segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Combater a insegurança

 

Já no segundo semestre de 2021 em todo o mundo as in­certezas em relação aos próxi­mos meses não diminuíram sig­nificativamente como esperado.

Em vários países da Europa e também nos Estados Unidos, Brasil, África do Sul, Indonésia e outros países asiáticos a varian­te Delta do vírus Sars2-coV-19 veio outra vez baralhar as cartas alterando completamente as ex­pectativas da retoma económi­ca e do regresso à normalidade previstos para o fim do Verão. A grande esperança deposita­da nas vacinas não se realizou por completo. Diminuíram as hospitalizações e as mortes por Covid-19, mas ficou mais difícil alcançar a imunidade de grupo. Em vez dos 70% de vacinados, fala-se agora em 85% ou até em mais de 90%. Complicando ain­da as coisas, já há quem assume que poderá ser necessário uma terceira dose da vacina para manter o sistema imunitário realmente efectivo contra as novas variantes do coronavírus.

Em Cabo Verde, a oferta de centenas de milhares de doses de vacinas no âmbito do projec­to Covax e no quadro das rela­ções bilaterais com países ami­gos, aliada ao trabalho efectivo e meritório das equipas de vaci­nação em todas as ilhas, têm-se conseguido um nível elevado de vacinação. O governo apon­ta para finais do ano atingir os 85% da população elegível para as vacinas. Com a resolução n.º 82 de 23 de Agosto deram­-se passos importante para, na prática, tornar obrigatória a va­cinação em vários grupos pro­fissionais entre os quais, os pro­fessores, profissionais de saúde, empregados de hotelaria e res­taurantes e outros prestadores de serviço que fazem atendi­mento público. A confirmação semanas atrás da presença no país da variante Delta do coro­navírus deve reforçar o sentido da urgência em vacinar o maior número de pessoas e mover-se agressivamente para proteger os jovens e as crianças da in­fecção particularmente quando já se está a poucas semanas da abertura das aulas.

Vendo o impacto causado por surtos da variante Delta em países com percentagens eleva­das de população vacinada não se pode, de facto, ser compla­cente com a situação actual em que se forjam resistências à va­cinação e se dá guarida a com­portamentos de risco. Não é por acaso que a resolução refe­rida, no seu preambulo, chama a atenção para o facto de apesar de todos os esforços envida­dos, as taxas de contaminação mantêm-se num nível acima do desejado. Agora que se está a lidar com uma variante do vírus várias vezes mais contagiosa do que a variante Alfa que aumen­tou exponencialmente os casos de covid-19 em Abril/Maio há que transmitir a urgência em melhorar os níveis de vacinação e principalmente em invocar o sentido de dever de todos em se vacinarem para o seu bem, dos mais próximos e para o bem de toda a comunidade.

Como está a ficar cada vez mais claro que a imunidade de grupo provavelmente será um objectivo impossível de atingir é da maior importância que se dê ênfase a outras formas de minimização das possibilidades de contágio. Curiosamente nos cuidados a ter com o corona­vírus ainda se insiste nas reco­mendações anteriores de lim­peza das mãos e das superfícies. Não se põe o foco devido no uso das máscaras, na ventilação dos espaços e nas regras de funcio­namento em recintos fechados que o conhecimento científico mais recente da forma como o vírus se transmite de uma pes­soa para outra recomenda. E isso agora é da maior impor­tância porque, como já se sabe, as pessoas vacinadas mesmo com duas doses não estão livres de serem infectadas por no­vas variantes do coronavírus e, tratando-se da variante Delta, de serem contagiosas, ou seja, de poderem passar o vírus para outras pessoas mesmo que se­jam assintomáticas ou tenham sintomas leves da doença.

Manter a confiança é um ele­mento chave de combate contra a crise pandémica e a crise eco­nómico e social que a acompa­nha. Informações incompletas ou pouco rigorosas passadas às pessoas podem miná-la e na sequência comprometer o engajamento e o contributo de pessoas, empresas e sociedade para a eficácia das medidas de política dirigidas para mitigar os efeitos das crises e preparar as condições de retoma. A pro­messa das vacinas era que con­seguida a imunidade de grupo praticamente tudo voltaria ao normal. Os cientistas hoje di­zem que perante a capacidade demonstrada de mutação do co­ronavírus provavelmente não é possível pelo menos por algum tempo conseguir imunidade de grupo independentemente da percentagem da população que se vier a vacinar. Recomendam, porém, que mesmo sem esse resultado é importante conti­nuar a vacinar para diminuir as chances do vírus ter mutações circulando por gente não vaci­nada.

Imagine-se que não é fácil para as autoridades insistir na vacinação e até dar passos para a tornar obrigatória quando em simultâneo não podem prome­ter que tudo voltará ao normal mesmo se todos estiverem vaci­nados. Também não é fácil de­pois de mais de um ano e meio de pandemia dizer às pessoas que se deverá continuar a usar máscaras em certas situações e que o acesso a certos lugares e serviços e a participação em actividades colectivas poderão ainda ficar sujeitos a determi­nadas restrições. Navegar nes­te ambiente de incertezas, sem que se agravem ao nível do in­divíduo e da sociedade as con­sequências do distanciamento social, de perda real de rendi­mentos e de oportunidade de carreira ou de realização pes­soal e profissional, exige mais do que nunca que a postura de Estado seja honesta, sábia e pragmática e também compe­tente e segura no momento de execução.

O pior que pode acontecer é que com todas as incertezas quanto ao futuro e as dificulda­des de viver no momento pre­sente com menos rendimentos e sem muitas outras opções de vida se venha ainda acrescentar a insegurança e a violência no quotidiano das pessoas. Vê-se isso nalguns países onde existe uma cultura de violência asso­ciada à posse de armas de fogo. O estranho é algo similar tam­bém se verificar em Cabo Verde, mas sem que se assuma que há uma cultura de violência e que aparentemente o acesso a ar­mas de fogo em particular pelos jovens é fácil como parece fácil para alguns deles usá-las contra pessoas ao menor pretexto. A deterioração económico-social e até psicológica por causa da crise claramente que é propí­cia à erupção de situações que podem evoluir para a violência e aumentar o sentimento de in­segurança.

Impedir que se entre numa espiral de violência é funda­mental para que o Estado pos­sa manter a sua autoridade e a confiança das pessoas e aplicar a sua estratégia de saída da cri­se. Nesse sentido, não oferecem qualquer conforto reacções de autoridades que explicam a violência presente com erup­ções cíclicas sem oferecer mais explicação dos fenómenos so­ciais atrás do crime. Também mostra-se insensibilidade quanto à existência em algum grau de uma cultura que propi­cia a violência na resolução de problemas quando se recorre a apelos descontextualizados de “Homi faca, Mudjer matchadu, Mininus tudu ta djunta pedra” para retoricamente responder a algum desentendimento na esfera pública. O que é preciso é mais serenidade, mais soli­dariedade e mais coragem para identificar as causas e os meios da violência e efectivamente os neutralizar e ao mesmo tempo restaurar a esperança de outras saídas para a crise e para uma vida digna.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1030 de 25 de Agosto de 2021.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Largada presidencial

 

A dois meses das eleições presidenciais marcadas para 17 de Outubro o país prepara-se para o último acto deste ciclo eleitoral que se iniciou há quase um ano com as autárquicas de 2020.

Pela natureza do órgão, pela conjuntura e pelo que dele se espera deverá ser uma eleição especial. De facto, desta vez trata-se de eleger um órgão que é singular e suprapartidário e que não tem funções governativas. A eleição irá verificar-se no actual ambiente de incertezas que se vive em meio de uma pandemia sem precedentes e que apesar das vacinas ainda não se vislumbra quando a retoma económica poderá processar-se e a que ritmo. O momento é marcado também por grandes desafios ao sistema democrático e em que não faltam tentativas de descredibilização das instituições.

Sendo especial a eleição presidencial, há sempre o risco de se tentar desvalorizá-la considerando que se trata de perda de tempo e de dinheiro porque o PR não governa e nada consegue mudar. Ou, no sentido contrário, e para se fugir ao estigma de ser a eleição de uma espécie de Rainha de Inglaterra, pode-se ter a tentação de lhe imprimir um carácter que aparentemente lhe dá competências em matérias de governação, mas que além de criar falsas expectativas no eleitorado, desvia a eleição dos seus propósitos e pode ser um foco de tensão futura com quem realmente tem as rédeas da governação. Num e no outro caso perde-se a possibilidade de focalizar o debate eleitoral no que realmente importa e que tem tudo a ver com o facto de constitucionalmente o presidente da república ser o representante da república e o garante da independência nacional, da unidade da Nação e do Estado, do cumprimento da Constituição e do normal funcionamento das instituições.

A eleição presidencial ao acontecer no término do segundo e último mandato do actual PR e, por conseguinte, de renovação obrigatória do titular do cargo, abre a possibilidade única de se centrar o debate no que deve ser a função presidencial nos tempos actuais. A democracia em todo o mundo apresenta sinais de crise grave com instituições fragilizadas, sistemas partidários desacreditados e tentações populistas e autocráticas. Em muitos casos não faltam derivas iliberais limitando direitos fundamentais e pondo em causa a independência dos tribunais e hostilizando os órgãos de comunicação social. Noutros casos há percepção de que se vive uma crise de representação acompanhado de um sentimento de desconfiança em relação às elites e de crescente dependência das redes sociais o que paradoxalmente deixa as pessoas susceptíveis a líderes com posturas narcisísticas ou com tiques de celebridade. Claramente que a forma como o cargo de PR poderá vir a ser exercido irá contribuir para a contenção ou não das tendências mais descredibilizadoras do processo democrático abrindo a possibilidade de mobilizar vontades e focar energias da nação no que deve ser feito para ultrapassar a situação actual.

Não se pode ignorar os sentimentos anti-sistemas que aproveitaram situações recentes bem identificadas para se exprimirem em órgãos de comunicação social, nas redes sociais e em petições. Descontentes da democracia, do constitucionalismo liberal e do Estado de Direito existiram sempre. Perante fragilidades notórias do sistema democrático procuram servir-se das próprias instituições da democracia como o parlamento, os partidos políticos e a imprensa para desacreditar todo o sistema. A cereja no topo do bolo seria poder instrumentalizar o cargo de presidente da república. E é assim porque facilmente podem ser criadas tensões no sistema democrático em particular nas relações com o governo e com o parlamento se o exercício do cargo do PR ganha o hábito de “bordejar” os limites das competências constitucionalmente estabelecidas. Em alguns momentos da vida desta segunda república, às vezes com incitamento de outros, outras vezes movidos por desejo de protagonismo ou a tentação de governar ou fazer de oposição, aconteceram casos complicados com consequências na vida do país e que um dia eventualmente a história irá aclarar das razões e motivações.

Diz-se que o poder do PR nas democracias parlamentares é de geometria variável. Como não governa o que mais conta, na sua interacção com os outros órgãos de soberania e com o país, é o seu poder de influenciação. Ora, esse poder varia e é tendencialmente maior se o governo é minoritário ou tem uma maioria precária no parlamento. Pela observação da generalidade dos PR nota-se que tendem a acomodar melhor o governo no primeiro mandato do que no segundo, quando já não precisam de apoio para reeleição. Se têm origem no segmento de opinião que está na oposição não poucas vezes ficam sob pressão para tornar as coisas mais difíceis para o partido no governo. Quando cedem à tentação e mostram protagonismo desgastante para o governo ou já estão no segundo mandato ou o governo de alguma forma está politicamente mais frágil.

Em grande número de casos estes protagonismos de oportunidade não levam a bons resultados no sistema. Além de cultivarem a desconfiança entre titulares de órgãos de soberania dão azo ao cinismo na esfera pública que, em particular, nas jovens democracias se transforma no maior obstáculo ao desenvolvimento de uma cultura democrática. A democracia com as suas normas, processos e procedimentos cria essencialmente as regras de um jogo em que todos querem participar assumindo que elas são cumpridas e que o PR é o arbitro e moderador do sistema cumprindo com o papel que na condição de suprapartidário e de eleito directamente pelo povo lhe compete.

Como em qualquer jogo, quanto mais se adere às regras mais bonito é o jogo, menos ineficiências se criam e mais vias para atingir objectivos se podem encontrar. Cumprindo as regras, aprende-se a jogar melhor, quem participa e assiste enriquece-se pessoal e institucionalmente com as novas estratégicas e as tácticas aplicadas e há probabilidade maior de se encontrar soluções inovadoras. Há também menos risco de o país deixar-se apanhar em mitos, ilusionismos e meias verdades porque ninguém está impedido de gritar que o rei vai nu. Estão, pois, enganados os descontentes com a democracia que quando apontam erros no sistema, ao invés de insistirem na aplicação das regras, tendem a aumentar o caos existente, a propor desinstitucionalizar ainda mais e a promover a entrada de figuras providenciais que não precisam cumprir regras.

A eleição do presidente da república é o momento certo para mostrar a importância do cumprimento das regras para a consolidação da cultura democrática, essencial para manter o clima de liberdade, de justiça e de solidariedade que o país precisa neste momento difícil. Todos que a partir de hoje, 18 de Agosto, são candidatos a presidente da república devem ter isso em devida conta e procurar conduzir a sua campanha de forma a que o eleitorado possa com mais clareza ver qual é a personalidade que com confiança, segurança e perseverança está em melhor posição de fazer a democracia trabalhar para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1029 de 18 de Agosto de 2021.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Quo Vadis políticas públicas?

 

O Instituto Nacional de Estatísticas (INE) divulgou na semana passada dados preliminares do Censo 2021 incidindo sobre a população e a habitação. De entre as informações passadas ficou-se a saber com alguma surpresa que a população de 2010 para 2021 diminui de 491.683 habitantes para 483.628.

A população urbana cresceu de 61,8% em 2010 para 73,9% em 2021 e a população rural, no mesmo intervalo de tempo, caiu de 38,2% para 26,1%. Outro dado importante é que das ilhas terão saído em termos líquidos 29.076 pessoas e deslocadas para o Sal, Boa Vista e Cidade da Praia num total de 21.619. A diferença, 7457 pessoas, eventualmente terá saído do país por razões de emigração, estudos no estrangeiro e outras. Concomitante com essas deslocações internas nota-se o crescimento do número de barracas como habitação em 85,7 % de 2010 para 2021 nas ilhas de S. Vicente, Sal, Boa Vista e Cidade da Praia. Perante estes dados é de se perguntar: Quo Vadis (por onde vão) as políticas públicas do país?

Muito do discurso político feito em Cabo Verde procura realçar a necessidade da criação de condições para fixar a população nas suas ilhas de origem. Diz-se, por exemplo, que se está a investir na mobilização da água (furos, barragens, dessalinização) para dar vida ao mundo rural; que se está a construir estradas, portos e aeroportos para desencravar localidades; que se está a criar escolas, liceus e até polos universitários para garantir igualdade de oportunidades; e que se está a edificar hospitais, sistemas energéticos e de telecomunicações para criar condições adequadas para o desenvolvimento social e económico em todo o país. Compreende-se que com este tipo de discurso procura-se granjear suporte político junto de algum tipo de eleitorado tanto a nível central como local. O problema é que quando pôs na prática, e para isso mobilizados e aplicados milhões de contos, são tão grandes as ineficiências criadas que nem se consegue atingir o objectivo de fixação das populações nem também o de fazer o país crescer o suficiente para ultrapassar as vulnerabilidades que os anos de seca revelaram e que foram aprofundadas com a pandemia.

Os dados do INE deixam transparecer que as pessoas reconhecem onde a economia mostra dinamismo, capacidade de expansão e promessa de emprego. As migrações para a ilha do Sal e da Boa Vista ao longo da década são a prova disso. As pessoas vão onde há investimento externo massivo, a construção de grandes hotéis e resorts, e onde há uma procura externa em forma de um fluxo turístico crescente que garante sustentabilidade aos negócios e aos empregos. Quem não parece reconhecer plenamente essas potencialidades são os poderes públicos que, em vez de capitalizar sobre os investimentos feitos para desenvolver actividades conexas privilegiando a emergência de um empresariado local capaz de prestar serviços e fornecer bens aos empreendimentos turísticos, optam por uma postura quase de passividade, mas que na prática lembra a do rentista. Venda de terrenos e cobrança de impostos e taxas diversas devido ao turismo acontecem, mas não se vêem políticas públicas atempadas para responder às necessidades das pessoas que com a sua mão-de-obra tornam os investimentos uma realidade economicamente dinâmica.

O crescimento vertiginoso das barracas nessas ilhas como demonstra o Censo 2021 é prova clara dessa passividade quando aplicada ao sector da habitação. Curioso é que nos primeiros cinco anos da década 2010-2021 o país estivesse a implementar o projecto Casa para Todos com base num crédito português de carácter comercial no valor de 200 milhões de dólares. Enquanto se levantavam barracas na ilha do Sal e da Boa Vista construíam-se prédios em várias ilhas que depois se viria a verificar que na prática nem o governo de então nem o de agora conseguiu vender ou arrendar. Foi dos momentos em que ficou mais claro a falta de coerência nas políticas públicas com resultados terríveis tanto para o país como para as pessoas. A pesada dívida externa de mais de dois dígitos que o país vem arrastando há anos e que se agravou extraordinariamente com a pandemia tem a sua origem nessas opções que deixam o país com elefantes brancos ao mesmo tempo que oportunidades são perdidas e não se potencializa o que realmente cria riqueza, gera emprego e aumenta as exportações.

Devia ser evidente para todos que uma economia pequena como a cabo-verdiana só pode prosperar se souber fazer uma ligação vantajosa com a economia mundial atraindo investimentos e exportando bens e serviços. Historicamente todos os momentos de fugaz prosperidade que o país teve estavam de uma forma ou outra ligados à procura externa de bens e serviços. Depois da independência perdeu-se essa conexão. O fluxo da ajuda externa garantia algum rendimento e crescimento da economia mesmo com um regime político hostil ao investimento externo e à actividade privada e promotor de uma economia virada para dentro. O Estado que foi criado com esse modelo, porém, nunca se deixou completamente reformar, apesar dos diferentes governos democráticos que se têm sucedido nos últimos trinta anos.

As incoerências nas políticas públicas continuam com os custos de eficiência, produtividade e competitividade conhecidos de todos. De vez em quanto vêm à superfície para se verem os seus efeitos como é o caso que o Censo 2021 revela com a saída massiva das pessoas do mundo rural para as cidades. Um outro caso é o que se passa em S. Vicente com o aumento do número de barracas que conjuntamente com a perda de população evidenciam o empobrecimento de uma ilha cuja economia só pode realmente ser dinamizada com ligação ao exterior. Não compreender isso impede que haja vontade de mudar a atitude quanto à relação do país com o mundo e de questionar políticas publicas cujos resultados são limitados, se não mesmo prejudiciais.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1028 de 11 de Agosto de 2021.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Aprender a viver com incertezas

 A pandemia do vírus sars-cov-2 continua a ser o desafio central da actualidade em todo o mundo. Para além do impacto sanitário que já levou a quase duas centenas de milhões de infectados e a mais de 4 milhões de mortes pode-se constatar os seus efeitos sócio-económicos que, em alguns casos, só não têm sido mais devastadores por causa da pronta e abrangente intervenção do Estado.

Os custos do combate à pandemia têm sido enormes levando à contracção brusca da economia em muitos países e ao seu endividamento rápido. Em pequenos países insulares o choque externo provocado pela Covid-19 foi terrível levando, no caso de Cabo Verde, a uma contracção da economia em cerca de 15% do PIB e a uma dívida pública de 155% do PIB nos finais de 2020, de acordo com o relatório deste mês de Agosto do BCV sobre o estado da economia.

Todos anseiam pelo fim das contaminações e pela retoma da economia. Fizeram-se grandes avanços na criação de vacinas e muitos milhões de pessoas em todo o mundo já foram vacinadas. O coronavírus, porém, não ficou parado e contra-ataca. Sucedem-se mutações cada vez mais contagiosas e mesmo em países com elevados níveis de vacinação surtos de novas variantes, ontem alfa, hoje delta e talvez lambda amanhã, ameaçam as tentativas de retoma e de regresso à normalidade da vida em sociedade e põem em causa o grande objectivo de se atingir a imunidade de grupo e acabar com a pandemia. Como disse a expert em vacinas Kathleen Neuzil, citada pela Washington Post, vacinar pessoas deve continuar a ser a prioridade, mas o público também tem que mudar a sua relação com o vírus que certamente irá conviver com a humanidade no próximo futuro.

Compreender que não há soluções imediatas para a crise pandémica e as outras crises por ela gerada é sempre difícil para a generalidade das pessoas, considerando as enormes e abrangentes restrições a uma vida normal sustentados por todos há quase um ano e meio. A impaciência perante as medidas às vezes contraditórias das autoridades em matéria de combate ao coronavírus testemunha isso perfeitamente. O que não se compreende é que governantes e, em geral, a classe política alimentem essa impaciência em vários momentos. Quase em todos os países conhecem-se exemplos de medidas precipitadas ou precauções não tomadas que depois resultaram em surtos da covid-19 com as consequências que já se conhecem. Para além desses “ir e vir” minarem a confiança das pessoas nas autoridades sanitárias, traduzem-se muitas vezes em tentativas de conseguir ganhos políticos à custa dos adversários políticos. Com isso, semeia-se desconfiança e colocam-se obstáculos ao que devia ser uma frente unida perante uma ameaça existencial que para ser enfrentada com sucesso precisa do engajamento efectivo de todos.

Muitos pensaram e desejaram que a pandemia do coronavírus, ao expor a nossa humanidade comum, abrisse o caminho para uma maior solidariedade entre as pessoas e uma maior convergência na procura de soluções tanto a nível nacional como internacional e até planetário. A realidade ficou muito aquém dos desejos, mesmo assinalando os enormes feitos nos domínios da investigação, desenvolvimento, produção e distribuição de vacinas e também nos gestos de solidariedade dirigidos aos países menos desenvolvidos e carentes de meios médicos, sanitários e também financeiros para responder à pandemia. Os limites dessas solidariedades e convergências são, porém, muito evidentes e é grande a tentação de se voltar às práticas anteriores que privilegiavam o individualismo, secundarizavam o multilateralismo na relação entre as nações e ignoravam as mudanças climáticas e outras ameaças planetárias.

Nem a continuidade da pandemia em formas ainda não completamente previsíveis e que aparentemente não excluem ninguém – é só ver os surtos na Índia, Europa, Estados Unidos, Brasil, África do Sul e ultimamente a Indonésia – parece ser motivo suficiente para impedir algum tipo de retrocesso no que devia constituir-se num momento alto para a solidariedade global e para um olhar para dentro das sociedades e identificar o que não vai bem. A nível nacional continuam as rivalidades estéreis e tentativas de bloqueio e de descrédito das instituições e da democracia. Isso acontece porque nem mesmo com a perspectiva de convivência forçada com um vírus perigoso e altamente infeccioso, se consegue manter viva a noção central que a luta pelo bem comum não deve ser secundarizada sob pressão de interesses outros.

Também em Cabo Verde a pandemia ao expor as profundas fragilidades do país não foi vista como suficiente pretexto para uma reflexão mais profunda sobre as vulnerabilidades da população, sobre as dificuldades em tornar mais credíveis e eficazes as suas instituições democráticas e sobre a incapacidade em potenciar recursos existentes e em particular os recursos humanos para aproveitar oportunidades de inserção na economia global. Mesmo sendo a causa uma crise sem paralelo, a situação não deixou no fundo de ser vista como mais uma que o país vai atravessar com a ajuda da solidariedade internacional. Assim sendo, interesses outros contam mais do que efectivamente deveria ser o objectivo de procurar engajar todos num esforço colectivo à altura das fragilidades expostas pela crise pandémica.

Prefere-se, como se constatou no debate sobre o estado da Nação, usar a pandemia e as suas consequências brutais para demonstrar que antes estava tudo bem, quando é sabido que as vulnerabilidades e a precariedade vinham de longe e se tornaram mais visíveis com os três anos de seca. Mesmo quando ficam para trás as eleições, renova-se quase de imediato o antagonismo de sempre entre os partidos, ficando as questões de fundo e urgentes por discutir, equacionar e resolver e também as responsabilidades por assumir. O jogo de “culpar o outro” repetido incessantemente em todos os debates pelos dois partidos que se alternam a governar o país não pode deixar de ser um exercício estéril.

De facto, põe-se o país na posição de nunca realmente enfrentar os problemas e de simplesmente manter-se na proverbial posição de “empurrar com a barriga”. O que parece quebrar com a monotonia desses ataques e contra-ataques são as tiradas contra o sistema visando em particular o sistema de justiça e o parlamento. Aparece logo um grupo de claque constituído na sua maioria pelos mesmos descontentes com a democracia que nunca exigem que se cumpram as normas e os procedimentos do jogo democrático existente, mas queixam-se da sua eficácia como se fosse possível ter um bom jogo sem seguir as regras. Entretanto, sem escrutínio eficaz nem responsabilização efectiva, quem for governo continua a sua gestão corrente marcada por protagonismos pessoais que já nem se preocupam com a coerência governativa quando se desdobram em declarações na comunicação social, em iniciativas políticas e nomeações.

A situação pandémica não é uma questão simples nem passageira. A realidade vivida neste ano e meio mostra as enormes dificuldades que terão que ser enfrentadas se não houver uma retoma da economia. As incertezas até aí chegar são muitas e mesmo a vacinação geral não se apresenta como a solução completa para o problema do coronavírus. Mais do que nunca, uma outra atitude quanto à forma como o país é visto, vivido e governado pelas suas gentes, impõe-se. Resiliência nunca significou “deixar andar” e “repetir o mesmo”. Deve sim significar que a meio de dificuldades é preciso mobilizar energia e encontrar novas formas para se afirmar, vencer obstáculos e criar bases de prosperidade futura. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1027 de 4 de Agosto de 2021.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Nação expectante

 

O debate sobre o estado da Nação é já na próxima sexta-feira, dia 30 de Julho. O governo e as forças políticas representadas no parlamento vão oferecer cada um o seu ponto de vista sobre a situação actual do país e esgrimir os argumentos de sustentação das respectivas posições.

Do debate parlamentar ninguém espera que saiam acordos ou compromissos de acção conjunta. Mas, pelo menos, devem servir para iluminar os desafios que se colocam ao país, revelar a complexidade das questões postas a todos e, sendo possível, deixar pistas para eventuais soluções ou caminhos a trilhar para ultrapassar a encruzilhada onde o país se encontra de momento.

Da parte das pessoas que pela comunicação social vão seguir o debate, o mais natural é que haja uma postura expectante no sentido amplo em que observam, estão atentas, preocupam-se, põem-se na posição de vigilantes e há o desejo que, qualquer que seja o caminho escolhido, tudo corra bem. Passaram somente três meses que o eleitorado deu uma maioria ao governo para lidar com uma das situações mais difíceis vividas em Cabo Verde. Mesmo com o mal-estar actual causado em parte ou intensificado pela situação pandémica, há a confiança em algum grau de que dificuldades poderão ser ultrapassadas e que soluções duradoiras e sustentáveis serão eventualmente encontradas.

Pode-se estar a viver momentos difíceis a vários níveis – económico, social e até psicológico, mas a verdade é que no domínio do político o ambiente numa certa perspectiva poderia ser considerado privilegiado. O governo está no início de um mandato de cinco anos, as próximas eleições com possibilidade de impacto real na governação só vão acontecer daqui a quatro anos e a oposição está a dar os primeiros passos na reestruturação que terá que fazer após uma liderança desastrosa de mais de cinco anos. Por outro lado, com a pandemia e a maior dependência do Estado, resistências a uma acção decisiva do governo para se ir além do status quo dificilmente poderão vir da própria sociedade civil. O ambiente excepcional, se favorável ao exercício do poder sem obstrução, traz, porém, consigo maiores responsabilidades. A qualidade da liderança mais do que nunca será escrutinada. Falhas em se mostrar à altura dos desafios serão seguramente punidas de forma mais severa.

Hoje é claro para qualquer observador que para o bem-estar dos países é mais importante ter uma liderança visionária e competente do que ser dono de recursos naturais ricos como o petróleo ou outros minérios com alta procura mundial. A grande questão que se coloca a todas as economias é como evitar que constrangimentos de crescimento as coloquem numa armadilha dentro da qual uns mesmo com ajuda externa, outros com transferência de fundos da União Europeia e outros ainda com venda de recursos naturais não têm como impedir o empobrecimento relativo marcado por grandes desigualdades sociais e por bolsas crescentes de pobreza. E sem resolver esta questão não se consegue acompanhar a dinâmica desenvolvida pelos países que na base de acréscimos contínuos em produtividade e competitividade melhoram de forma sustentada o nível de rendimento das suas populações. A marca de uma liderança capaz nos tempos de hoje passará certamente por criar condições para fugir à armadilha. Crucial para isso será saber identificar os constrangimentos que a enformam e a mantêm ao longo do tempo e que seguramente têm origens históricas e sócio-culturais e agir de forma consequente para os ultrapassar.

Em Portugal, na semana passada, em sede do debate sobre o estado da nação, a grande questão foi identificar o que vem impedindo a convergência de Portugal com a Europa apesar dos enormes recursos transferidos ao longo de décadas. Este país está na iminência de receber somas volumosas no quadro do que se convencionou chamar de bazuca financeira e é grande a preocupação de não se repetir os erros anteriores. O Primeiro-ministro português disse que “os próximos anos vão ser decisivos e que é necessário mobilizar todas as energias e forças para recuperar e reconstruir o país, aproveitando a chance actual de dispor de recursos disponibilizados pela Europa”. Também na Itália, ao ir buscar o célebre e competente Mario Draghi para o governo, e noutros países está-se a concordar que é de suma importância assegurar lideranças que percebam o seu papel no mundo de hoje e em particular na actual conjuntura da crise pandémica. Papel esse que passa por renovar a ideia de servir com dedicação e competência e não se deixar cair na tentação de se servir do cargo, abrindo portas à corrupção e mantendo o país preso aos constrangimentos que não o deixam sair da armadilha do crescimento rasteiro e do empobrecimento garantido.

Em Cabo Verde, a conjuntura actual dos grandes desafios derivados da crise pandémica, mas também de uma maior facilidade na movimentação política, constitui um especial desafio ao governo. Se não conseguir ver as oportunidades e ousar fazer as reformar a todos os níveis que se impõem a sua fragilidade ficará patente para todos. Se pelo contrário souber aproveitar a crise e ser capaz de movimentar o país com reformas e engajamento das pessoas, das empresas e da administração pública poderá fazer história. Os tempos e a sua crise são aptos a revelaram talentos e prestações muito especiais. Há que pôr de lado as tentações vulgares para o eleitoralismo permanente a inquinar as relações dentro do Estado e entre o Estado e as autarquias numa perspectiva que protege interesses corporativos nos organismos públicos e favorece derivas autocráticas nos municípios. Todos sairiam a ganhar se uma reorientação da política finalmente trouxesse a economia que pudesse renovar a esperança de que, não obstante a pandemia e as suas sequelas, dias melhores poderão estar à frente.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1026 de 28 de Julho de 2021.