segunda-feira, 25 de maio de 2020

Soltem os melhores anjos

Quando já nuvens negras pairavam sobre os Estados Unidos e se tornava real a possibilidade de uma guerra entre o Norte e o Sul Abraham Lincoln no seu discurso inaugural como presidente fez um apelo aos “melhores anjos da natureza” dos seus compatriotas no sentido de se ultrapassar as fracturas que ameaçavam a União.
Lincoln referia-se às qualidades cívicas e patrióticas formatadas por uma vivência e uma memória comum que vinha de várias décadas sob a égide da primeira Constituição que proclamou a igualdade de todos e estabeleceu como inalienáveis o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade. Não impediu o conflito e a guerra civil acabou por acontecer, deixando um rasto de mais de 500 mil mortos, mas a unidade do país foi salva, a escravatura foi extinta e a luta pela igualdade de todos com os seus altos e baixos tem, desde então, acumulado sucessos. Houve, pois, progresso e a expressão de Lincoln serve hoje de inspiração, em particular, na luta contra os nossos piores instintos.
Há quase uma década Steven Pinker num livro com o título “Os melhores anjos da nossa natureza” procurou demonstrar que a violência dos homens contra os seus pares nos últimos trezentos anos, não obstante as guerras mundiais, as guerras coloniais e a guerra fria tem diminuído consistentemente. Na sua tese, os melhores anjos têm prevalecido apesar de tudo. Na encruzilhada em que o mundo se encontra neste momento a enfrentar a pandemia e a crise económica, social e política, que ela estará a engendrar e que ninguém sabe qual vai ser o desfecho, é de augurar que os melhores anjos voltem a triunfar sobre os piores instintos das pessoas e das nações. A dimensão do desastre que ameaça a todos com milhões de desempregados em todo o mundo e a contracção violenta da economia na generalidade dos países deixa claro que o mundo pós-covid-19 vai ser diferente. Se não for um mundo dominado por nacionalismos e rivalidades entre as grandes potências , marcado por profundas fracturas sociais e globalmente mais pobre, terá que ser o mundo menos desigual, com mais e melhores oportunidades e com mais sentido de responsabilidade individual e colectiva. Também impõe-se que seja mais sensível à necessidade de uma defesa conjunta face a ameaças como pandemias e alterações climáticas e mais aberto a uma relação de maior harmonia dos homens com o planeta e com os outros seres vivos. Para isso os melhores anjos da nossa natureza terão que sair vencedores.
À partida não se vê qualquer garantia nesse sentido. Perante a pandemia, a postura da generalidade dos países tem sido de uma resposta para dentro, fechando fronteiras e chegando ao ponto de proibir exportações de material médico e de apoio à luta contra o coronavírus. Acusações mútuas são feitas em relação à origem da epidemia e tensões xenófobas desenvolvem-se rapidamente na presença de casos importados. Relutância dos mais poderosos tanto a nível global como de entidades como a União Europeia dificultam acções de resgate dos países mais frágeis perante o que alguns já chamaram do maior desastre económico desde a grande depressão dos anos trinta do século passado. Mesmo a cooperação no quadro das organizações multilaterais como a OMS tem sido marcada por disputas que não ajudam na mobilização dos meios e interferem com a eficácia de uma luta que para ser vitoriosa precisa da cooperação de todos.
É verdade que já há iniciativas do FMI e do Banco Mundial para apoio financeiro dirigido aos países mais pobres e aos emergentes e que há também um forte movimento no sentido da perdão da dívida externa dos países africanos. Consensos em como agir, porém, não são fáceis quando se sabe, por exemplo, que o Congresso americano tem que dar luz verde ao FMI e à China terá concordar com os termos da perdão da dívida. Mesmo na União Europeia discute-se arduamente como proceder para ajudar os países mais afectados pela pandemia por forma a que os países do Norte não se sintam sobrecarregados pelos problemas do Sul. Cooperações mais pacíficas acontecem no domínio da investigação do coronavírus e de possíveis vias para o tratamento da covid-19. Outras ainda, mas já não despidas de disputas, intrigas e jogadas pouco claras envolvendo empresas farmacêuticas, focalizam na procura de uma vacina que efectivamente pudesse pôr fim à pandemia. Em todas essas interacções é visível a luta entre, por um lado, as melhores intenções de contribuir para se encontrar uma solução para a pandemia e mitigar os seus efeitos económico e sociais e, por outro, os interesses mais rasteiros com destaque para o lucro e o orgulho nacional.
Em Cabo Verde, assim como na generalidade dos países em desenvolvimento e com grande dependência da generosidade externa, a nova realidade que irá emergir no pós-covid vai colocar desafios de outra natureza, mas não menos difíceis. Já se sabe que no âmbito da crise o Estado voltou a ganhar protagonismo com os seus programas de apoio às populações e às empresas. Na perspectiva do crescimento desse protagonismo com o aumento da ajuda internacional e a diminuição esperada do contributo do sector privado devido à quebra no turismo e na procura externa de bens e serviços, a tendência vai ser de aumento da dependência do Estado. Ficará a dever bastante da capacidade e da vontade dos governantes e das autoridades evitar que o actual momento de vulnerabilidade das populações se torne instrumental no resgate da mentalidade assistencialista que todos dizem repudiar.
Os muitos anos de reciclagem da ajuda externa deixou hábitos enraizados que se manifestam tanto na corrida para abocanhar recursos como na facilitação do acesso aos mesmos para exercer poder, assegurar lealdades e obter ganhos eleitorais. Corre-se o risco de reforçar tais hábitos se, numa situação em que realmente as pessoas precisam de ajuda, houver desvio do objectivo de promover mais autonomia e responsabilidade individual para obtenção de ganhos partidários de curto prazo. E pode contribuir para isso tanto as entidades que têm os meios para dar como também os concorrentes que alimentam reivindicações muitas vezes irrazoáveis só para granjear favor e deixar as autoridades em situação difícil. Vai depender em muito dos “melhores anjos” que souberem mobilizar para que não se sucumba mais uma vez à tentação do assistencialismo, condenando as populações à precariedade e à vulnerabilidade que numa situação de crise como a actualmente vivida se revela de forma tão gritante.

Cerca de um trilhão de dólares em ajuda externa foi concedida à Africa subsaariana nas últimas cinco décadas. A situação actual desses países deixa entender que todos esses recursos não serviram de muito para evitar a situação de pobreza das populações que agora directa ou indirectamente por causa da pandemia da covid-19 vai-se aprofundar ainda mais. Com o nobre propósito de ajudar os países africanos e outros a resistir ao coronavírus certamente que mais ajuda vai ser canalizada e algum perdão da dívida externa vai-se verificar. Seria de esperar que desta vez os fundos canalizados para esses países não aumentassem a dependência das populações e, pelo contrário, o seu impacto se revelasse à altura do justamente celebrado Plano Marshall do pós-guerra na Europa. Que se soltem “os melhores anjos da nossa natureza” para que se consiga tal desiderato.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Encruzilhada

Na semana passada foi apresentado ao público um inquérito às empresas nacionais realizado pela Afrosondagem sobre os efeitos da covid-19 na actividade empresarial e sobre sua satisfação em relação às medidas adotadas pelo Governo para minimizar a crise económica. Foi uma boa iniciativa. Devia-se dar continuidade com um inquérito similar que recaísse sobre o universo das gentes nas ilhas numa outra perspectiva. Seria para compreender o impacto que os estados de emergência têm tido sobre as populações no aspecto económico, familiar e até emocional.
Poderia incluir também uma avaliação do sucesso da comunicação oficial na percepção e atitude da população em relação à pandemia do SARS-19-2 assim como a contribuição dos média em trazer informação objectiva e o papel representado pelas redes sociais como megafone e como espaço de conforto e de solidariedade de grupo. Uma sondagem nesse sentido seria de grande importância neste preciso momento em que está a chegar ao fim o terceiro estado de emergência e que ponderações diversas – tendo como pano de fundo a situação da covid- 19 na Praia e na ilha de Santiago – estarão ser feitas sobre a continuidade ou não do estado de excepção.
Casos confirmados na capital do país continuam a verificar-se todos os dias e não há sinais de que o ritmo de contágio esteja a abrandar. Aparentemente não seria o melhor momento para se deixar o estado de emergência em Santiago. Por outro lado, é visível o cansaço da generalidade das pessoas e as dificuldades vividas por muitos no sector privado e na actividade informal. O país, com perda brutal de receitas e sem perspectivas a curto prazo de reactivar o turismo, terá que contar com ajuda externa, perdão da dívida e investimento público para garantir à população um mínimo de rendimento e procurar posicionar-se para o que será o mundo pós-covid. Entretanto, precisa reabrir a economia mas, nas condições actuais em que há ainda muitas incógnitas em relação à evolução da pandemia, corre-se o risco de se ver a covid-19 agravar-se na ilha de Santiago e até de, com o fim das restrições na circulação marítima de passageiros e o início da esperada inversão do fluxo migratório em direcção às ilhas de origem, vir a aparecer nas que até agora não tiveram casos positivos.
Para evitar isso especial cuidado se deverá ter na definição de estratégias e em escolher vias e meios a ser adotados no processo de reabertura da economia. Indispensável também será manter a sociedade mobilizada para aguentar as restrições que só paulatinamente poderão ser levantadas. Porém não há garantias disso. Pelo contrário, notam-se sinais de que em certas franjas da sociedade a covid-19 poderá não estar a ser levada suficientemente a sério. A razão talvez seja porque a pandemia até agora não assumiu contornos dramáticos como sucede noutros países que passam semanas e meses de agonia com milhares de óbitos e um número elevado de doentes nas unidades de cuidados intensivos. Com uma população relativamente jovem, a tendência em Cabo Verde é de nos casos positivos as pessoas serem ou assintomáticas ou terem sintomas ligeiros. A constatação desse facto provavelmente tem levado a um certo descaso em relação à doença com consequências que se podem notar no elevado contágio de pessoas entre 20 e 40 anos e na surpreendente contaminação de crianças e adolescentes na faixa 0-20 que já está em cerca de 15% (40 em 270 no 12 de Maio) dos casos confirmados.
Vê-se a anomalia quando se compara com a percentagem de crianças infectadas no global de casos confirmados na China, Itália e nos Estados Unidos que estariam à volta de 2% segundo a CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças) americana citado pelo jornal Washington Post de 21 de Abril. Pode-se depreender disso que provavelmente a comunicação oficial sobre a covid-19 não estará a passar. De facto, quando pais jovens não protegem suficientemente as suas crianças porque parece que não reconhecem gravidade à doença, há mais do que motivo para preocupação. Se a comunicação não está a ser efectiva isso quererá dizer, primeiro, que a dinâmica de contágio não vai diminuir e só vai se acelerar com o fim das restrições. Segundo, que o número de infectados entre os idosos e os mais vulneráveis irá aumentar com as consequências que se conhecem. E finalmente, que a sociedade efectivamente falha em criar um obstáculo ao avanço da pandemia obrigando-se a manter períodos longos de confinamento se quiser enfrentar surtos sucessivos provocados pelo coronavírus.
O grande desafio que praticamente todos os países enfrentam na luta contra a covid-19 é como dar por fim o lockdown e reactivar a economia. Na Suécia, Singapura, Taiwan e Coreia do Sul não será tão difícil, porque, de facto, nunca chegaram a paralisar a economia para conter o coronavírus. Crucial para esses países foi a forte colaboração das pessoas que sem necessidade de declaração do estado de emergência souberam cumprir as regras básicas para conter o vírus. Por isso que em retrospectiva pode-se dizer que para eles foi fácil decidir pelo distanciamento social e pelo confinamento das pessoas às suas residências ao mesmo tempo que se levava à prática a opção de congelar a actividade económica com excepção da produção de bens fundamentais e de prestação de serviços essenciais. Noutros países tal tipo de civismo a par da enorme confiança nas autoridades não é assim tão perceptível. Compensa-se a falha com uma maior intervenção do Estado e um planeamento mais cuidadoso e meticuloso do processo da reactivação da economia.
Em Cabo Verde a crise do civismo, que vem de há muito e que não dá sinais de ter melhorado como seria desejável, sinaliza logo à partida que riscos apreciáveis existirão no processo de reabertura da economia. Como já tinha acontecido noutras emergências nacionais também não foi desta vez que a atenção de todos realmente se focalizou nas mudanças que terão de ser feitas para que se consiga diminuir a dependência do país e as vulnerabilidades da população. Continua a reinar a pequena política como se vê na questão da habitação, persistem as rivalidades institucionais que retiram eficácia a qualquer iniciativa governamental e insiste-se no discurso demagógico culpabilizante e vitimizador que afasta e bloqueia o debate necessário para se encontrar os melhores caminhos. Porém, mais cedo ou mais tarde, o reactivar da economia terá que ser feita. Seria de todo o interesse que a faixa etária hoje mais atingida pela covid-19 tomasse como desafio dar o combate sem tréguas ao vírus protegendo as crianças e os mais velhos e se tornasse no pivot do esforço nacional para libertar o país da dependência e vulnerabilidade que se vem alastrando por demasiado tempo. Não mais se vendo como vítima, a hora de afirmação desta geração finalmente terá chegado, professando um civismo e uma ética que a pandemia veio relembrar como fundamentais nesta encruzilhada em que a humanidade se encontra neste momento.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 963 de 13 de Maio de 2020.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

O “novo normal”

Cabo Verde sujeita-se pela terceira vez a um estado de emergência no processo de luta contra a covid-19. Desta feita o estado de excepção não abrange todo o arquipélago e limita-se às ilhas da Boa Vista e de Santiago onde a epidemia está activa.
Nas restantes ilhas ensaia-se o caminho de regresso à normalidade. Apesar de não se ter ainda uma ideia clara e segura de que o país já terá passado o pior, especialmente quando casos positivos de contágio de coronavírus aumentam todos os dias na cidade da Praia, a decisão de diminuir as restrições nas outras ilhas foi recebida com evidente satisfação.
Vários outros países em particular na Europa posicionam-se no mesmo sentido e vão nesta e nas próximas semanas procurar reactivar a economia que ficou praticamente congelada durante os estados de emergência. A diferença com Cabo Verde é que passaram por semanas traumáticas com milhares de mortes e isso vai-se fazer sentir na atitude das pessoas e na forma como vão se comportar ao longo do processo. Certamente que não haverá euforia, mas sim contenção perante o que todos percebem que pode vir a se repetir no caso de uma segunda vaga e possivelmente de outras do vírus até o surgimento de uma vacina e a criação de imunidade de grupo.
A tarefa que se vai colocar a todos de reactivar a economia será de facto colossal. Como a ameaça do coronavírus vai-se manter por algum tempo, entre dois a três anos segundo a especialista Laurie Garrett numa entrevista ao New York Times, restrições diversas vão dificultar a retoma e manter o desemprego a níveis elevados enquanto novas formas de organização da produção de bens e serviços não forem estabelecidas. Os constrangimentos nas viagens vão impactar fortemente no turismo e na circulação global de homens de negócios, cientistas, desportistas e ainda na participação em eventos internacionais. A tendência já presente de algum nacionalismo económico poderá vir a acentuar-se com efeitos negativos no comércio internacional, com a reformulação das cadeias de valores, mudanças nos circuitos de abastecimento e outras manifestações de desglobalização.
Os países menos desenvolvidos serão os mais prejudicados, aprofundando-se ainda mais a dependência num ambiente político internacional mais complicado, porque marcado por rivalidades entre potências num mundo que deixou de ser unipolar, mas ainda sem a estabilidade de um mundo multipolar. À perda de receitas devido a quebras nos preços de matérias-primas e outras commodities ainda se irá juntar a diminuição brusca de remessas e o peso da dívida pública significativamente aumentada pela crise da covid-19. Para se ultrapassar uma crise desta magnitude provavelmente terá que reinar um espírito do tipo do Plano Marshall do pós Segunda Guerra Mundial que traga à luz novas relações de solidariedade mas acompanhadas de responsabilidade. Não há espaço para repetição de erros do passado que deixaram as populações em pior estado do que se encontravam antes das ajudas principalmente agora que a pandemia veio relembrar de forma brutal o quanto toda a humanidade está interconectada.
No caso de Cabo Verde, há que pelo menos ver a dimensão do que se perdeu, discernir as vias para recuperar a capacidade de crescer nos níveis anteriores e de se reinventar para se ajustar com vantagens no mundo pós-covid-19. À partida, nota-se que sem o turismo o desemprego que já se aproximava de um dígito disparou com particular impacto nas ilhas do Sal e da Boa Vista. Actividades conexas paralisaram-se e os cofres do Estado sofreram um rombo com a perda em impostos e taxas. Por aí vê-se que a procura externa, na forma do turismo, de exportações de bens e serviços e de aviação é o que nestes anos tem sido o grande motor da economia. É evidente que não se vai reconstruir de repente, mesmo depois da passagem desta primeira vaga da covid-19 e em voltando levará algum tempo para ter a dimensão do antes considerando os novos constrangimentos no que respeita a viagens, estadias e ajuntamentos. Por outro lado, sabe-se que não há procura interna que possa substituir os seus efeitos mesmo com todos os estímulos possíveis.
O grande desafio, quando se planeia voltar à normalidade que não será a de ontem, é como conseguir ganhos de eficiência no funcionamento do Estado, das empresas e dos mercados para que os custos de factores como água, energia e comunicações e o preço dos alimentos e outros bens se mantenham a níveis aceitáveis. Não se tem que fazer como de outras vezes que foram criadas linhas de crédito, dados benefícios fiscais e oferecidas garantias e depois não se obtiveram os resultados prometidos em dinâmica económica, emprego e exportações Como se veio a justificar depois, falhou a transmissão monetária, não havia capacidade para apresentar projectos, os potenciais investidores estavam em falta com a banca ou simplesmente não havia mercado que garantisse retorno dos investimentos. Agora não há muita margem para erros ou desperdício de recursos.
Provavelmente sem precedentes é a situação das populações nas ilhas turísticas que se debatem com o desemprego bem como as populações rurais que se viram limitadas na comercialização dos seus produtos pela covid-19 ou dos trabalhadores nas fábricas e na construção civil impedidos de trabalhar por razões de confinamento e distanciamento social. E a piorar a situação acrescenta-se a mais que provável baixa nas remessas dos emigrantes que enviadas da Europa e dos Estados Unidos constituem um complemento significativo do rendimento de muitas famílias. Garantir um rendimento mínimo a todos neste momento difícil da vida nacional e internacional e com o espectro da doença contagiosa e mortal à espreita é talvez o maior desafio que se coloca a qualquer governo, particularmente em Cabo Verde.
Assegurar o presente, porém, não chega. Esperar para se recomeçar no ponto em que se ficou no antes da covid-19 é ilusório. Retomar estratégias de ontem como se nada de fundamental mudou, pode revelar-se desastroso. Caso para ser visto é, por exemplo, o da aviação internacional que depois das enormes perdas e das restrições que irão ser impostas nas viagens vai levar anos para se recuperar. Pergunta-se em que pé ficarão a proposta do hub da Ilha do Sal e as privatizações no sector. Mesmo nos transportes internos é evidente que muitos dos pressupostos poderão ter-se alterado e há que ter presente todos os cenários considerando que as ligações aéreas e marítimas são vitais para o país.
Também há que ver os constrangimentos actuais com outros olhos. Se motivado pela condição de ilhas, tivesse sido feito aposta estratégica no funcionamento do Estado de forma descentralizada recorrendo às tecnologias de informação e comunicação, face à pandemia, não haveria grande quebra na produtividade e o teletrabalho dirigido para o mercado interno e externo já estaria mais avançado. Se estrategicamente se tivesse focalizado em formar profissionais de saúde, enfermeiras e outros prestadores de cuidados, profissões com alta procura em todo o mundo, muitos jovens hoje estariam bem posicionados para o mercado nacional e internacional.
Tirando de lado o que se poderia ter feito, há que agir no imediato para aumentar a capacidade de produção interna de alimentos (agricultura, pecuária e pesca) e ao mesmo tempo assegurar circuitos de distribuição e mercados que garantem rentabilidade. Há que continuar a aposta no turismo e avançar com investimentos estratégicos nas ilhas do Sal e da Boa Vista na habitação e no sistema sanitário que já deviam ter sido feitos. Finalmente, a pandemia veio relembrar a importância essencial de se poder socorrer as ilhas a qualquer momento e nesse sentido a importância de se ter uma guarda costeira profissional com meios marítimos e aéreos adequados para a busca e salvamento e garantia de segurança nas nossas costas e mares. A discussão do próximo orçamento rectificativo podia ser um bom começo na reflexão sobre como construir o “novo normal” que irá vigorar no pós covid-19.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 962 de 6 de Maio de 2020.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Jogada de risco

A menos de um mês do dia em que foi declarado o estado de emergência, no dia 29 de Março, Cabo Verde iniciou a 26 de Abril o processo de regresso à normalidade com o fim da situação de excepção nas ilhas sem casos confirmados de covid-19. Em S.Vicente, na Boa Vista e Santiago o estado de emergência irá continuar até 2 de Maio, dando-se por quase certo que será prolongado por mais dias ou semanas devido à dinâmica crescente do coronavírus nas ilhas de Santiago e Boa Vista.
A rapidez com que Cabo Verde se posiciona para diminuir as restrições que impõem o confinamento e obrigam ao distanciamento social quando comparado com outros países que já passaram pela pandemia causa alguma apreensão. A erupção do vírus na Boa Vista há duas semanas seguida dos casos de transmissão comunitária em Santiago na semana seguinte deixa a impressão de que agora é que a pandemia está a fazer a sua passagem pelo país. Se for o caso, não será o melhor momento para relaxar nos constrangimentos mas, pelo contrário, para se preparar para o embate identificando os focos de infecção e impedindo a criação de cadeias de contágio.
É verdade que não se confirmaram quaisquer casos em seis ilhas e que o caso único de S.Vicente surpreendentemente não conduziu, pelo menos até agora, a qualquer contágio identificável. Não se pode porém dizer que realmente se conhece a situação sanitária nessas ilhas. O número de testes realizados e a metodologia seguida na realização dos mesmos, “o correr atrás do vírus” dificilmente permitiria que se tivesse uma imagem certa da covid-19 no país e muito menos em cada ilha em particular. Não se sabendo precisamente o ponto da situação, com a diminuição das restrições corre-se o risco de ficar nas pessoas a ideia de que o pior já passou. E é próprio da natureza humana que não se descortinando perigo imediato no horizonte as pessoas adoptem com facilidade posturas mais relaxadas especialmente após quase quatro semanas de um confinamento sem precedentes na história do país.
Por isso mesmo é que a programação da diminuição de restrições deve ser feita e comunicada cuidadosamente para evitar que os ganhos conseguidos em habituar as pessoas ao “novo normal” não se perca na ilusão de regresso à normalidade anterior. Mesmo na Nova Zelândia em que, segundo a primeira-ministra Jacinda Ardern, a covid-19 praticamente foi eliminada, houve a preocupação de dizer às pessoas que foi ganha uma batalha, mas não a guerra e que o vírus pode voltar e singrar na população se novos hábitos não forem instituídos. Lá como cá a alternativa à existência de um alto sentido cívico e de dever para com o colectivo seria ficar a fechar e a abrir o país conforme as necessidades de combate ao coronavírus. Os custos porém acabariam por ser demasiado elevados.
Em todos os países que enfrentam a actual pandemia a questão de salvar as pessoas ao mesmo tempo que se procura preservar uma base económica para uma retoma de crescimento no futuro põe-se com grande acuidade. Cabo Verde não foge à regra com a diferença que a ponderação exigida na consecução desse objectivo é tarefa mais desafiante considerando as fragilidades do país e a sua dependência de um turismo que vai levar o seu tempo para se reconstruir e atingir o nível anterior. No país, à vulnerabilidade do mundo rural tornada maior pelos três anos de seca vieram juntar-se perdas de rendimentos de muitos outros devido aos constrangimentos que a covid-19 trouxe para a prática da economia informal e ao desemprego gerado pela paralisia da actividade turística e de outras actividades por ela dinamizadas. Sair do buraco não vai ser fácil particularmente quando a nível internacional está-se a falar do maior desastre económico desde a depressão dos anos 1930.
É um facto que crises oferecem muitas vezes oportunidades para mudanças importantes e até de dimensão histórica nos comportamentos, cultura institucional e selecção de prioridades. Cabo Verde parece ser um caso de excepção a essa regra. O país já passou por várias emergências nacionais algumas delas recentemente, caso da erupção do vulcão do Fogo, naufrágio do navio Vicente e o massacre de Monte Tchota. Não há muita evidência de que o país nestes anos todos se preparou para responder às exigências de um país arquipelágico em matéria de segurança, protecção contra calamidades e capacidade de apoio directo e imediato às populaçôes numa emergência. Vezes repetidas foram permitidos que interesses corporativos, protagonismos pessoais e outras razões espúrias se sobrepusessem a tudo o resto.
E mais uma vez a história parece repetir-se. Apesar do aparato montado, do dinheiro gasto e do protagonismo pessoal dos governantes e de outras autoridades alguns erros potencialmente catastróficos acontecem. Foi o que se passou na Boa Vista que num dia descobriu-se que tinha mais 45 casos confirmados e que dias depois foi dada como suposta origem da infecção que lançou Santiago para o topo dos casos confirmados da covid-19 em Cabo Verde. Acrescenta-se ainda que embora sem casos graves da doença que implicam maior exposição de profissionais de saúde já há exemplos de médicos e outros profissionais infectados, deixando transparecer nessas e noutras situações falhas graves nos protocolos que deviam ser rigorosamente seguidos no atendimento de doentes em tempos da covid-19.
A um outro nível nota-se um padrão no funcionamento e na relação entre os órgãos de soberania que foge à normalidade baseada no respeito pelo princípio da separação de poderes. O parlamento é praticamente suspenso durante o estado de emergência, deixa de haver conselhos de ministros seguidos de comunicados apresentados pelo porta-voz do governo e o PR preside a reuniões do primeiro-ministro com alguns ministros. Verbas avultadas são transferidas do Fundo de Emergência Nacional para o Ministério da Administração Interna sem aparentemente seguir o manual de procedimentos exigido pela lei que o criou em Novembro de 2018. Com alguma perplexidade nota-se que, no quadro publicado no BO de 25 de Abril, 91 mil contos, correspondente a cerca da metade da verba transferida, vai para a rúbrica “outros bens” enquanto 31 mil contos são alocados para “deslocações e estada” e 20 mil contos para “combustíveis e lubrificantes” ficando outros tantos 20 mil contos para despesas residuais enquanto que um total de 470 contos é destinado para medicamentos e material clínico. Não se fica com a impressão de que algo de fundamental mudou na gestão que se faz das situações de emergências no país. O que porém não dá sinal de desaparecer é a corrida para o protagonismo pessoal.
É pois com uma gestão que parece pecar por falta de estratégia que se está a aventurar em fazer um regresso à normalidade no preciso momento em que dados sugerem que na ilha com mais de metade da população do país pode-se estar no início da escalada do número de casos da covid-19. Entretanto a capacidade do sistema de saúde, apesar dos 113 casos confirmados, ainda não foi realmente testada porque na generalidade os casos são assintomáticos ou com sintomas leves não se registando até agora casos críticos. O aparecimento progressivo nos últimos dias de infectados nas idades de risco poderá mudar o padrão actualmente existente expondo o sistema de saúde a uma demanda até agora não experimentada. Ou seja, avança-se para a normalidade sem ter uma imagem clara da situação sanitária nas ilhas e sem que o sistema de saúde tivesse sido testado. É uma jogada com muitos riscos que talvez encontre alguma justificação na necessidade de pôr a economia a funcionar, mas que também pode deixar o país despreparado tanto em termos de meios inexistentes nalgumas ilhas como de capacidade de resiliência da população face à conhecida letalidade do coronavírus. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 961 de 29 de Abril de 2020.