segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

A oscilação entre o antigo regime e a democracia desune o país e não deixa focar no futuro

 

Donald Trump tomou posse na segunda-feira, dia 20, e confirma-se que o mundo mudou. A ordem política e económica instituída na sequência da segunda guerra mundial vai dar lugar a uma outra ordem cujos contornos ainda não se vislumbram. A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen já veio dizer que a economia mundial já começou a fracturar ao longo de novas linhas e que em relação ao comércio global é de se evitar uma corrida para o fundo.

Outros observadores referindo-se à perspectiva de Trump em controlar o Canal do Panamá, de comprar a Gronelândia e fazer do Canadá o 51º Estado da União falam de uma nova era imperialista de mudança de fronteiras e de aplicação da Doutrina Monroe, não excluindo o uso da força. Também há países a se prepararem para receber os deportados expulsos no seguimento da aplicação das políticas de controlo das fronteiras e do combate aos ilegais nos EUA.

A estas medidas vão somar-se outras com impacto global nas organizações internacionais como é o caso da saída dos EUA da OMS logo no primeiro dia do mandato. O mesmo deverá acontecer com outras organizações multilaterais devido a posicionamentos do governo Trump em relação à chamada ideologia do género, às políticas de diversidade, equidade e inclusão e à luta contra as alterações climáticas. Por aí vê-se que as transformações na política global devidas ao princípio agora adoptado de “América em primeiro lugar” não irão afectar só aliados (NATO, UE, Japão, Coreia do Sul) e potenciais rivais como a China e outros dos BRICS. Também o efeito desse reposicionamento será sentido nos países dependentes da cooperação multilateral, como é o caso de Cabo Verde.

São razões mais do que urgentes para a nação cabo-verdiana se focar na compreensão dos problemas que têm limitado o seu desenvolvimento designadamente na atracção do investimento externo e expansão do turismo, mas também na diversificação da sua economia e na capacitação do seu capital humano. Tudo isso num quadro de crescimento insuficiente que o FMI, no seu mais recente documento (17 de Janeiro de 2025) projecta para uma média de 4,8% do PIB até o fim da década. E sabe-se que a falta de perspectivas tem consequências complicadas. Causa insatisfação, leva à saída de quadros qualificados e à escassez de mão-de-obra em sectores-chave e diminui a confiança nas instituições e no futuro do país.

Infelizmente, parece que não é para aí que a atenção dos actores políticos está virada, mas sim para a conquista de poder. Nesse sentido quer-se o poder não para lidar com os problemas e realizar um projecto de desenvolvimento, mas para fundamentalmente, e em termos pessoais e de grupo, ter acessos especiais, dominar o Estado e estar em posição de criar clientelas. Por isso a política fica num nível baixo, crispado e fulanizado e alheio aos principais desafios do país. Quando sinalizados os problemas, são tratados numa perspectiva populista e crescentemente anti elites que explora sentimentos e emoções, transforma adversários em inimigos e vitimiza os mais vulneráveis. A polarização, que daí resulta, garante que as grandes questões não são discutidas, que se vai insistir em fazer o mais do mesmo e que quando se verificam alternâncias no governo não se verificam mudanças significativas na condução do país. Não estranha que a desesperança tende a instalar-se.

É só com essa motivação de conquista do poder pelo poder que se pode compreender a ofensiva político-ideológica que tem fixado a atenção de todo o país, do Estado e da sociedade no último ano e que está prometida para o novo ano. Em 2024, a ofensiva funcionou sob o chapéu do centenário de Amílcar Cabral e agora, em 2025, vai ser sob a capa dos 50 anos da independência nacional. Não deve haver dúvidas que alguém espera ganhar com essas investidas ideológicas, em boa medida comparticipadas pelo Estado, que incluem entrevistas, documentários, seminários, conferências, actos públicos, publicação de livros e até incursões de doutrinação nas escolas. Poderão iludir-se outras forças políticas, mas o mais natural é que seja ganhador o partido que reivindica Amílcar Cabral como seu fundador e que tem os seus antigos dirigentes como os únicos heróis da história do país.

Se há um ganhador, entende-se que há perdedores e um deles certamente que é o sentido da unidade da Nação e a ideia da república como comunidade autónoma de cidadãos livres e iguais. Vê-se isso na chamada Semana da República que, de facto, é uma semana da discórdia. A oscilação, de que fala Tocqueville, entre o antigo regime, consubstanciado no 20 de Janeiro, dia dos heróis nacionais, e a democracia e liberdade do 13 de Janeiro, só agrava a polarização ano após ano. Apesar disso, continua-se a realizá-la nos mesmos moldes. Provavelmente há quem queira vencer renitentes pelo cansaço ou então construir uma identidade na base da rejeição do outro para melhor ganhar os embates políticos.

Curiosamente, o primeiro-ministro nas cerimónias do 20 Janeiro veio contra toda a evidência dizer que “o sentimento de tolerância relativamente a posições e leituras diversas dos fenómenos históricos de Cabo Verde ajudam a “tranquilizar” o ambiente político-social”. De facto, não há leituras diferentes quando é o próprio Estado, as suas escolas e a sua comunicação social que impõem uma versão da história praticamente igual à perfilhada pelo regime de partido único. Sacrificados no processo são o pluralismo, a liberdade de expressão e de informação e o pensamento crítico. Todos eles princípios e valores fundamentais da Constituição de 1992 que estabeleceu a dignidade humana e a vontade soberana do povo como bases da república. Que tranquilidade pode trazer a sua supressão em troca de idolatrias impróprias das democracias.

Também não tem sentido homenagear, como fez o presidente da república na celebração do Acordo de Lisboa e do Governo de Transição, um processo político, e seus dirigentes, que se serviram da divisão, da coacção e da intimidação das pessoas para garantir que o direito dos cabo-verdianos à autodeterminação não seria exercido através de um referendo. E também para se assegurar que, com a independência, conseguida após eliminação de outras forças políticas, ter-se-ia um único partido a exercer o poder por tempo indeterminado. Certamente não é uma homenagem que gera a unidade da nação, particularmente porque não acompanhada de um pedido de desculpas pelos que foram presos, maltratados e forçados a sair da sua terra. Também não é um bom momento para falar de “extremismos e criação do caos e de polarização” como faz o PR quando procura valorizar o acto de maior radicalismo que é o de um partido se proclamar força política única e com legitimidade para fazer uso de todos os meios, e, se necessário, de toda a violência, para atingir os seus objectivos.

Pelo que se vêm assistindo é claro que não é pelo reforço da unidade nacional e pela construção do consenso em questões fundamentais que se batem as forças políticas neste momento crítico do mundo e também do país. Aliás, um sinal nesse sentido seria a disponibilidade em acatar as regras do jogo democrático. E não é isso que se verifica quando, por exemplo, se nota o protagonismo do PR em promover comemorações do Estado sem o respaldo jurídico-constitucional das leis da Assembleia Nacional ou do Governo. E a verdade é que sem respeitar o princípio da separação dos poderes, os pesos e contrapesos do sistema político é a própria democracia liberal e constitucional que fica em perigo. Apelos feitos nesse contexto para a unidade nacional e para se credibilizar a democracia não soam autênticos, caem em saco roto e acabam por minar a confiança de que tanto se precisa para focar nos problemas actuais do país e enfrentar os desafios emergentes no mundo actual. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O papel dos partidos na crise de confiança na democracia

 

Por altura da celebração do 34º aniversário do 13 de Janeiro convém relembrar o que o cientista político Jorge Carlos Espada quis dizer ao afirmar que “a democracia é obra comum de partidos rivais, sob a autoridade comum de regras gerais e iguais para todos”. E também ter em atenção ao alerta de outro cientista político, Robert Dahl, de que “as perspectivas de uma democracia estável num país melhoram se os seus cidadãos e líderes apoiarem fortemente as ideias, os valores e as práticas democráticas”.

Assim é porque as comemorações do Dia da Liberdade e da Democracia serviram fundamentalmente para lamúrias dos partidos e órgãos de soberania sobre o actual estado da democracia sem que fossem acompanhadas de qualquer assunção de responsabilidades.

Os apelos proferidos para inverter a perda de confiança nas instituições perdem-se no ar porque são dirigidos fundamentalmente a quem os faz. E a realidade é que são os próprios actores políticos que, ao não cumprirem rigorosamente as regras e ao não se mostrarem defensores a todo o tempo das ideias, valores e práticas democráticas, fragilizam a democracia, alimentam a abstenção e minam a confiança dos cidadãos.

Mesmo a porem-se na posição de lamentar o estado da democracia, percebe-se que não há qualquer intenção de mudar a actuação política seguida até ao momento. Pelo contrário, usa-se a insatisfação das pessoas revelada em sondagens para evidenciar insuficiências da democracia e pôr em causa a capacidade do regime democrático em satisfazer as aspirações das pessoas em ter uma vida feliz e próspera.

Na verdade, se se nota perda de confiança nas instituições não é porque há descrença na democracia, mas provavelmente porque os actores políticos fogem às regras de funcionamento democrático, umas vezes omitindo-se no exercício das suas competências e outras vezes ultrapassando-as. Criam tensões desnecessárias no sistema nas duas circunstâncias e passa-se a impressão com essa postura que a democracia não é obra comum e que qualquer fragilidade pode ser sempre imputada ao adversário político.

Pelas mesmas razões sentem-se livres para perfilhar princípios e valores em conflito directo com os existentes na Constituição sem preocupação com a tribalização da política. O sectarismo tribal que daí resulta impede que as questões e os desafios presentes e futuros do país sejam discutidos construtivamente e, parafraseando Alexis de Tocqueville, cria-se um ambiente político caracterizado pela perpétua oscilação entre o Antigo Regime e a Democracia. De seguida, hipocritamente, lamenta-se que as pessoas estão desesperançadas e procuram emigrar.

De facto, a democracia enquanto possibilidade de expressão livre e plural da voz soberana do povo está de boa saúde no seu essencial como se viu no passado dia 1 de Dezembro nas eleições autárquicas. Não obstante alguns ruídos, tudo funcionou. Verificou-se alternância política em vários municípios e a posterior transferência de poder correu sem sobressaltos. A abstenção registada deve-se em grande medida à incapacidade dos partidos de mobilizar os cidadãos ou de lhes oferecer políticas alternativas à altura dos desafios dos seus municípios ou do país.

Realmente quem parece estar em falta nesta democracia são os partidos que evitam cumprir as regras do jogo democrático, não assumem a sua responsabilidade pela qualidade da democracia, virados como estão para a manutenção ou conquista do poder, e mostram-se incapazes de apresentar propostas credíveis na actual conjuntura particularmente desafiante do país e do mundo. Neste 13 de Janeiro os olhos de todos devem estar voltados para a situação real existente nos partidos.

O MpD, o partido no governo, levou quase um mês e meio depois da derrota nas autárquicas para tomar uma posição quanto à orientação a seguir nos cerca de 14 meses que restam da legislatura. Da reunião da Direcção Nacional veio a mensagem de possíveis ajustes no partido e no governo, de se ter optado pela não mobilização dos militantes e simpatizantes no âmbito de uma convenção extraordinária, e de total apoio, por ovação e aclamação, da recandidatura do actual líder.

Parece pouco importante para o partido no seu todo discutir como desvanecer a imagem de derrotado antecipado que, entrementes, por inacção, tem deixado cimentar. Não parece querer compreender as razões por que é penalizado nas eleições com a economia a crescer à volta dos 5% do PIB e projecção de crescimento no mesmo nível para os próximos anos. Não quer se esforçar por saber porque, em certos casos algum segmento do eleitorado prefere candidatos provadamente incompetentes e ignora os resultados positivos da governação.

Quanto ao PAICV, o partido que saiu vencedor nas eleições autárquicas, a impressão é que tudo se acelerou. Em menos de um mês o líder auto excluiu-se de futuras candidaturas. Em seu lugar projecta-se para a pole position na corrida para presidente do partido um newcomer, lançado pela vitória nas eleições para a Câmara da Praia (CMP), cuja notoriedade veio anteriormente de disputas com a sua própria maioria na CMP e com os outros órgãos municipais e também do discurso marcadamente populista e anti-elitista. Pelas suas características, parece configurar uma tentativa de captura do partido por outsiders, a exemplo do que se passou noutras paragens.

Também numa veia populista já se procura desqualificar a democracia e a actual dinâmica económica com base em percepções captadas por sondagens, que evidenciam falta de confiança e vontade de emigrar, particularmente entre os jovens. Põe-se foco nas desigualdades quando a questão é como aumentar a produtividade e a competitividade da economia para produzir riqueza e depois poder distribuir. Não se dá a devida atenção à criação de uma ordem económica, que use de forma eficiente os recursos existentes, em particular, os do capital humano, obrigando os jovens a ir procurá-la na Europa e na América. Nem se tem a preocupação de apresentar propostas novas de políticas para enfrentar os desafios à governação do país de forma a não se correr o risco de chegar ao fim do mandato com a economia a crescer como das outras vezes: a 0,7% em 1990 e 0,9% em 2015.

É evidente que são os partidos a falhar no papel que deles se espera no sistema democrático ao se centrarem na conquista e manutenção do poder em detrimento do dever de servir a colectividade nacional no debate de ideias e na implementação de políticas com competência, seguindo o interesse geral. A descredibilização da democracia vem daí, assim como o novo ânimo de forças sempre presentes que procuram explorar todas as oportunidades para exprimir o seu ressentimento anti-democrático contra a liberdade e o Estado de direito democrático, que fez dos cabo-verdianos cidadãos livres e iguais.

Para ultrapassar a actual situação é fundamental exigir aos partidos políticos que cumpram as regras do jogo democrático e que valorizem os princípios e valores da democracia. Também é fundamental que saibam criar sinergias com a sociedade de forma a aumentar a participação política dos cidadãos e a sintonizarem-se com os reais problemas do país evitando assim que se transformem numa clique dependente das benesses do poder. A celebração anual do 13 de Janeiro é uma oportunidade perfeita para se renovar sobre todos os actores políticos a pressão pelo cumprimento dos ideais da Liberdade e da Democracia, que tão profundamente ressoaram no coração do povo nesse dia mágico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1207 de 15 de Janeiro de 2025.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Ano de 2025 vai exigir muita serenidade e responsabilidade

 O ano de 2024, que hora finda, mostrou-se rico em mudanças que poderão vir a revelar-se prenhes de consequências para os anos vindouros. Em particular, na economia e na geopolítica global, as alterações no quadro existente há várias décadas, caracterizado por uma ordem liberal nas relações comerciais e pela posição hegemónica dos Estados Unidos, vão continuar a aprofundar-se. A invasão da Ucrânia e o prolongamento do impasse na guerra tendem a incentivar outras tentativas de ganho territorial via agressão militar. As tensões comerciais entre a China e os EUA, no âmbito de uma competição estratégica, podem reconfigurar as cadeias de valor e de abastecimento, acelerando um processo de desglobalização.

Por outro lado, a opção verbalizada pelo próximo presidente dos EUA, Donald Trump, de prosseguir com políticas de protecionismo económico, via tarifas, de reformular a relação com os aliados sob ameaça de desengajamento e de não ser o “farol” do mundo na defesa dos direitos humanos e da democracia liberal, abre caminho para um mundo multipolar. A partir daí, ter-se-á de lidar com as dificuldades de conciliação de interesses entre os países emergentes como a Índia, o Brasil e a Rússia e os países mais desenvolvidos, além do enfraquecimento do multilateralismo no sistema económico global, com prejuízo directo para os países menos desenvolvidos, particularmente da África. Com as incertezas, às quais podem vir a juntar-se imprevistos vários, o ano de 2025 já se anuncia como um mar revolto que não vai tornar fácil atingir os objectivos preconizados pelos mais optimistas.

Em Cabo Verde, à semelhança do que aconteceu em várias outras democracias, houve eleições que, apesar de terem natureza autárquica, não deixaram de mostrar algum sentimento anti-incumbente. Em 2024, realizaram-se eleições em mais de 60 países e, na generalidade, os resultados não favoreceram quem governava. Uma outra tendência visível em vários casos foi a deriva iliberal, que sacrifica direitos fundamentais, e a deriva autocrática, que enfraquece as instituições, hostiliza a oposição e limita a possibilidade de alternativa política futura. Especialmente preocupante, em vários casos, foi o recurso a políticas identitárias e à mobilização de emoções com base no medo, no ressentimento e na xenofobia. A ascensão de forças políticas suportando-se no etnonacionalismo, na nostalgia da grandeza do passado e no combate às migrações revela o sucesso da política feita nessa base. Daí, igualmente, a tentação de imitação que se verifica não só nos partidos chamados de direita radical ou de extrema-direita como também noutros partidos ditos de esquerda, transvestidos de roupagem nacionalista e identitária.

O ambiente sócio-político nas democracias, marcado pela progressiva descredibilização das instituições, tem favorecido esse extremar de posições em todas as matérias, não deixando espaço para o diálogo, para o compromisso e mesmo para o exercício do bom senso na avaliação das situações. Em Cabo Verde, assistiu-se, em primeira mão, ao longo do ano de 2024, ao exacerbar da conflitualidade social com anúncios frequentes de greves em vários sectores, particularmente nos ligados ao Estado. Também foi notório o recrudescer da tensão política entre os órgãos de soberania, com os seus titulares a protagonizar, por acção ou omissão, os vários episódios, que acabaram por contribuir para uma acelerada perda de confiança nas instituições. Nem os órgãos do poder judicial ficaram incólumes neste processo, sendo às vezes alvos de ataques directos e outras vezes chamados pelos actores políticos a agir ou a se pronunciarem em situações que podiam configurar judicialização da política ou politização da justiça. Não estranha que a queda de confiança fosse tão pronunciada como se constatou nas sondagens da Afrosondagem.

Para a derrota do MpD nas eleições autárquicas, certamente que terá contribuído o ambiente de tensões sócio-políticas que atingiram o rubro nos meses que as antecederam. Essa derrota é também reveladora dos limites de uma acção governativa que faz da sua bandeira a construção do “maior Estado social de sempre”, quando o país não tem hoje os recursos para distribuir a todos, nem o nível de produtividade e de competitividade da economia que possa assegurar a sua sustentabilidade futura. É evidente que a insatisfação perante a realidade vivida não deixaria de se manifestar no primeiro pleito eleitoral a ser realizado, como veio a acontecer. Algum equívoco na leitura dos resultados poderá, entretanto, surgir se as eleições autárquicas forem tomadas como determinantes das eleições legislativas, em vez de servirem de matéria de reflexão sobre a democracia, sobre a qualidade das políticas governamentais e sua eficácia, e sobre a adequação e justeza das políticas municipais.

E o problema é precisamente esse e começa a desenhar-se. O governo, por omissão, falta de pronunciamento e ousadia, corre o risco de projectar uma imagem de derrotado por antecipação. O primeiro-ministro, na mensagem de Natal, prometeu o que configura ser “mais do mesmo” quando provavelmente não vai ser tomado como suficiente. Do lado do maior partido de oposição, poderá estar a manifestar-se a euforia que advém da possibilidade, se não certeza, da conquista do poder. Estando as eleições a uma distância de cerca de 14 meses, a questão que se coloca é o que, nesse intervalo, se vai assistir.

Irá prosseguir a perda de confiança nas instituições porque os actores políticos vão manter a mesma postura, agora exacerbada pela proximidade de uma eventual tomada de poder? Nas autarquias, com os seus órgãos renovados, a prioridade será a procura de soluções para os problemas do município e dos munícipes ou o foco vai ser colocado na instrumentalização do poder e dos recursos municipais para vencer as legislativas? Na administração pública a perspectiva de mudança na liderança do Estado não irá reduzir a eficácia do Estado, com mais conflitualidade laboral, movimentação do pessoal e menos produtividade? As comemorações dos 50 anos de independência, em 2025, vão servir para unir a nação na consciência de um destino comum enquanto comunidade de cidadãos livres e iguais, ou vão ser mais uma oportunidade, à semelhança do que aconteceu durante o ano de 2024, sob o patrocínio do presidente da república, para a exaltação de dirigentes partidários que submeteram os cabo-verdianos e o país a 15 anos de ditadura?

Parece que há consenso geral que a estabilidade política e governativa é um dos grandes activos de Cabo Verde. Um factor importante de estabilidade é o cumprimento efectivo dos mandatos. E um dos pressupostos para isso é não se viver em campanha eleitoral a todo o tempo: razão por que estão claramente definidos os períodos eleitorais. O governo deve ser o primeiro a respeitar isso e o mesmo se aplica à oposição e aos órgãos do poder político nas autarquias. Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de estar em permanente campanha eleitoral. Muito menos quando há a sensação de perda de confiança nas instituições democráticas e a percepção de que o país não está a responder às expectativas dos cidadãos.

O actual momento no mundo é particularmente complexo e complicado demais para o país se deixar distrair em lutas pelo poder fora do tempo eleitoral. Quando questões preocupantes e realidades novas deverão ser esperadas, é fundamental que haja condições para que sejam encaradas com serenidade e ousadia, beneficiando do contraditório num quadro plural. Para que o ano de 2025 traga esperança, há que exigir responsabilidade dos governantes e de todos os actores políticos para reforçar o espírito de solidariedade e de união, a fim de enfrentar os tempos incertos e, provavelmente, difíceis, que aí vêm. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1205 de 31 de Dezembro de 2024.