segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Desafios e perspectivas de governança local

 

Com as eleições autárquicas a serem realizadas no dia 1 de Dezembro, as câmaras municipais (CM) e as assembleia municipais (AM) vão ser renovadas. As novas configurações de forças políticas, partidos e grupos de cidadãos, que saírem do acto eleitoral poderão traduzir-se em maiorias absolutas ou relativas, deixando antever, logo à partida, as probabilidades de se ter, conforme o caso, quatro anos de mandato estável ou períodos de instabilidade e até de bloqueio. A crescente crispação partidária aliada à incapacidade de negociar ou manter acordos entre as forças políticas, recentemente demonstradas nos municípios de S. Vicente e da Praia, poderão já ser o sinal de crises mais frequentes a verificar-se na governação municipal.

Estabilidade municipal normalmente está garantida com uma maioria absoluta na câmara municipal. Tratando-se de uma maioria relativa, que resulta em CM partilhada, tudo acaba por depender da disponibilidade das forças políticas para negociar, tanto na CM para a aprovação das propostas, em particular do plano de actividades e do orçamento, a serem apresentados à AM, como no órgão deliberativo para dotar o município dos seus instrumentos fundamentais de gestão. A novidade neste ciclo autárquico que está a terminar foi a situação caricata criada na CM da Praia em que a maioria nesse órgão recebida das eleições foi perdida, mas o presidente, em confronto com a prática estabelecida e o estipulado nos Estatutos dos Municípios, reivindicou o direito de apresentar propostas de orçamento à AM, sem aprovação prévia no órgão colegial executivo.

A verdade é que esse diferendo não foi dirimido e a prática impôs-se com a repetida aprovação pela AM do orçamento e do plano de actividades sem que todos os procedimentos legais tivessem sido seguidos. Uma questão que se coloca é se isso não abre um precedente para situações futuras de conflitualidade, instabilidade e ineficácia dos órgãos municipais, com todas as consequências e custos que acarretam. Outra questão é se a AM ao aceitar debater e votar propostas sem prévia aprovação da CM não estará a cumprir a Constituição que faz o orgão colegial executivo responsável perante ela. Claro que aqui se põe o problema de saber se. efectivamente na Lei, foram criadas as condições e disponibilizados os meios para AM poder escrutinar os poderes das câmaras municipais e os actos do presidente da CM. Para os munícipes que vão votar na AM é fundamental que reconheçam utilidade no órgão que vão eleger, sob pena de se aumentar o descrédito nas instituições do poder local e incentivar o caciquismo autárquico.

A estabilidade futura das autarquias vai depender muito da capacidade negocial e compromissória das forças políticas nos órgãos municipais, em particular na AM. Já se viu pelo caso de S. Vicente que acordos podem ser conseguidos na câmara e depois bloqueados na assembleia. A possibilidade confirmada pelo Tribunal Constitucional de haver candidaturas só para um dos órgãos municipais pode constituir-se num convite a uma maior fragmentação da AM ou numa não correspondência na representação de forças políticas nos dois órgãos. Em qualquer dos casos obriga a um maior esforço negocial e disponibilidade para construir coligações ou firmar acordos pontuais.

Se não houver um sentido aguçado de que o poder do órgão não está em eternizar o bloqueio mas em dotar o município dos instrumentos de gestão tudo ficará mais difícil. A CM e a AM são eleitas directamente e nenhum dos órgãos pode derrubar o outro como acontece com o governo que perde a maioria num sistema parlamentar. Isso faz com que não devam se subordinar um ao outro e, pelo contrário, num sistema de pesos e contrapesos, se obriguem a respeitar e a fazer cumprir as regras do jogo democrático. Quando isso não acontece, como no caso da proposta de orçamento da Praia, cria-se um ambiente de incumprimento que diminui a eficácia na resolução dos problemas do município e dos munícipes. Aos titulares desses órgãos de poder político é esperada uma responsabilidade muito especial reforçada pela proximidade dos eleitores e pelo impacto directo da acção municipal na vida corrente das pessoas.

Aliás, a própria existência do poder local parte da convicção de que populações num determinado território têm interesses específicos que não se esgotam no interesse nacional e que importa dotá-las de poder próprio para os administrar. A democracia local pretendida, marcada pela proximidade, deve ser cultivada para, de um lado, evitar bloqueios e ineficácia e, de outro, para não ser desvirtuada pelo caciquismo. Nesse sentido, é fundamental existir uma preocupação com a viabilidade dos município, em particular na criação da autarquia e concomitantemente com a contribuição dos munícipes para a sustentabilidade dos mesmos.

Tributação e representação vão a par e passo na democracia, ou seja paga-se imposto porque se está representado no órgão que os cria e que controla como são gastos as receitas obtidas. De outra forma vão surgir figuras providenciais e, muitas vezes, aspirantes a caciques a tentar conseguir receitas em permanente guerra de recursos com o Estado central, enquanto tudo fazem para enredar os munícipes numa malha de dependência, condicionando o acesso aos recursos mobilizados. Também acaba-se por criar um eleitorado que, ao não se sentir como contribuinte, pouco interesse terá no controlo da qualidade das despesas feitas com o erário público.

Em Cabo Verde, provavelmente, há municípios a mais e a sustentabilidade de vários deles é demasiado precária. Dos municípios , num total de vinte e dois a partir dos 14 existentes em 1993, segundo um estudo datado de 2015, as receitas próprias representam, em média, 32% das receitas totais, variando entre os municípios de 3% a 58%. As transferências do Estado representam em média 45% das receitas totais e variam entre 97% a 19%. E o esforço para arrecadar receitas fiscais é bastante baixo. Daí que as condições para a democracia local não sejam as ideais. Compreende-se assim porque persistem muitas das insuficiências que ainda pesam na afirmação da democracia local, nomeadamente as fragilidades na responsabilização política e na prestação de contas, a tentação para o caciquismo, a transformação dos municípios em campo de batalha entre o governo e a oposição e o eleitoralismo permanente que induz dependência na população.

É evidente o desenvolvimento autárquico verificado em Cabo Verde desde das primeiras eleições em Dezembro de 1991 e os extraordinários ganhos que representou para as populações de todas que ilhas. No entanto, é preciso identificar e ultrapassar as fragilidades na governança local e focar mais na melhoria da qualidade de vida das pessoas e do ambiente circundante, com mais segurança, acesso à habitação e a espaços público e mais conectividade. Também será importante saber dosear o papel de promotor e facilitador de iniciativas diversas, sociais, culturais ou empresarias, e contribuir para fazer dos munícipes os verdadeiros protagonistas na arena pública.

As próximas eleições são as nonas a ter lugar e já convinha equacionar os problemas dos municípios noutra óptica, considerando os desafios que o país tem pela frente. Há que ter presente que Cabo Verde não se confunde com o somatório dos seus municípios, que a entidade concreta da ilha nas suas especificidades deve ser assumida e que, para prossecução do interesse nacional, ter-se-á que potenciar estrategicamente todas as valências existentes. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1199 de 20 de Novembro de 2024.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

O mundo mudou

 

Os resultados das eleições americanas de 5 de Novembro apontam para mudanças nas regras do jogo a vários níveis nas relações internacionais. A eleição de Donald Trump para a presidência com maioria folgada juntamente com o controlo do Senado e da Câmara dos Representantes pelos republicanos vai-lhe conceder poder suficiente para pôr em prática as promessas mais disruptivas das políticas feitas durante a campanha eleitoral. Sem grande perspectiva de ver esse poder controlado pelo Supremo Tribunal de Justiça, considerando a sua composição com uma maioria confortável nomeada pelo próprio Trump e a sua aversão aos checks and balances do sistema político, aumenta a probabilidade de que o impacto dessas políticas seja profundo e abrangente.

Outrossim, a rapidez com que nos últimos dias Trump designou altos dirigentes para supervisionar essas políticas juntamente com o perfil radical deles dá ideia do seu forte comprometimento em fazer com que tais mudanças aconteçam.

Para além das consequências eventualmente complicadas na América, decorrentes dessa reorientação na política, tudo leva a crer que haverá um choque mais profundo e doloroso no resto do mundo. Assim, com o aumento drástico das tarifas para os produtos importados o mais provável é que haja um reflexo negativo nas relações comerciais globais e impacto directo na capacidade de exportação, no emprego e no crescimento económico de vários países espalhados pelo mundo. E ao pôr em prática as drásticas políticas contra a imigração aumentam as tensões nas fronteiras, a mão de obra pode escassear em sectores importantes da economia e os lucros das redes de tráfico humano tendem a tornar-se maiores.

Qualquer sinal de desengajamento com o mundo, seja no enfraquecimento da confiança na relação com os aliados na Europa, na Asia e noutros continentes, ou com outros parceiros em várias áreas de governança global, acarretará sérias consequências. As tensões geopolíticas poderão aumentar e a capacidade de resposta global a situações de crise, designadamente em saúde pública, instabilidade financeira ou desastres naturais, certamente diminuirá. Serão menores ainda as possibilidades de concertação na abordagem de problemas como fluxos migratórios intercontinentais, mudança climática e transição energética. Problemático, no mesmo sentido, poderá vir a revelar-se o papel futuro das instituições multilaterais, designadamente ONU, FMI, Banco Mundial e OMC, num mundo multipolar e com o bloco de países liberais efectivamente enfraquecido por divisões internas e desconfianças mútuas.

A realidade é que para o mundo inteiro a vitória de Donald Trump é um verdadeiro game changer. Não só lidera uma maioria significativa nos Estados Unidos ,que já mostrou querer mudar radicalmente o que até então se tinha como consensual em matéria da democracia liberal e constitucional, como também, com o seu exemplo, constitui um enorme incentivo em outras democracias para que movimentos similares de direita radical ou da extrema direita procurem formar maiorias absolutas para governar. Por outro lado com a preferência para o populismo e para a demagogia e para práticas políticas iliberais, que sacrificam os direitos fundamentes e descredibilizam o pluralismo e a separação de poderes, acaba, na verdade, por legitimar as autocracias e torná-las numa alternativa atractiva.

Curiosamente parece não afectar a forma como certas esquerdas, activistas e radicais identitários contrapõem às tácticas ultranacionalistas baseadas no medo e em preconceitos e ressentimentos. Mantêm as narrativas de sempre e a mesma perspectiva simplista que divide a sociedade em opressor e oprimido. Parece não lhes interessar que a reacção cada vez maioritária da sociedade como demonstrada pelo Trump esteja a encaminhar-se por vias que acabam por limitar os direitos fundamentais e por minar a democracia. Fica-se com a impressão que o niilismo que caracteriza os extremos se sobrepõe a tudo, mesmo às causas que clamam defender.

Para os países em desenvolvimento o mandato de Donald Trump, constitui um problema sério e um desafio enorme. Um problema porque entre outras coisas a imposição de tarifas e de outras políticas proteccionistas constituem um travão para o crescimento económico, aumentando as desigualdades intra e inter-países e diminuindo as possibilidades de investimento em novas tecnologias e de integração em cadeias de valor globais. Um desafio porque deve levar a uma urgente reflexão e acção estratégica e concertada para potenciar os recursos do país, combater as ineficiências e a corrupção e mobilizar a vontade da nação para enfrentar situações complicadas que surjam, sejam elas de causas naturais por razões de mudanças climáticas, ou derivadas de redução do mercado de exportação ou de fluxo turístico, ou induzidas pelo ambiente de tensão próprio de um mundo multipolar em emergência.

Para Cabo Verde com as fragilidades de um país arquipélago, população reduzida e recursos limitados uma mudança nas regras do jogo constitui um problema mais grave e um desafio maior. O novo ciclo eleitoral aproxima-se e, considerando a actual tendência nas democracias vê-se que os resultados não estão a favorecer o partido incumbente, o que pode levar eventualmente a alguma instabilidade governativa. Além disso, os efeitos já perceptíveis de alterações climáticas seja no regime das chuvas ou nas temperaturas elevadas devem servir de alerta para a ocorrência de fenómenos extremos (chuvas intensas, ondas de calor, secas, ventos fortes) frente aos quais o país não está suficientemente preparado. A emigração, por sua vez, poderá enfrentar mais obstáculos à medida que cresce o sentimento anti-imigrante e que novas medidas de controlo do fluxo migratório são implementadas nos países de destino.

O desafio que uma nova realidade mundial pode representar devia ser assumido por todos e, com esse ponto de partida, trabalhar com sentido de urgência e responsabilidade para fazer das diferenças de opinião uma fonte de inspiração e enfrentar as dificuldades nascentes com criatividade e acção vigorosa e no tempo certo. Fundamental seria mobilizar um esforço colectivo para combater as ineficiências, potenciar o capital humano e investir no capital social que se revela na confiança interpessoal, no civismo e na existência de instituições credíveis. Infelizmente a tendência é para a constituição de tribos políticas em que os extremos tendem a monopolizar a atenção, anulando o diálogo.

Sem debate e sem possibilidade de compromissos, porém , o país pode não ficar preparado para enfrentar um mundo em mudança acelerada. Há que parar por um instante e tentar perceber que se está a viver um desses momentos na história em que,de repente, o mundo muda. E lembrar que Mikhail Gorbatchev em 1989, num desses tais momentos históricos, já avisava: Os que se atrasam são punidos pela vida. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1198 de 13 de Novembro de 2024.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Kamala ou Trump, joga-se o futuro nas eleições americanas

 Meses de apreensão geral no mundo sobre o futuro presidente dos Estados Unidos de América chegaram finalmente ao fim com a realização das eleições de 5 de Novembro. Uma sombra tinha descido sobre a América desde que ficou claro que Donald Trump seria o candidato republicano, não obstante todas as transgressões imagináveis entre as quais o incitamento à insurreição e fraude eleitoral, desvio de documentos secretos, crimes fiscais e assédio sexual. Nessas circunstâncias, aparentemente, só o presidente Biden que o derrotara antes estaria na posição de o vencer pela segunda vez, afastando o espectro de uma América errática, no suporte a instituições de governança global e de luta contra as mudanças climáticas e outros desafios planetários, sem engajamento firme com os aliados e a flirtar com autocracias.

A realidade dos efeitos da idade avançada sobre Biden ficou impossível de ignorar na sequência do debate falhado com Trump em Junho, abrindo caminho para o lançamento da candidatura de Kamala Harris sem o tempo e sem o escrutínio que, normalmente, pela via das primárias são escolhidos os candidatos ao cargo de presidente. Apesar dos percalços, a nova candidata rapidamente conseguiu o apoio das várias alas do partido democrático e soube galvanizar o país com uma campanha que rivalizou com a de Trump reflectida nas sondagens que sistematicamente ao longo dos meses a puseram em termos de intenção de voto a par ou ligeiramente acima do adversário. E o extraordinário é como, no confronto com um projecto político (Trump) que põe em causa a democracia constitucional de quase 250 anos, o eleitorado parece dividido a meio.

Trata-se de um verdadeiro aviso para todas as democracias. Aliás, a dinâmica de uma certa direita radical na generalidade das democracias no mundo inteiro deixa aperceber que o fenómeno na base da emergência de Trump está presente ou latente em diferentes democracias só que ainda não suficiente amadurecido, mas a crescer paulatinamente, eleição a eleição. Na América pode-se observar o desgaste da democracia provocado por anos de posicionamentos iliberais vindos de diferentes quadrantes políticos e de contestações à ordem constitucional vigente. Chega-se à situação actual do partido republicano, que em certos aspectos já não aparenta ser um partido político, mas uma organização política que cegamente serve um chefe, de ter uma fracção expressiva dos seus dirigentes de décadas a incentivar publicamente a votação no candidato do outro partido.

Na Europa e em outros países, pode-se não ter chegado a esse nível de captura dos partidos por um outsider, mas ninguém pode garantir que, com o tempo e a entrada em cena da figura certa, o mesmo fenómeno Trump não apareça com todas as consequências. O motor para a sua expansão tem sido fundamentalmente o medo, os preconceitos, o ressentimento e a xenofobia. São os sentimentos que se procura suscitar na população e no eleitorado para exprimir os problemas reais das pessoas e da sociedade e as suas expectativas em relação ao futuro. Com maior ou menor grau de sucesso essas tácticas tem surtido efeito e a tendência é de progressivo alargamento eleitoral, contribuindo para isso não só as redes sociais, mas também as posições de certa esquerda focada em políticas identitárias, por si próprias iliberais.

A consequência óbvia disso é a tribalização da sociedade, o enfraquecimento da coesão social necessária para se manter a ordem constitucional e a oportunidade aberta ao surgimento de demagogos. Na América provavelmente deu-se um passo mais além porque se acrescentou mais uma componente que é a impunidade dos actores políticos envolvidos. Donald Trump ao longo de anos, primeiro como candidato, depois como presidente e outra vez como candidato não reconhecendo a derrota, nunca mostrou limites nos insultos proferidos, nas mentiras espalhadas, nas ameaças feitas e nos actos praticados contra pessoas e instituições. Até agora ficou impune apesar dos “impeachments”, dos processos judiciais, das denúncias nos média e de todos terem conhecimento do que ele fez. Ele próprio os confirma. Com isso tem provado que, como disse em Janeiro de 2016, podia atirar em alguém em plena 5ª avenida de Nova Iorque e não perderia nenhum voto.

De facto, não tem perdido votos apesar da incoerência das suas propostas políticas, da falta de idoneidade para exercer o cargo de presidente como testemunhado por grande número dos antigos colaboradores e da sua insensibilidade, revelando narcisismo extremo, chamando soldados mortos em combate de tolos e perdedores. Pelo contrário, os apoiantes têm aumentado e o seguidismo do líder parece sobrepor-se à discussão de políticas para o país. Para eles o objectivo de conquista do poder prevalece sobre tudo, na lógica de que os fins justificam os meios.

A de facto tirania da minoria que os republicanos têm exercido e que lhes permitiu fazer a captura do Supremo Tribunal de Justiça generalizou uma forma de política que não se deixa limitar pelas regras do jogo democrático. Chegou-se ao ponto de pôr em causa a ordem constitucional mesmo na relação entre o poder civil e os militares, como testemunham altas patentes das forças armadas. Com tudo isso, terão ultrapassado de uma certa forma os limites, o que terá levado uma parte importante dos republicanos influentes a se distanciarem do partido. Uma outra consequência é que gerou uma grande movimentação das mulheres a favor dos direitos reprodutivos que tinham ficado em perigo com as decisões dos tribunais, provocando uma onda de suporte a Kamala Harris. A grande questão é se será suficiente para travar o avanço do que personalidades e académicos como Robert Paxton estão a chamar de fascismo em outras roupagens que se está a querer impor à América.

Noutros países existem também perigos similares de surgimento de demagogos que com impunidade consigam descredibilizar as instituições, mentir descaradamente e construir realidades alternativas de base partidária bloqueadoras de qualquer tipo de diálogo na arena pública. Para isso, muitas vezes recorrem a partidos já existentes e, passando uma imagem de outsider, de anti-elites e de anti-partido, movem-se para capturar as organizações partidárias e transformá-las nos seus instrumentos pessoais de conquista do poder. Apesar dos ataques cirúrgicos dirigidos aos média e ao poder judicial na generalidade dos casos, não há sinal que venham gozar do mesmo grau de impunidade que tanto tem intoxicado os apoiantes de Trump. De qualquer forma, há que estar alerta para o fenómeno que até aqui em Cabo Verde já se faz sentir e que certamente vai afectar as eleições autárquicas em particular na Cidade da Praia com possibilidades de derrame sobre as eleições seguintes para a legislatura de 2026.

A possível vitória de Donald Trump ou de Kamala Harris significaria desfechos opostos com impactos profundos.

Uma vitória de Trump colocaria o mundo numa montanha-russa de imprevisibilidade, com consequências difíceis de conter, incentivando movimentos populistas e fascistas noutras democracias e potencialmente intensificando o desengajamento global dos Estados Unidos. Isso poderia aumentar a pressão migratória em direcção à Europa e à América e o exacerbar de sentimentos anti-imigrantes, trazendo o risco de um retrocesso civilizacional onde os ideais de liberdade e democracia cedessem espaço à autocracia como solução aparente num mundo de crises inesperadas, instituições multilaterais frágeis e segurança coletiva precária.

Já uma vitória de Kamala Harris seria vista como um travão à deriva anti-sistémica e um reforço dos valores democráticos, permitindo enfrentar ameaças existenciais como alterações climáticas e abordando tensões geopolíticas e guerras em curso com esperança de se encontrar soluções. Também significaria que, não obstante a forte tendência para a polarização de opinião pública e para uma tribalização da acção política, há esperança que o equilíbrio poderá ser retomado, os compromissos negociados e que o sentido do bem comum se sobreponha ao individualismo extremo, à atomização social e à guetização em identidades cada vez mais diminutas e desconfiadas dos outros. Que renasça a esperança e a solidariedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1197 de 06 de Novembro de 2024.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Para uma boa integração não se deixar apanhar nas armadilhas

 

A trágica morte em Lisboa de um cabo-verdiano, Odair Moniz, num encontro com a polícia foi o rastilho para uma sucessão de acontecimentos violentos incluindo carros partidos, autocarros incendiados e pessoas feridas. Tais acções foram apresentadas como protesto pela actuação policial completamente desproporcional nos bairros da cidade usando meios letais. Seguiram-se outras manifestações que culminaram numa concentração no sábado passado a exigir justiça e políticas públicas dirigidas para retirar bairros da cintura urbana de Lisboa da situação de marginalização em que se encontram.

Como já se tornou habitual nessas circunstâncias, os poderes públicos apelaram à calma e prometeram investigação célere e justiça pronta ao mesmo tempo que se moveram para restaurar a ordem pública. Outros apelos para tranquilidade e para serenamente esperar pela realização da justiça vieram das autoridades cabo-verdianas e de personalidades e organizações comunitárias locais. Já os extremistas, tanto da direita como da esquerda entraram no jogo de costume de uns com frases bombásticas e outros com manifestações exuberantes de indignação e revezando mutuamente nesses papéis procurar levar os ânimos ao rubro.

Nas democracias, em geral, está-se a verificar a polarização progressiva da sociedade com o discurso político a se tornar cada vez mais extremo e com o espaço para a abordagem das questões públicas e do interesse comum, de uma forma mais equilibrada e compromissória, a ficar mais estreito. As comunidades imigrantes são o alvo fácil numa manobra política em que, de um lado, se joga com o receio de perder trabalho para os imigrantes, com o medo da criminalidade que supostamente aumenta devido à imigração e também com uma induzida suspeita de diluição cultural e alteração demográfica devido às crescentes entradas no país. Cola-se ainda a esses temores o ressentimento em relação aos supostos subsídios e benefícios que os imigrantes poderão receber do sistema de segurança social e as vantagens no acesso a estudos e oportunidades devido aos programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI).

De um outro lado, e em geral a partir da extrema esquerda, a manobra em relação aos imigrantes, enquanto minorias sujeitas a várias formas de discriminação, é de os mobilizar num quadro de uma luta mais abrangente contra o sistema político e socio-económico existente. Para isso, o foco vai para questões identitárias e raciais e recorre-se à vitimização sistemática. A experiência eleitoral dos últimos anos nas diferentes democracias tem mostrado que nessa disputa o medo e o ressentimento agitados pela extrema-direita vem ganhando votos e em vários países ou já são governo, ou já estão quase à porta. Curiosamente, o discurso e as tácticas da esquerda mantém-se na mesma linha. Fica a impressão que para certos activistas e sectores de opinião é mais importante agigantar a ameaça da direita radical para demonstrar o falhanço da ordem socio-económica existente do que, com diálogo e compromissos vários, criar a convergência de vontades conducente a uma maior e melhor integração das minorias e dos imigrantes.

E é realmente a integração que se procura quando se toma a decisão de emigrar. O que se pretende realmente é ser parte de uma ordem socio-económica que abre a oportunidade de avanço em termos de rendimento, mas também profissional e até académica. Algo que ele chegou à conclusão que não tem no seu próprio país, ou por má governação ou má gestão económica que não atrai suficiente investimento, não limita efectivamente a informalidade e os custos de contexto e não traz crescimento robusto. Noutros casos, há uma razão extra para emigrar por não estar instituído um Estado de direito democrático e não haver garantias de liberdade e segurança e correr-se o risco de ser vítima de violência do Estado.

É evidente que a última coisa a desejar seria reproduzir no país de destino as condições que se deixou para trás, ou seja, não ter segurança, nem uma economia funcional. Num certo sentido é o que parece acontecer com os excessos na afirmação identitária e o apego a hábitos e formas de estar que minam as possibilidades de tirar mais vantagem do ambiente socio-económico existente, e que, pelo contrário, tendem a provocar conflitos e rejeição da maioria. A ousadia e o querer vencer na vida que animaram o desejo de emigrar são minados pela tentação de vitimização. Tentação essa alimentada por agendas políticas e outras que podem ser legitimas no quadro dinâmico e plural onde surgiram, mas não constituem a motivação central de quem emigra e procura uma ordem institucional inclusiva onde pode participar, sentir-se seguro e beneficiar da riqueza produzida.

Cabo Verde, há mais de um século que tem comunidades emigradas em diferentes continentes. São em geral comunidades bem integradas particularmente nos Estados Unidos e na Europa e para isso deverá ter contribuído um certo sentido de cabo-verdianidade que lhes permitiu sem conflito lidar com outras culturas preservando a sua. A experiência acumulada nessas comunidades deve servir de referência para evitar os excessos actuais da política identitária e das guerras culturais e também para impedir a instrumentalização dos problemas ainda existentes por agendas espúrias que pouco têm a ver com o objectivo de procurar uma vida melhor e ser bem-sucedido no país de emigração. O contínuo reforço da identidade cabo-verdiana, em particular nas novas gerações, poderá ajudar a contornar armadilhas tendo na base uma deficiente compreensão da experiência histórico-cultural de Cabo Verde, que não se consegue reduzir aos modelos aplicáveis noutros sítios, chegando em alguns casos ao ponto de hostilidade.

É um facto que as migrações estão a aumentar em todo o mundo, especialmente o fluxo migratório dirigido para a Europa e os Estados Unidos. Claramente que essa pressão sobre esses países se transformou numa questão política sensível para a qual se tem de encontrar soluções adequadas para poder manter o fluxo. Em Cabo Verde, a emigração ganhou um outro ritmo nos últimos tempos e é fundamental para as pessoas e para o país que tenha as melhores probabilidades de sucesso com boa integração. Quando acontece algo de trágico como é o caso de Odair Moniz a consternação é geral e muito sentida. Relembra a todos os riscos envolvidos na emigração e a importância de solidariamente e em diálogo se fazer representar e participar na procura de soluções para os problemas da comunidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1196 de 30 de Outubro de 2024.