em força em actos públicos de visitas, anúncios e inaugurações logo que se retomaram os voos internos, como se a velha normalidade das campanhas tivesse voltado, certamente que não ajudou as pessoas e em especial os jovens a ouvir os apelos para uma vida de restrições e de distanciamento entre as pessoas.

Infelizmente esta situação de falta de confiança manifesta-se no momento em que se apela para que os governantes consigam granjear mais confiança da população como condição sine quo non para se pensar em vencer a covid-19. Os períodos de emergência foram tempo dado para se preparar o sistema de saúde para enfrentar o vírus inesperado, para granjear a confiança da população para enfrentar os tempos difíceis que vão subsistir ainda por alguns anos e para preparar a economia e a sociedade para a nova realidade que certamente emergirá do mundo pós-covid-19. Pela pouca adesão da população e pela necessidade de recorrer a meios robustos de coação vê-se que se desperdiçou muito desse capital de confiança, o que é mau particularmente neste momento em que se está num período pré-eleitoral, por natureza mais polarizante, durante o qual restaurar a confiança é mais difícil de se conseguir. Legitimamente também poder-se-ia perguntar se em outros sectores também não se aproveitou o tempo dado e em consequência também neles o país ficou aquém do desejável.

A realidade incontornável é que o país precisa retomar a sua actividade económica mas ela só é possível se os nossos dados da covid-19 forem os que dão tranquilidade aos nossos parceiros, dos quais cerca de 80% em matéria de troca comercial, investimento e fluxo turístico encontram-se na União Europeia. Para atingir esses objetivos deve ser chamado à responsabilidade “quem de direito”: Sem desculpas, bodes expiatórios e fuga à prestação de contas.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 976 de 12 de Agosto de 2020.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Oportunidade para o reforço da cidadania

 

O governo já marcou as eleições autárquicas para o dia 25 de Outubro. Com essa decisão foi dado o pontapé de saída para o novo ciclo eleitoral que após o embate nos municípios terá continuidade nas eleições legislativas provavelmente em Março/Abril seguido das presidenciais seis meses depois entre Setembro e Outubro.

Quase sem tempo para respirar depois do debate sobre o estado da Nação os partidos vão ter que se preparar para apresentar candidatos, plataformas eleitorais e dar um outro vigor à pré-campanha autárquica que na perspectiva de muitos há muito que foi iniciada. As eleições vão acontecer em meio de uma pandemia, até há bem pouco tempo inimaginável, que para além dos efeitos potencialmente graves na saúde das pessoas traz consigo muitas incertezas quanto ao futuro e quebra real e imediata de rendimentos para a generalidade da população. Não estranha que outra vez em pleito eleitoral surjam as velhas ansiedades, agora reforçadas num ambiente de crise sanitária e económica e social, quanto à questão da representação parlamentar e de participação política. Com os olhos postos nas eleições, os cidadãos interrogam-se se realmente os partidos os representam ou se são aglomerados de interesses que servem a si próprios em vez de os servir.

O sentimento dos cabo-verdianos quanto aos partidos e quanto à democracia não é muito diferente do que se vê por aí. Há vários anos que em todo o mundo se tornou notória a crise das democracias manifestando-se no aumento da abstenção, na fuga do eleitorado para os extremos e na emergência de populismos da esquerda e da direita. Depois da crise financeira de 2008 o fenómeno agudizou-se à medida que as populações perdiam confiança nas suas elites, a desigualdade social aumentava e governos de partidos tradicionais mostravam-se incapazes de conter a deterioração das condições de trabalho e a perda de rendimentos. Em vários países a gota-de-água que fez extremar a acção política foram as migrações em particular as vindas da África subsaariana e da Síria. Na vaga de populismo que se agigantou elegeram-se líderes como Trump e Bolsonaro, conseguiu-se finalmente fazer o Reino Unido sair da União Europa e autocratas como Viktor Orban afirmaram-se no coração da Europa.

A covid-19 veio porém temperar os entusiasmos dos que se reviam na retórica anti-partido e anti-sistema, apostavam na descredibilização das instituições e das elites e propunham soluções simples para realidades complexas dos seus países. De facto, quando tudo parecia concorrer para que o fenómeno do populismo fosse mais longe, apareceu o coronavírus e viu-se logo que para o combater com alguma eficácia ter-se-ia de socorrer de conhecimentos científicos e de adoptar uma gestão competente da pandemia pelo Estado. Só assim é que se podia pretender diminuir o número de mortes, aliviar sofrimento e garantir meios de subsistência aos mais vulneráveis. E a verdade é que os líderes populistas revelaram-se incompetentes e demasiado presos na própria retórica para fornecerem liderança efectiva às populações. Descredibilizaram-se e deixaram muitos que punham fé em soluções populistas completamente desorientados.

Nem por isso porém desapareceram as manifestações de insatisfação com a actuação dos partidos, as críticas dirigidas à classe política e o vazio que enquanto cidadãos muitos sentem pelo facto de não se reverem nas opções dos partidos do chamado arco do poder. Só que agora as pessoas são atraídas para outras formas de participação e acabam por ficar reféns de soluções muitas vezes piores porque vincadamente de natureza identitária e promotora de vitimização e de ressentimentos. Em Cabo Verde, por exemplo, muita hostilidade é dirigida ao chamado bipartidarismo do MpD e do PAICV que até hoje não foi rompido pela UCID e nem no passado foi por partidos como o PCD, PRD, PTS, PSD e PP, engendrados num momento ou outro destes trinta anos de regime democrático. Há quem clame por uma espécie de terceira via que pusesse fim ao duopólio dos partidos que se têm alternado no poder. Na falta ou impossibilidade dessa outra força política o desejo é que pelo menos surgisse um partido de protesto tipo Bloco de Esquerda, em Portugal. Também por aí não se teve muita sorte.

A proximidade de eleições sempre renova esses sentimentos mistos de insatisfação com o funcionamento do sistema democrático e de hostilidade aos partidos. A pandemia com as suas incertezas piorou a situação ao revelar as vulnerabilidades do país e das suas gentes que não obstante a alternância dos dois partidos na governação não foram suficientemente minimizadas. Teve-se agora a oportunidade de ver com clareza que a prática do ilusionismo na política conjuntamente com a cultura de varrer os problemas para debaixo do tapete e a dificuldade ou indisponibilidade em combater hábitos, comportamentos e atitudes de dependência tornam de todo quase impossível realizar as reformas necessárias para mudar o país. Para sair do círculo vicioso não ajuda muito a proposta de se ver um dos partidos como “esquerda progressista” e o outro como “neoliberal”. A persistência das vulnerabilidades décadas após décadas sugere que se vá além dos rótulos ideológicos na procura das raízes dos problemas do país e que tudo se faça para governar com verdade, sem falsas ilusões e sem expectativas excessivas ou descabidas.

As eleições autárquicas, por natureza mais circunscritas, e o facto de a lei eleitoral permitir a apresentação de candidaturas por grupos independentes abrem caminho para iniciativas que poderiam atenuar os efeitos do bipartidarismo nos municípios. A exploração dessa possibilidade, que existe desde das primeiras eleições de Dezembro de 1991, não se tem revelado porém a mais frutífera. Não se conseguiu provocar suficientemente mossa no bipartidarismo e demasiadas vezes iniciativas do gênero constituíram formas encapotadas dos partidos se candidatarem ou de dar suporte a brigas entre facções do mesmo partido. Outras vezes serviram para dar corpo a disputas identitárias e divisivas com a falsa ideia de que munícipe é quem nasceu e não quem reside no concelho. O resultado é que de participação cidadã tiveram pouco e facilmente deixaram-se levar pelos maus hábitos partidários de que eram críticos.

Seria bom que desta vez houvesse iniciativas de grupos de cidadãos com um outro espírito. Grupos que exercessem a sua actividade cívica com base na verdade e na disponibilidade para servir e que se deixassem guiar por algum realismo e pragmatismo. Talvez os efeitos sobre os partidos do arco do poder fossem de induzir maior contenção na actuação política e um maior espírito compromissório na resolução dos problemas do país e em lidar com as outras forças políticas. Nesse sentido, deve-se preferir vias criativas que melhorem o funcionamento do sistema político ancorado na liberdade e no pluralismo e não deixar que a frustração leve a populismos que já se sabe não resolvem problemas, particularmente os complexos com que a covid-19 neste momento brindou toda a gente. Reformas, não revolução, precisam-se. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 975 de 5 de Agosto de 2020.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Pandemia desafia a Nação

O estado da Nação vai estar em discussão na Assembleia Nacional esta sexta-feira, dia 31 de Julho. O debate anual é sempre um momento muito especial na vida nacional na medida em que marca o fim do ano político e põe o governo em jeito de balanço da sua governação face aos deputados de todos os partidos.

Este ano vai ser ainda mais especial considerando o momento que se vive da pandemia da covid-19 e as consequências económicas e sociais que se vêm acumulando desde da quebra brusca no ritmo de crescimento da economia e do aumento rápido do desemprego. Ninguém consegue perspectivar quão profunda será a crise e o tempo que durará. Não há data certa para se ter disponível vacinas que cheguem a toda a gente e nem se sabe como a retoma económica irá processar-se no novo quadro das relações comerciais e também políticas entre as nações no pós covid-19. Até lá incertezas várias, muita ansiedade pelo caminho e alguma angústia poderão condicionar o comportamento das pessoas. Assim será se da parte de quem governa e de toda a classe política não vier um esforço para criar confiança, incentivar o espírito de cooperação e reforçar a ideia de um destino comum compartilhado por todos, sem a qual a vitória sobre o coronavírus não será possível.

O debate da próxima sexta-feira poderá ser crucial para se alcançar um nível de concórdia indispensável com vista a enfrentar as dificuldades futuras. De antemão sabe-se que inevitavelmente vão surgir à medida que a crise se agravar e as medidas do Estado para amortecer a quebra da economia perderem eficácia e quando as pessoas começarem a sentir sentirem a perda de rendimentos derivado do desemprego e da fraca actividade económica. Confrontá-las com alguma medida de sucesso vai requerer uma frente comum que, para ser construída, exigirá que se faça uma reflexão nacional sobre tendências divisivas e sobre os porquês da persistência de vulnerabilidade e precariedade das populações após tantos anos de injecção de recursos no país. Também dever-se-á debruçar sobre as razões por que se torna tão difícil construir um ambiente onde as pessoas sintam que o mérito e o esforço pessoal, enquanto critérios para o sucesso, prevalecem sobre a cor partidária, o acesso a redes de influência e a tolerância para com jogadas obscuras que resultam em fortunas súbitas. Se motivação suficiente não existisse para isso, a previsão do VPM e Ministro das Finanças de que 150.000 postos de trabalho poderão estar em perigo se medidas robustas do governo não forem tomadas deveria ser o sinal esperado para pôr todos em alerta máxima e procurar fazer diferente e não se repetir as insuficiências tornadas tão óbvias em poucos meses pela pandemia.

No dia comemorativo dos 102 anos de Nelson Mandela, António Guterres na sua qualidade de secretário-geral da ONU fez um apelo para um Novo Contrato Social e acordo global para combater as desigualdades. Segundo Guterres, a pandemia veio fazer uma radiografia da realidade deixando a descoberto “sistemas de saúde inadequados, lacunas na protecção social, desigualdades estruturais, degradação ambiental e crise climática”. Acrescentou ainda que o mundo enfrenta o risco iminente de “haver fome de proporções históricas” e de “cem milhões de pessoas serem empurradas para a pobreza extrema”. Acabou por aconselhar que governos, sociedade civil, empresas e comunidades se juntassem na discussão do que poderá ser esse novo contrato social e o acordo global. A dinâmica da pandemia e as respostas contra os seus efeitos têm demonstrado que para se ter sucesso no combate à doença e no controlo da transmissão do vírus um novo engajamento com a população deverá existir em que competência e honestidade na comunicação surjam como cruciais para se conseguir confiança das populações e assegurar que seguirão com naturalidade as instruções e orientações das autoridades.

Com as fragilidades de Cabo Verde já conhecidas e recentemente relembradas pelos três anos de seca e tornadas mais do que óbvias pela covid-19, o mais natural é que houvesse um esforço vindo de todos os quadrantes para se fortalecer o que une a nação. Tendo como base o consenso criado no processo, o pluralismo de ideias devia permitir encontrar as melhores propostas, pressionar no sentido da gestão competente dos recursos e serviços públicos e impedir aproveitamentos indevidos de recursos públicos. Infelizmente não é esse o sentimento prevalecente nos actores políticos e sociais. Reina a polarização social, uma competição desenfreada pelos recursos sem preocupação com a racionalidade e a razoabilidade e cresce todos os dias um espírito de rivalidade entre as ilhas que torna difícil pensar o país como um todo, agravando os custos da insularidade e limitando os ganhos para o país que poderiam advir da exploração flexível e estratégica do potencial e dos recursos de cada ilha. Com a pandemia da covid-19 em vez do recuo nas divisões, nas rivalidades e na corrida aos recursos verificou-se o recrudescer das suas manifestações com os protagonistas a justificarem como legítimas as suas pretensões.

É aparentemente ignorado o facto inescapável de que o futuro próximo será de muito menos recursos disponíveis, porque já há quebra na economia nacional, o resto do mundo vive uma recessão só vista nos anos 30 do século passado e que a expectativa para os países mais desenvolvidos de regresso aos níveis do ano 2019 é de três a quatro anos. Só assim é que se explica que o discurso político – desde que se convencionou que depois do período de confinamento já se podia regressar às tricas políticas – siga por linhas de fractura que levam a seleccionar entre uns e outros quem tem estatuto especial e quem deve ser merecedor de discriminação positiva. Só assim se explica também que o discurso se centre em propor corte nos impostos, já de por si em queda livre por causa do estado da economia, sem preocupação com a boa gestão das despesas quando interferem com interesses corporativos e outros. Confrontado com os inevitáveis défices orçamentais e o aumento da dívida pública e a necessidade de os financiar a tentação é de se entreter com fórmulas que mais parecem “wishful thinking” do tipo de propor aos credores de Cabo Verde que transformem o crédito em investimento.

O óbvio devia ser que se promovesse um maior rigor na utilização dos recursos públicos, que as forças políticas demonstrassem maior contenção nas reivindicações e houvesse um maior esforço de adequação das expectativas das pessoas às possibilidades reais do país. O problema é que já se está em cima do ciclo eleitoral e o eleitoralismo nos discursos e nas promessas tende a sobrepor-se a quaisquer outras considerações. Entre ir num ou noutro sentido nos embates políticos há que se ter em devida atenção que os eleitores, face à crise pandémica, querem competência na condução dos assuntos do Estado e confiança em quem governa e não serem seduzidos por promessas ilusórias. De Angela Merkel diz-se, por exemplo, que o respeito por ela enquanto estadista deriva do facto de se dirigir a todos com honestidade, franqueza e realismo e que sob a sua liderança ninguém cria falsas expectativas nem engendra ilusões. Essa é uma referência que bem podia ajudar a elevar a qualidade do debate parlamentar da próxima sexta-feira, neste ano da pandemia da covid-19, e a ganhar um tom mais construtivo. A Nação agradeceria.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 974 de 29 de Julho de 2020.