segunda-feira, 30 de julho de 2018

Estado da Nação: em “gestão corrente”

O debate na Assembleia Nacional sobre o estado da Nação acontece nesta sexta-feira dia 27 de Julho. Mais uma vez os parlamentares e o governo vão debruçar-se sobre a realidade vivida no país com as suas vulnerabilidades de sempre, com os seus problemas do momento e com a constante tensão entre as expectativas criadas e a capacidade de as materializar. Em geral, nesse tipo de debates a complexidade da situação do país é passada de lado. No calor do embate a preocupação em tirar dividendos políticos imediatos leva muitas vezes a posições extremadas que dificultam a devida perspectivação dos problemas, não deixam espaço para consensos em matérias estruturantes e bloqueiam o diálogo plural que o país tanto precisa para poder enfrentar com sucesso os desafios do desenvolvimento.
Não estranha, pois, que ano após ano e com mais ou menos diferença, o estado da Nação seja realmente o de quem está sob “gestão corrente”. Vai-se vivendo com os fluxos que mais ou menos vêm de fora em forma de ajuda, também com os efeitos de uma conjuntura internacional favorável na procura externa e com o impacto do aproveitamento por outros de oportunidades pontuais, mas sem garantia de continuidade futura. Razão por que as vulnerabilidades não diminuem significativa e permanentemente, não há aumento rápido de postos de trabalho com qualidade e o país não sobe para patamares em termos de capital humano, de conectividade e de prestação de serviços que o tornariam atractivo para o investimento estrangeiro e fariam crescer as exportações. Se, pelo contrário, em vez da costumeira gestão corrente, passiva e sem ousadia a opção fosse para uma gestão estratégica, pro-activa e visionária o foco seria na criação de riqueza e no esforço colectivo para ganhar competitividade externa e elevar o nível de produtividade do país. Aí sim não seria evidente o desapontamento já palpável das pessoas que ainda estão por sentir concretamente as vantagens da alternância na governação.
Não se vai por esse caminho porque ainda há demasiadas forças em Cabo Verde que resistem a mudanças no status quo. A tentação dos poderes instalados em controlar tudo e todos põe-se demasiadamente no caminho do desenvolvimento. Não é por acaso que o Estado burocrático dividido nas suas “capelinhas” e cioso das suas prerrogativas continua a pesar proeminentemente sobre tudo o que se faz e, em particular, sobre o que de novo se quer fazer. Em vários países mesmo alguns não democráticos, governos ganham confiança da população e legitimam-se presidindo a uma economia que cresce significativamente e mantém níveis baixos de desemprego. Em Cabo Verde não é clara que essa ligação tenha sido estabelecida.
Governos no passado já foram reeleitos mesmo com crescimento baixo e altos níveis de desemprego porque se mostraram aptos em fazer a “gestão corrente” seguindo o modelo de reciclagem da ajuda externa. Aconteceu em parte porque não é fácil mudar comportamentos criados por políticas populistas e assistencialistas que depois se transformam eles próprios em obstáculos ao próprio desenvolvimento. O ilusionismo que acompanha essas práticas mascara a realidade, esconde os problemas e alimenta as expectativas com promessas de dádivas do Estado. A verdade, porém, é que os problemas simplesmente não desaparecem, pelo contrário, acumulam-se e progressivamente tornam-se quase intratáveis ou só resolvidos a elevado custo.
É só ver o que se passa com a TACV, com as barragens, com o programa Casa para Todos, os problemas das populações na Ilha do Sal e da Boa Vista, a quebra na dinâmica económica de S. Vicente, a vulnerabilidade completa da população rural, os problemas de emprego dos que saem dos liceus e das universidades para se aperceber que ficar pela “gestão corrente” do país focalizada em conseguir financiamentos para infraestruturas e em “diplomacias económicas” que mobilizam milhões para a ajuda orçamental e programas de emergência não tira o país da mediania e só agrava os problemas para o futuro. Se essa opção já não resultava no passado, muito menos efeito no crescimento e no emprego terá nos dias de hoje em que as exigências de transacções com o resto do mundo são maiores em termos de qualificação de mão-de-obra, de serviço prestado e de produtividade. Também não é boa ideia deixar-se apanhar pela tentação de disfarçar as práticas de uma gestão corrente com “fugas em frente” do tipo clusters dos anos atrás que nunca se materializaram. Ainda nesta perspectiva, o excessivo foco na inovação talvez esteja deslocado e eficiência devesse ser a preocupação primeira do Estado. Como bem sugere o Fórum Económico Mundial, Cabo Verde está entre os países nos quais o que mais conta para o crescimento económico é a eficiência na utilização dos recursos do capital e do trabalho e o desenvolvimento dos mercados.
Sair do paradigma debilitante, que exceptuando provavelmente alguns anos na década de noventa, tem dominado a prática governativa do país, é essencial para se poder projectar alguma esperança em que todos os cabo-verdianos poderão finalmente ultrapassar as fragilidades de outrora. A experiência de sucesso de países como Maurícias, Seychelles, Botswana e Singapura revela que para que medidas estruturantes e estratégicas fossem tomadas em momentos-chave da vida económica desses países houve necessidade de construir consensos entre as principais forças políticas e firmar pactos entre autoridades, sindicatos e empregadores que realmente pusessem o crescimento e o emprego acima de qualquer agenda. Em Cabo Verde, o ambiente político e o laboral confundem-se de algum modo e estando todos a defender os interesses próprios não parece que se deixe espaço para a sociedade realmente convergir em questões que se mostrarem fundamentais para o futuro.
Por outro lado, para se produzir riqueza, há que criar valor mas nem todos os operadores agem a todo o tempo seguindo esse registo. Como diz a economista britânica Marina Mazzucato no seu último livro “O Valor de Tudo” na sociedade há quem produza valor, há quem destrua valor e há quem extraia valor. Saber distinguir uns dos outros e apostar em quem realmente produz valor, neutralizar quem o destrói e não deixar-se enganar por quem simplesmente o procura extrair, não é tarefa fácil. Mais difícil fica se não se se conseguir primeiramente um entendimento de base entre os partidos e na sociedade para se efectivamente deixar a gestão corrente para uma governação estratégica. O debate sobre o estado da Nação podia ser um bom começo para esse entendimento indispensável para o presente e futuro do país. É preciso ter presente que as nuvens da incerteza ameaçam o abrandamento da economia mundial com impacto negativo certo para toda a gente. Não há tempo a perder.
Humberto Cardoso

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Paga-se caro a inacção

Nos últimos dias de Dezembro de 2017 a Polícia Nacional entrou em greve por três dias. A população assistiu numa mistura de espanto e ansiedade à greve inédita na história do país. O governo também aparentemente apanhado de surpresa acabou por fazer uma requisição civil que não foi aceite por boa parte dos grevistas e que pelo contrário foi repudiada pelos sindicatos. Felizmente não houve perturbações maiores da ordem pública. Terá perdurado a má impressão deixada pelo comportamento de alguns agentes durante as manifestações pelas ruas da capital. Na época houve muita discussão se a polícia tem ou não direito à greve. O assunto acabou esquecido depois das convenientes salvas de artilharia trocadas entre os partidos, todos à procura de ganhos de curto prazo, preferindo varrer os problemas para debaixo do tapete.
O anúncio pelo sindicato da polícia SINAPOL de uma greve de seis dias para a próxima semana a partir de 26 de Julho trouxe outra vez à ribalta a insatisfação, mal-estar e falta de motivação que parece persistir na polícia não obstante os muitos investimentos já feitos nestes dois anos do actual governo em meios de comunicação e de transporte e também em aumentos salariais e promoções. E a injecção de meios não parou aí; continua tanto em efectivos, como em novas instalações e armamento. Na semana passada foi anunciado que cerca de 90 mil contos provenientes do Fundo do Turismo foram gastos em coletes à prova de bala, armas de fogo e outros meios para a polícia. Tudo isso porém parece que nem melhora o ambiente no seio da polícia, nem contribui significativamente para aumentar a sua eficácia a ponto de diminuir significativamente a percepção de insegurança na população. Talvez os dois problemas, mal-estar e falta de eficácia, tenham a mesma raiz como sugerem os altos oficiais da polícia Manuel Alves e Alcides da Luz em críticas publicadas respectivamente no Facebook e no jornal online Mindelsite que apontam para a inexistência de reformas ou de uma direcção capaz de elevar a actuação da polícia ao nível de eficácia desejável para enfrentar os desafios de hoje. Para esses dois oficiais, um no activo e outro recentemente passado à reforma, se mudanças profundas não acontecerem o prognóstico em matéria de segurança para os próximos tempos poderá não ser positivo.
Garantir a segurança é dever do Estado. É a razão primeira porque se criou a instituição Estado. Por isso não pode haver dúvidas quem tem a responsabilidade de a assegurar para tranquilidade de todos os cidadãos. E não é uma responsabilidade compartilhada no sentido em que o Estado e os seus agentes fazem a sua parte e os indivíduos, as famílias, a igreja e outras organizações da sociedade contribuem com a outra parte ficando a responsabilidade última pela eventual insegurança perdida algures sem que ninguém a assuma frontalmente. A desejável colaboração de indivíduos e organizações na manutenção da ordem e tranquilidade também compete ao Estado promove-la através de acções como cultivar o civismo e o sentimento de pertença à comunidade, facilitar a participação cívica e política e incentivar o associativismo. Se há falhas aí, a colaboração dos indivíduos é fraca e o baixo capital social da comunidade manifesta-se na falta de confiança na relação entre as pessoas, na tentação de fazer justiça privada e na desconfiança em relação às instituições. Quando é assim não se pode ficar pela simples constatação dos factos. Há que assumir as responsabilidades e há que agir em conformidade.
Do investimento feito na segurança, esperam-se legitimamente resultados num quadro que se quer marcado por critérios de eficiência e eficácia. Interesses de indivíduos, de grupos ou mesmo de corporações não podem prevalecer sacrificando o serviço público que se quer e que justifique a utilização dos recursos que afinal são de todos os contribuintes. Compete ao governo garantir que assim seja. Há que pôr fim ao mal-estar na polícia e há que aumentar a motivação dos agentes. E certamente que a questão não pode reduzir-se simplesmente a reivindicações salariais. O Estado tem recursos limitados e razoavelmente não se pode esperar que, de imediato ou quase, se resolva todos problemas que se acumularam durante mais de uma década. Por outro lado, não se pode deixar as coisas como essencialmente estavam e esperar automaticamente que haja motivação se o mérito continua a não contar e interesses difusos a serem obstáculos à elevação do nível de eficácia da organização e à realização das ambições de carreira de muitos.
Uma questão que porém já devia ter sido resolvida é da do direito à greve. A hipótese de greve da polícia foi aventada já se passaram alguns anos e houve por isso tempo para as forças políticas se debruçarem sobre o assunto e agir de modo a que nunca viesse a acontecer. Nada se fez e a greve aconteceu no final de 2017. Passados sete meses, está-se na iminência de outra greve da polícia e as opiniões divergem se é legal ou não, que limites poderá ter a requisição civil dos agentes e quem, em última instância, garantirá a ordem no país se a única força de segurança se encontra em greve. O entendimento na generalidade das democracias consolidadas é que polícias não têm direito à greve. Essa é opinião do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de tribunais constitucionais de vários países incluindo o Supremo Tribunal Federal do Brasil. Para o supremo brasileiro a polícia sendo “o braço armado do Estado para a segurança interna não pode exercer o direito de greve sem pôr em risco a função primeira do Estado em garantir a segurança, a ordem pública e a paz social”.
Em Cabo Verde, apesar de há já algum tempo o problema se ter manifestado não se sabe se algum parecer sobre o assunto foi solicitado ao Ministério Público ou se procurou saber das instâncias judiciais algum posicionamento sobre a matéria. Também não é do conhecimento público que tenha havido alguma iniciativa legislativa para suprir eventuais omissões na lei. A postura, parece, é de nada fazer, mas esperar que o pior não aconteça. Não é razoável e facto é que a inacção muitas vezes se paga caro.
Humberto Cardoso

segunda-feira, 16 de julho de 2018

SOFA gera controvérsia

É cada vez mais frequente no mundo globalizado e interconectado de hoje os países procurarem estabelecer parcerias especiais. As razões invocadas são múltiplas, mas fundamentalmente têm natureza política e económica ou são ditadas pela necessidade de segurança mútua. Na generalidade dos casos a relação entre estados, seja no quadro de uma comunidade económica, de uma aliança militar ou de uma simples parceria para paz e segurança implica cedências de soberania.
Por isso mesmo o caminho para ali chegar nunca está livre de espinhos e escolhos. Mesmo quando se chega ao fim e a parceria funciona normalmente não cessam as críticas, não desaparece a sensação que se cedeu demais ou que a contrapartida não é a melhor. Prova disso, mesmo em parcerias há muito consolidadas, são as tensões à volta do euro, à volta das migrações e das directivas da Comissão Europeia que levam muitos dos estados membros a ressentirem-se contra o que consideram cedência excessiva às instituições da Europa. Tensões similares são percebidas em blocos económicos como a NAFTA e a CEDEAO e entre os países integrantes da NATO.
Em Cabo Verde a discussão do Acordo do Estatuto das Forças Militares Americanas (SOFA, da sigla inglesa) que poderão num momento ou outro estar em Cabo Verde no quadro da parceria para segurança também está a ser motivo de grande controvérsia, envolvendo os partidos políticos e a sociedade. Para os Estados Unidos a controvérsia não é novidade considerando que se verificou e em muitos casos continua a se verificar na generalidade dos mais de 100 estados com quem já assinou um SOFA. Há um entendimento que é legítimo que se queira saber em que a medida a presença de tropas estrangeiras vai ter implicações na relação do país com o exterior, como irá afectar a sociedade e que impacto eventualmente terá na economia. Claro que se é mais sensível a essas questões se, como no caso de Cabo Verde, sempre predominou no país uma postura oficial de não alinhamento com blocos militares traduzida ainda na recusa constitucionalizada de bases militares estrangeiras. Não espanta pois que o debate sobre a matéria se tenha exacerbado e trazidas à baila questões de identidade e de patriotismo, a par de dúvidas quanto à conformidade à Constituição do SOFA aprovado na Assembleia Nacional pela maioria parlamentar do MpD com abstenção dos deputados do PAICV e da UCID.
A realidade do mundo de hoje já não é a de blocos militares ideologicamente antagónicos a se ameaçarem mutuamente com armas nucleares. Os problemas maiores de segurança advêm principalmente do terrorismo, dos diferentes tráficos, da pirataria marítima e do crime organizado. São ameaças caracterizadas por nem sempre terem rosto visível, por não serem corporizadas por um Estado e também por tomarem toda a gente como alvo potencial. Reconhecendo a nova realidade, na revisão da Constituição de 2010 introduziu-se no n.2 do artigo 11º das relações internacionais que o Estado de Cabo Verde “participa no combate internacional contra o terrorismo e a criminalidade organizada transnacional”. A partir daí, o país já não é mais neutro porque ele próprio está sob ameaça dessas entidades subestatais e não tendo meios próprios para as enfrentar sozinho deve procurar parcerias internacionais para garantir a sua própria segurança e não permitir que nenhum ponto do seu território sirva de base ou depósito para tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou para qualquer tipo de suporte de acções terroristas. É evidente que a colaboração com outros estados no quadro de parcerias para a defesa e segurança do país terá de implicar cedências no domínio da soberania. O quanto que se deve ceder certamente que vai ser sempre matéria de controvérsia, mas decisões devem ser tomadas e em tempo útil porque a escolha poderá ser entre, por um lado, no presente não ter controlo completo do próprio território porque não se tem nem os recursos nem a necessária cooperação de forças estrangeiras para isso, e, por outro, orgulhosamente proclamar que não se quer bases militares estrangeiras numa recusa que teria razão de ser em tempos da guerra fria mas que actualmente na era dos drones e das operações especiais não faz sentido. Hoje a tendência é abandonar as bases permanentes como deverá acontecer com a base americana das Lajes, nos Açores.
Na concretização da cooperação quase incontornável para se garantir segurança contra as ameaças transnacionais um dos problemas mais melindrosos é o da jurisdição criminal, civil e administrativa. A pergunta é se a jurisdição deve ser concorrencial entre os dois estados ou ficar só com o estado de origem do contingente militar e não com o estado hóspede. Os Estados Unidos da América compreensivelmente procuram subtrair todos os seus soldados e funcionários a qualquer tipo de jurisdição do Estado hóspede. Na prática, os SOFAs que tem negociado designadamente com os países da NATO, o Japão e a Coreia têm variantes conforme a resistência encontrada junto do estado hóspede e também o seu próprio interesse em ter uma presença no país mesmo quando o estatuto das suas tropas num quadro do SOFA não seja o ideal. De acordo com o documento do Departamento do Estado americano citado por este jornal na edição anterior, esse ideal consubstanciado num Global Sofa Template só foi aceite completamente por alguns micro-estados. Imagina-se que quem o aceitou fez uma opção para ceder em termos de soberania e de jurisdição criminal no seu território em troca de ganhar em segurança. Certamente que terá razões para isso e as deverá apresentar a eventuais críticos ou opositores..
O SOFA aprovado em Junho último no parlamento não foi o primeiro adoptado por Cabo Verde. Em 2006, aprovou um SOFA para as forças da NATO que vieram participar nos exercícios militares da Steadfast Jaguar. Nesse SOFA houve naturalmente cedências em matéria de jurisdição criminal e civil, mas no nº 4 do artigo 7 (BO de 2 de Janeiro de 2006) deixou-se a possibilidade de “em casos específicos, Cabo Verde puder solicitar que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem relativamente aos seu pessoal militar ou civil presente”. Também em 2008 no acordo de Cabo Verde com a Espanha foi aprovado um SOFA que no artigo 9º nº 2 dizia que “Cada uma das partes considerará a possibilidade de renunciar às imunidades criminais que os membros das suas forças usufruem a pedido de outra, em situações que se justifique a realização de um processo no próprio local do crime, por motivos de especial gravidade do crime”.
No SOFA com os Estados Unidos, assinado dez anos depois, autorizou-se os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre as tropas durante a sua permanência em Cabo Verde sob a justificação da necessidade de controlo disciplinar das mesmas (artigo III , nº 2). Como o documento do Departamento do Estado acima referido deixa claro essa, é uma cláusula vivamente procurada pela América para garantir que se vá além da Convenção de Viena e se institua, de facto, a exclusividade da sua jurisdição penal. Certamente que o governo cabo-verdiano ao assinar e fazer aprovar o SOFA terá as suas razões. Seria bom que as explicitasse e as contextualizasse para a tranquilidade dos caboverdianos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Ultrapassar a lógica das “capelinhas”

O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças, Olavo Correia, anunciou ontem, 3 de Julho, que o Governo está a trabalhar em parceria com as entidades seguradoras e o INPS, para que o país tenha, muito em breve, um bom sistema de evacuação dos doentes.
Certamen­te todos esperam que sim por­que o país precisa. O problema é que anúncios similares feitos por governantes vêm de longe e ninguém em particular nas ilhas e fora das cidades da Praia e de Mindelo até hoje pode sentir-se seguro de um socorro rápido em caso de emergência grave apesar das promessas feitas ao longo dos anos. E não há menos caso para isso. Há duas semanas viu­-se o que aconteceu na Boa Vista. Outros casos recentes na mesma ilha, no Sal e no Fogo vieram re­lembrar a urgência em encontrar uma solução para o problema das evacuações, problema esse agora mais agravado pela per­cepção geral que a companhia aérea Binter não se considera obrigada a proceder da forma como era esperada da TACV nas mesmas circunstâncias.
Situações dramáticas foram vividas num passado recente de­signadamente com a erupção do Vulcão do Fogo, o afundamento do navio Vicente e o massacre do Monte Tchota. Em todos elas constatou-se a impotência das estruturas do Estado, seja na ausência de planos de contin­gência no âmbito da protecção civil, seja na montagem de uma capacidade nacional de busca e salvamento ou na simples garan­tia de sistemas de comunicação entre destacamentos das forças armadas e a base. Na sequência dos desastres, vieram promes­sas diversas: helicópteros para busca e salvamento, mais uma unidade naval e outra aérea para não se repetir o caso do Guardião e do Dornier inoperacionais no momento da erupção do vulcão do Fogo e helicópteros para re­solver o problema de transporte para a Brava. Recentemente, já
no actual governo, repetiram­-se promessas de aquisição de dois helicópteros e em Outubro de 2017 fez-se apresentação no Aeroporto da Praia de dois apa­relhos de origem austríaca com capacidade para evacuações mé­dicas e para patrulhamento ma­rítimo. Mistério é porque apesar de todos estes “démarches”, con­tinua-se praticamente na estaca zero, sem capacidade de resposta efectiva e tempestiva a qualquer tipo de emergência real no país.
O vice-primeiro-ministro fala de uma solução trabalhada com as seguradoras e com o INPS mas dirigida para um problema em particular que são as evacua­ções médicas. Fica-se por saber quais as soluções para os outros problemas como busca e salva­mento, protecção civil, patru­lhamento marítimo e transporte para ilhas sem aeroporto que advêm da natureza arquipelá­gica do país. E pergunta-se por que não uma solução integrada que responda às necessidades de forma compreensiva e mais em linha com o binómio custo/benefício. Evacuações médicas inter-ilhas não parecem ter a frequência que justificaria um investimento exclusivo para as garantir. Aparentemente o mais lógico seria investir de modo a garantir capacidade de respos­ta global para os problemas do país arquipélago. A dificuldade em se enveredar por esse ca­minho, não obstante os muitos anos de discursos e promessas, talvez resida no facto de todas essas competências não terem sido atribuídas a uma autorida­de marítima e pelo contrário es­tarem espalhadas por entidades díspares como guarda costeira, polícia marítima, serviço de pro­tecção civil, agência marítima e portuária, capitania dos portos, etc,. A lógica das “capelinhas” e de interesses corporativos não terá ajudado na adopção de uma abordagem mais sistémica e pas­sível até de negociar cooperação internacional favorável, capaz de suprir os fracos recursos do país
na tarefa de assegurar a ligação entre as ilhas em qualquer cir­cunstância e também a seguran­ça das costas e o controlo efecti­vo da zona económica.
No BO de 31 de Maio de 2018 o governo instituiu o ser­viço de busca e salvamento ma­rítimo e aeronáutico. Segundo o decreto–lei o prestador des­se serviço deve ser a Guarda Costeira e o financiamento do mesmo deve vir de uma taxa de segurança marítima. Sen­do a Guarda Costeira parte das forças armadas e não uma força de segurança como a polícia ma­rítima não é claro que possa as­sumir completamente as outras funções da autoridade marítima designadamente de policiamen­tos dos mares e costas. Por outro lado, ficando limitado às receitas do fundo de segurança marítima para busca e salvamento que por lei também tem outros destina­tários como, por exemplo, servir para “eventuais indemnizações compensatórias pelo serviço público de transporte marítimo inter-ilhas” não é líquido que consiga de facto pôr-se à altura do que lhe é exigido.
É, de facto, da maior impor­tância sair do status quo actual que variadíssimas vezes já de­monstrou que deixa o país pra­ticamente indefeso perante as ameaças dos vários tráficos e sem meios e capacidade para responder às necessidades da população em situações de ca­tástrofe natural, naufrágios e emergências. Para isso, porém, é cada vez mais claro que o sistema de forças tal qual tem existido há mais de uma década não pode continuar. Não é eficaz, dificulta a coordenação do esforço nacio­nal e não potencia a cooperação internacional em domínios tão essenciais como sejam a segu­rança das populações e o exercí­cio da soberania sobre todos os pontos do território nacional e da zona económica exclusiva.
Ultrapassar os obstáculos para reformulação do sistema actual de forças não é porém fá­cil. Até parece que o sistema já aprendeu a contornar todas as tentativas de reforma. A oportu­nidade de transformação que um novo governo podia representar foi gorada quando se insistiu em deixar tudo como estava. As con­sequências
não podiam ser dife­rentes. Agora, para que o estado das coisas mude e se encontre saídas para os problemas de fun­do do país terá que haver um alto nível de consenso entre as forças políticas. Mas com a crispação política no rubro e a excessiva preocupação com ganhos políti­cos de curto prazo não fica muito espaço para os entendimentos estratégicos que o futuro do país exige. As incertezas que actual­mente não deixam ver com cla­reza o futuro exigem uma outra postura das forças políticas que mais enfase pusesse no que têm de comum do que exacerbar aquilo que as faz diferentes. Com essa nova atitude mais energia, motivação e foco se conseguiria mobilizar para fazer as reformas a todos os níveis que o país ur­gentemente precisa. Vamos fa­zer do 5 de Julho um dia em que, sem deixarmos de ser diferentes e de cultivarmos o pluralismo, reforcemos a unidade da nação na prossecução dos seus grandes objectivos de liberdade, justiça e prosperidade para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Estará o sistema de governo em Cabo Verde a mudar?

A actuação dos diferentes protagonistas políticos nos últimos tempos deixa uma forte impressão que algo no sistema de governo está a mudar em Cabo Verde. O que se tomou como certo e garantido nos 25 anos da vigência da Constituição de 1992 quanto à configuração dos poderes do presidente da república, do parlamento e do governo já não parecem tão claros.
O protagonismo do presidente da república é cada vez maior, o papel do parlamento diminui a olhos vistos e o governo alterna, ora mostrando uma postura submissa ao PR, ora revelando arrogância na relação com o parlamento. O Primeiro-ministro há mais de seis meses que não se apresenta ao parlamento nem para as sessões de fiscalização do governo, mas com o presidente da república põe-se em situações que lançam dúvidas sobre quem realmente comanda a política interna e externa do país.
O sistema de governo cabo-verdiano sempre foi considerado como semipresidencial, mas com forte pendor parlamentar. Nesse sentido, nota-se que apesar de ser o PR a nomear o PM tendo em conta os resultados eleitorais, o governo só é politicamente responsável perante o parlamento. Por outro lado, a assunção plena de funções pelo governo deve ser precedida da aprovação de uma moção de confiança pela maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. Com as funções e competências assim distribuídas é óbvia a centralidade do parlamento no sistema e, em particular, na fiscalização da actividade governativa assim como também é fundamental para o funcionamento do sistema o papel do PR como guardião da Constituição, árbitro e moderador do sistema, ficando o governo com a exclusiva responsabilidade de dirigir a política interna e externa do país.
As maiorias absolutas que resultaram das seis eleições legislativas já verificadas na II República nunca deixaram espaço para exercícios do poder de geometria variável pelo presidente da república, como aconteceu em outras paragens com sistemas semipresidenciais, que tiveram em algum momento de lidar com governos minoritários ou coligações frágeis. Por isso causa algum espanto as tendências actuais da evolução na relação entre os órgãos de soberania quando não há sinais de fragilidades na maioria que suporta o governo. Também não seria de esperar tensões entre o actual PR e o governo considerando que grosso modo resultam da mesma base eleitoral e o presidente se encontra no seu último mandato. A deriva no sistema do governo poderá ter razões específicas mas não deixa de manifestar sintomas já notados noutras paragens e que se caracterizam pelo descrédito das instituições representativas como o parlamento, pela atracção e vontade de sujeição a personalidades singulares indutoras de sentimentos e emoções extremadas nas pessoas e pela desconfiança em relação a instituições mediadoras como os partidos políticos e os mídias.
O que se vê em muitos países da Europa e também nos Estados Unidos da América e que fez renascer populismos de esquerda e de direita em várias democracias consolidadas também está-se a fazer sentir em Cabo Verde. Um sinal é a influência crescente do PR que se desdobra em múltiplos encontros e múltiplas deslocações no país e no estrangeiro na sua política de “estar junto das pessoas” . Está-se a transformar na figura providencial a que todos vão recorrer. Na semana passada, dia 19, recebeu a presidente do PAICV que segundo o post no facebook da presidência da república foi lá submeter para informação e apreciação dois projectos de lei que por sinal já estavam agendados para a sessão ordinária de 25 de Junho da Assembleia Nacional. Foi um acto insólito para um sujeito parlamentar contornar a sede própria de discussão e aprovação da legislação e também estranho para o PR que sabe que o momento de avaliação política dos diplomas aprovados no parlamento é o da promulgação. Em relação a outras matérias também abordadas pela líder, designadamente o acordo SOFA com os Estados Unidos da América, o PR “garantiu toda a atenção”. O encontro de ontem com o PM e o Ministro de Negócios Estrangeiros teve como um dos objectivos essa questão como publicita um post na página do Facebook do próprio PR. Curioso que todas estas démarches e também a crispação entre os partidos à volta de acordos militares poderiam talvez ser evitadas se discutidas em tempo e sede próprio no Conselho Superior da Defesa Nacional, presidido pelo PR, e composta pelo PM, membros do governo, o Chefe de Estado-Maior e três deputados representativos de todos os partidos presentes na assembleia nacional.
O afastar ou “bordejar” dos procedimentos há muito estabelecidos para tratar os assuntos da república não deixa de ser um grande motivo de preocupação para todos. Retira previsibilidade à acção colectiva do Estado, faz deslocar o exercício do poder para onde não é esperado, fragiliza as instituições e convida a protagonismos individuais que armados de agendas próprias e suportados pelo erário público desdobram-se em actos cujos custos podem ser conhecidos, mas os benefícios para o colectivo não se vêem claramente. A democracia é o sistema de governo em que o exercício do poder só é legítimo se se verificar em conformidade com a Constituição e as leis. Quem recebeu o mandato para o exercer deve poder prestar contas e considerar-se publicamente responsável pelas suas consequências. A transparência no exercício do poder garante que se está a seguir todos os procedimentos exigidos e que a responsabilidade de quem governa não está sendo diluída a ponto de a culpa morrer solteira e de interesses individuais, corporativos ou de grupo ficarem em posição de se apropriem dos recursos públicos sem que sejam impedidos.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 865 de 27 de Junho de 2018.