segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Com a ajuda externa a retrair-se, impõe-se uma nova atitude

 

Uma sondagem do jornal Financial Times publicada no início da semana revelou que 60% dos americanos concordaram com a medida de congelamento da ajuda internacional americana sob a direcção da USAID tomada por Donald Trump e implementada por Elon Musk. Só 12% dos sondados discordaram da ideia que montantes significativos dos fundos da ajuda são desperdiçados em corrupção e nos custos administrativos, em detrimento dos realmente necessitados. A constatação de que a maioria da população considera que a ajuda tem sido mal utilizada já serve de travão a eventuais acções do partido democrata em procurar contrariar o bloqueio da ajuda externa. E no mundo já se percebe que o impacto vai ser enorme, considerando que a contribuição americana de 40 bilhões de dólares anuais através da USAID corresponde a 40% da ajuda internacional.

De facto, é de esperar o efeito desastroso que a diminuição drástica dos fluxos da ajuda terá tanto directamente sobre muitos necessitados de alimento e medicamentos como indirectamente sobre as organizações de apoio que sem o suporte americano dificilmente vão poder prosseguir com a sua actividade humanitária. Uma outra consequência da medida é que poderá levar à imitação em outros países, designadamente na Europa, se os avanços da direita radical se traduzirem numa maioria que questiona a efectividade dos programas actuais de redução da pobreza, de ajuda humanitária e de apoio ao desenvolvimento e à luta contra as alterações climáticas. Sem doações substantivas dos dois maiores contribuidores, EUA e UE, muitos países e populações poderão ficar em situação difícil, particularmente em casos de catástrofes naturais, guerras e perseguições políticas, étnicas ou religiosas.

Não é fácil para qualquer país encontrar a fórmula certa para o crescimento económico e para o desenvolvimento. O baixo número de casos bem-sucedidos deveria ter servido de aviso. Aliás, a história da humanidade, que aponta para a revolução industrial, há trezentos atrás, como o momento quando se tornou possível o aumento da produtividade que levou ao crescimento e à criação sustentada de riqueza, deixa entender precisamente isso. Não obstante, insistiu-se na ideia que a ajuda externa podia substituir lideranças competentes, políticas próprias baseadas nas especificidades dos países e a vontade engajada das populações para se atingir o desenvolvimento. Sem desprimor pelos benefícios reais conseguidos com a generosidade internacional, permitiu-se que muito dos recursos disponibilizados tenham sido mal aproveitados, alimentando burocracias internacionais e nacionais e levando agora à percepção em várias franjas da população dos países doadores que afinal a ajuda não chega a quem mais precisa.

Para vários países em desenvolvimento a ajuda externa passou a representar algo similar ao chamado “resource curse”, ou maldição dos recursos, em que países com petróleo, diamante e outros minérios ricos são mal governados, têm instituições frágeis, apresentam grandes desigualdades sociais e não conseguem libertar-se da extrema pobreza. Segundo um paper do Banco Mundial “Aid and Resource Curse”, a ajuda externa também pode ser um factor para os governos não fazerem reformas, para serem despesistas, para optarem por projectos financiáveis e não pelos prioritários e para propiciarem rendas a clientelas políticas. Um outro efeito negativo referido no texto é o facto da administração dos projectos com os seus altos salários “subtrair” quadros qualificados ao Estado, enfraquecendo as instituições.

Quando o país em desenvolvimento se deixa apanhar por alguma forma do “aid curse”, é interessante notar como desenvolve narrativas, adopta atitudes e faz opções que racionalizam a sua permanência por largas décadas como recipiente da ajuda internacional. Alimenta, por exemplo, a narrativa que os recursos do país são objecto de cobiça dos estrangeiros e com isso justifica a desconfiança no investimento estrangeiro e no turismo. Nutre o ressentimento em direcção aos maiores doadores, ao mesmo tempo que incentiva uma cultura de vitimização histórica. Opta por políticas de distribuição de rendimento que não põem suficiente ênfase na necessidade de crescimento e criação de riqueza, mas privilegiam a formação de clientelas para a conquista e manutenção do poder.

O resultado é que não se consegue potenciar os fluxos de capital e os fluxos turísticos que teimam em chegar ao país, nem mobilizar a iniciativa, a criatividade e o espírito empresarial a quem se incutiu a ideia que há ganho em ser vítima e que a vantagem maior é ficar bem colocado na “cadeia alimentar” com o Estado no topo para ter acessos, favores e oportunidade de rendimento. Um outro resultado é que o país, apanhado num círculo vicioso, não consegue desenvolver uma ideia de desenvolvimento que podia contrapor às agendas das organizações de ajuda internacional, ficando sob uma espécie de tutela. Submetendo-se, o país aprofunda ainda mais a atitude do Estado rentista em que a política partidária deriva cada vez mais para soluções populistas que se alimentam do ressentimento social e incidem sobre a redistribuição de rendimentos, sem correspondência com a realidade presente e sem muita preocupação com o futuro.

Em Cabo Verde, nos últimos dias é interessante notar como os problemas do país são geralmente percebidos. A propósito do acordo de pesca com a União Europeia, a atenção geral fixou-se numa afirmação que Cabo Verde estaria a vender o atum por 13 escudos o quilo. É uma das tais afirmações que ressoam com narrativas bem estabelecidas segundo as quais o país é rico em peixe e, se não parece ser, é porque está sendo roubado. Devia ser evidente que Cabo Verde não vende peixe. Vende quem investe em navios e equipamentos e contrata pescadores para captura e depois leva o pescado ao mercado. No quadro do acordo com a UE cobra-se uma licença para explorar um recurso que na sua trajetória migratória passa pela sua zona económica exclusiva. Não há como confundir preço de venda de um produto pelo custo de uma licença de exploração de um recurso. Só se insiste nisso para reforçar a narrativa que alimenta fantasias e vitimiza a população, mas não leva a acção consequente.

De facto, se há um recurso como o peixe, porque não explorá-lo. Se se quer evitar que seja delapidado ilegalmente por outros, por que não fiscalizar a ZEE do país. Em quase cinquenta anos de independência, não se criou capacidade de captura industrial de peixe, nem se explorou acordos de pesca com países vizinhos: eles sim, são ricos em peixe. Também não se optou pela aposta numa guarda costeira para fiscalização das águas do país. Ou seja, não se agiu numa perspectiva de desenvolvimento do sector das pescas e a cooperação com vários países no sector ao longo de todos esses anos serviu outros propósitos que não os que deviam ser óbvios. Mesmo quando a UE facultou a possibilidade de exportação de peixe enlatado com isenção de tarifas, não foi compreendido que o país tinha um tempo para adquirir capacidade de captura para beneficiar das isenções. As derrogações à regra das normas de origem têm um prazo, findo o qual há consequências para as conserveiras, para os trabalhadores e para as exportações do país. Tudo parece não importar enquanto numa mistura de deleite e indignação se traz à colação a questão da extinção dos tubarões fundamentalmente para dar mais vitalidade à narrativa que o país tem recursos e estão a ser roubados.

Há, porém, que perceber que o mundo está a mudar e rapidamente. Os Estados Unidos congelaram a ajuda internacional e se não a retomarem, nem a UE poderá compensar o buraco. Se a tendência para a revisão da política de ajuda continuar, menos recursos serão disponibilizados para os países em desenvolvimento. Se os países que se deixaram imobilizar, apanhados pelo “aid curse”, não saírem do torpor, as consequências poderão ser terríveis. Em Cabo Verde, com o mundo a transformar-se radicalmente não se pode ficar por mais tempo a deixar-se embalar por narrativas fantasiosas que impedem o desenvolvimento, vitimizam as populações e desresponsabilizam as instituições. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1212 de 19 de Fevereiro de 2025.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Campanhas eleitorais prematuras tiram tranquilidade e foco ao país

 

O mundo inteiro continua a observar com um misto de fascínio e inquietação as primeiras semanas do governo Donald Trump. Chama a atenção a rapidez com que se move para desarticular estruturas como a USAID e para se intrometer em sectores-chave da administração federal com objectivos claros de forçar a saída de altos funcionários, de moldar o comportamento das instituições com prejuízo para o cumprimento da lei e de se posicionar para aceder a informações privilegiadas de privados, empresas e outras entidades. Fica evidente a dificuldade dos poderes legislativo e judicial em enfrentar o autêntico blitzkrieg que tem sido a acção do poder executivo de Trump e uma das razões para isso é que não funcionam à mesma velocidade.

Nas democracias liberal e constitucional o equilíbrio dos poderes é fundamental para a estabilidade do sistema político. Contudo, devido à sua própria natureza, não agem com a mesma rapidez. Do governo espera-se capacidade de reacção rápida perante novas situações e perante imprevistos e mesmo crises. O legislativo tem o seu tempo próprio na feitura das leis, recorrendo ao contraditório. Os tribunais então são ainda mais lentos em dirimir conflitos, a defender a legalidade e a proteger direitos. Se não houver um acordo de todos os actores políticos e da sociedade civil para salvaguardar a integridade do sistema, a diferença de velocidade dos poderes pode ser explorada para o desequilibrar numa deriva autoritária, como aparentemente está a acontecer nos Estados Unidos, mas que já se notava, por exemplo, na Hungria, na Turquia, na Tunísia e na Índia.

Por razões óbvias, o protagonista principal nesses processos é normalmente o poder executivo. Quando, porém, o sistema político prevê um presidente da república eleito directamente, mas sem poder executivo e função governamental, abre-se a possibilidade, de sérias consequências com impacto geral no sistema, na eventualidade de um desajuste pronunciado na velocidade de actuação do PR e do Governo. Em Portugal, com um presidente hiperactivo eleito nesse quadro até se assistiu recentemente à dissolução de uma maioria absoluta. Cabo Verde, num quadro constitucional similar, depara-se actualmente com uma intensa actuação interventiva do PR na área governativa, com consequências que claramente não são positivas para a estabilidade do sistema político, nem para o país no seu todo.

Só nos últimos dias pôde-se constatar vários momentos desses. Em visita às câmaras municipais, o PR aparece a pedir a reconfiguração da relação entre o Estado e os municípios no que respeita à transferência de poderes e recursos num momento em que a proposta de lei do novo estatuto dos municípios está para aprovação no parlamento. A sua interferência nas negociações entre sindicatos e o governo já atingiu tal magnitude que sindicalistas em declarações à imprensa referem-se ao PR como parceiro. Em matéria de revisão constitucional, que é de exclusiva competência dos deputados, permite-se fazer propostas e indicar datas e, ainda, agir como activista numa matéria que os apoiantes, por razões de lutas identitárias, querem manter fracturante. Coloca-se na primeira linha na denúncia pública da perseguição dos jornalistas no país simplesmente porque o Ministério Público, perante indícios de violação do segredo de justiça, abre instrução para averiguar factos puníveis e responsabilizar agentes.

Um dos problemas neste tipo de intervenção, que claramente extravasa as competências do PR enquanto árbitro e moderador do sistema político, é que o governo é fiscalizado e pode ser censurado e até derrubado no parlamento pela condução das suas políticas. E na Assembleia Nacional os deputados dos diferentes partidos exercem o contraditório e fiscalizam-se. O PR, pelo contrário, não responde a ninguém. Não há mecanismo constitucional para o censurar ou destituir e até pode ignorar a censura pública. Claro que todas essas as prerrogativas constituem uma responsabilidade grande e deviam ser um incentivo para um exercício de mandato em linha com a preocupação central do presidente da república de garantir o regular funcionamento das instituições.

Fazer o papel de activista, de facilitador de negociação sindical, de indignado a favor de posturas corporativas é que não é próprio. Nem tão-pouco pretender ser colegislador, ou apresentar-se como champion das câmaras municipais e permitir que partidos cortejam ou alinhem pelas suas posições políticas arriscando-se a ser visto no papel de oposição ao governo que a Constituição não lhe confere. Muito pouco razoável é insistir em ver como diminuído em legitimidade o exercício de cargos públicos com mandatos já caducados, mas que são essenciais para o equilíbrio do sistema e o funcionamento pleno do Estado de Direito democrático. Pior se isso for visto como uma espécie de pressão sobre quem cuida da legalidade, arbitra os conflitos e protege direitos. A verdade é que uma das razões pela qual não há abandono de lugar no exercício de cargos públicos é o reconhecimento que o tempo dos diferentes órgãos de soberania não é o mesmo e tudo deve-se fazer para garantir a continuidade do regular funcionamento do poder judicial.

Não deixa, porém, de causar estranheza o facto do protagonismo do PR estar aparentemente a marcar a agenda política, quando o normal devia ser o governo que, enquanto executivo, tem os recursos, a máquina administrativa e o mandato para fazer as coisas acontecerem. A postura omissa do governo e a clara falta de liderança nos dois meses após as autárquicas têm deixado um vazio que num ambiente de excessiva politização é naturalmente preenchido por vários actores entre os quais o PR. A remodelação ministerial tardia parece que visa só mais eficácia governativa e não mudanças na agenda e postura. A falta de uma visão energeticamente promovida pelo governo nesta nova fase pós-autárquica acaba por garantir que a corrida para as legislativas, e já agora para as presidenciais, se inicie prematuramente, tirando ao país a possibilidade de pensar aprofundadamente sobre os tempos conturbados que se está a viver no mundo.

No MpD, o cerrar de fileiras à volta do chefe, numa lógica defensiva, irá limitar o debate e prejudicar a sintonia com o tempo actual e os anseios da sociedade. Já no PAICV, a corrida à liderança mais parece configurar um processo de captura do partido no qual o ingresso de 3.000 novos militantes em condições pouco claras, segundo a comissão de fiscalização do partido, relembra manobras clássicas de assalto aos partidos. Acompanhado do discurso anti- elite que, como é a regra, vai procurar mobilizar todos os ressentimentos para conseguir resultados eleitorais, certamente que os seus efeitos negativos sobre o partido e o país serão sentidos. No rescaldo da crescente crispação, a ostensiva partidarização das comemorações dos 50 anos de independência também irá afectar o PAICV nesta nova fase, em que aparentemente prefere identificar-se com o legado da luta na Guiné e do governo dos primeiros quinze anos do que com os quinze anos do seu governo neste século, como se viu na discussão à volta da NATO. É mais provável que da conjugação da atitude dos dois partidos saia uma maior polarização política da sociedade.

Nos Estados Unidos, a rapidez com que o executivo marca a agenda, procura criar um Estado mais receptivo à visão e aos objectivos dos vencedores das eleições. Tem os seus riscos, mas não há dúvidas de quem tem responsabilidade em caso de fracasso. Em Cabo Verde, falhas na liderança do governo e omissões em momentos-chave deixam todos expostos a uma politização extrema em que ninguém se sente responsável pela perda de confiança nas instituições e quebra de esperança no futuro.

Pelo contrário, depois de se acusarem mutuamente pelos tais resultados, os partidos e outros actores políticos voltam ao mesmo comportamento que anteriormente os provocou. De alguma forma há quem acredita que no caos ou no mal-estar criado acabará por sair vencedor. A conquista do poder parece suplantar quaisquer outros objetivos. Se para isso é necessário recorrer à demagogia e ao populismo, com o seu lado de autoritarismo, de arbitrariedade e de negação de direitos, que assim seja. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1211 de 12 de Fevereiro de 2025.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Excessiva politização prejudica a democracia

 

Num mundo em rápida transformação sob o impulso das políticas de Donald Trump, aumento de tarifas alfandegárias, fricção nas relações com aliados e adversários, congelamento da ajuda externa, deportação forçada de migrantes e hostilidade a organizações multilaterais, não se vê em Cabo Verde muitos sinais que a classe política esteja a incomodar-se com o que está a passar.Tão preocupada em continuar na sua actuação diária a fazer o mais do mesmo, talvez considere que afinal se trata somente das duas primeiras semanas do novo governo americano e que as coisas dificilmente irão piorar ou desviar-se do expectável. A realidade prenhe de consequências que está a emergir não parece constituir suficiente alerta para provocar mudança de atitude que permitisse enfrentar os novos desafios e eventualmente beneficiar de oportunidades abertas.

A confirmar que se continua na mesma linha das velhas disputas fracturantes, nota-se que do ambiente mundial a configurar-se de forma diferente foi a questão da relação de Cabo Verde com a NATO é que atraiu mais atenção e causou mais polémica. E não por razões de disparidade de políticas dos sucessivos governos quanto à Aliança Atlântica. De facto, a NATO já foi autorizada a instalar bases temporárias no país para conduzir exercícios militares (operação Steadfast Jaguar 2006) e a cooperação na segurança marítima no Atlântico Médio tem vindo a aprofundar-se ano após ano em governos de cor política diferentes. A polémica tem mais uma base político-identitária que aproveita discussão de matérias como SOFA, NATO, Ucrânia e Israel para alardear posições antiamericanas e anti-imperialistas datadas dos tempos da Guerra Fria e, por essa via, uns, ditos patriotas, apontar o dedo a outros, supostos vendedores da terra.

É o atiçar da chama que se sabe que cria crispação, exacerba o discurso político e retira espaço para se fazer política com normalidade para enfrentar os problemas do país. O resultado é que se deixa instalar o que Samuel Huntington, na sua conhecida obra A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, chama de fenómeno de politização geral das forças sociais nos países subdesenvolvidos. Segundo o autor, “em tais sociedades, à política falta autonomia, complexidade, coerência e adaptabilidade”. Isso porque todas as forças sociais (corporações, sindicatos, universidades, igrejas, empresas, associações, ONGs) se engajam na política, e a tendência é para não ficarem claro os procedimentos a serem usados para resolver as disputas, para nomear para cargos e para definir políticas.

Em Cabo Verde, vêem-se sinais desse fenómeno notado por Huntington no que, em geral, as pessoas chamam de excessiva politização da sociedade. Tudo parece envolver política, as pessoas movem-se por conveniência, calam ou omitem-se para se protegerem e as causas sociais e laborais parecem sempre ter motivações políticas ou são acusadas de as ter. A relação entre verdade e mentira e entre factos e opiniões enfraquece num ambiente no qual cada um reclama ter a sua verdade e a sua opinião. O problema que vem logo a seguir é que, nesse relativismo próprio do mundo pós-verdade ampliado pelas redes sociais, o excessivo individualismo que é gerado acaba paradoxalmente por propiciar a tribalização da política e a emergência de líderes absolutos, rodeados de fiéis seguidores.

Uma das vítimas directas desse processo são os partidos políticos que perdem grande parte da sua vida interna, devido às exigências de subordinação ao chefe, e que, apanhados pelas suas próprias narrativas, diminuem a disponibilidade para ouvir os anseios da sociedade e aumentar a participação política dos cidadãos. Com tudo isso, fragiliza-se a democracia e incentivam-se tendências iliberais e anti-sistema. É só ver a facilidade com que se procura descredibilizar o sistema democrático perante insuficiências das democracias em resolver problemas de desigualdade social e de pobreza, ou então a enfrentar dificuldades de sobrecarga no sistema de saúde em parte devidas a mudanças epidemiológicas e demográficas. É o proverbial acto de querer deitar fora o bebé com a água do banho.

Não se vê é um igual esforço em forçar os partidos a cumprir com o seu papel de promover o pluralismo, a apresentar propostas de políticas credíveis e a ter candidatos a cargos públicos devidamente preparados. Muito menos se nota a pressão para os partidos defenderem a ordem constitucional, seguir os procedimentos democráticos e manter funcional os pesos e contrapesos do sistema político. A qualidade da democracia depende da qualidade da prestação dos seus actores e da vontade de todos os cidadãos em reger-se pelo princípio de respeito pela dignidade humana, pela honestidade e decência. Como disse Edmund Burke: “A única coisa necessária para o triunfo do mal é que os homens bons não façam nada”.

Sendo a democracia um sistema suportado no pluralismo e no exercício do contraditório no processo de tomada de decisões, espera-se iniciativa, criatividade e capacidade de adaptação dos actores políticos face a situações complexas e a imprevistos. Algo não vai bem quando, com o mundo em mudança rápida e muitas incertezas a ensombrar o futuro, o partido no governo (MpD) tarda em mostrar que tem uma perspectiva de como ultrapassar as dificuldades que se anunciam e que está preparado para as enfrentar. A urgência é maior se acabou de perder as eleições autárquicas e se as legislativas vão acontecer num futuro próximo. Infelizmente, é uma urgência que não demonstrou reconhecer com a aparente falta de acção, seja do partido que levou mais de um mês depois das eleições para se reunir numa direcção nacional, onde o líder foi reconfirmado por aclamação, seja do primeiro-ministro que tomou tempo quase igual para remodelar o governo.

Com isso o país perdeu tempo com o partido a seguir e a aclamar o chefe em vez de reflectir e renovar-se. Voltou a perder tempo com o governo a cumprir a sua agenda como se as eleições, revelando descontentamento da população com as políticas governativas, não tivessem acontecido. Deixou-se um vazio que poderá ser um incentivo para a oposição não se cuidar também de pensar os problemas actuais e futuros do país e apresentar políticas alternativas adequadas. Pode simplesmente cair na tentação de se limitar a arregimentar apoios políticos para a conquista do poder sem preocupação em saber o que vai fazer no dia seguinte. E o que o país menos precisa é de governantes a querer fazer gestão corrente de um modelo já esgotado, como reconhecido pelo próprio Banco Mundial, particularmente com as mudanças a acontecer na economia global.

Um mau sinal de que é a conquista de poder pelo poder que se pretende, é a proposta de substituir as eleições internas do PAICV por uma sondagem de opinião pública que seleccionaria um único candidato a presidente do partido e a primeiro-ministro. É geralmente reconhecido que primárias e eleição directa do presidente serviram em vários países para sufocar a vida democrática dos partidos e permitir a ascensão de populistas, demagogos e caciques. Os órgãos colegiais dos partidos deixaram de ser palco de grandes debates partidários e de servirem para a selecção dos melhores candidatos a deputados e a governantes. O uso de sondagens para a escolha de candidatos, em que o MpD foi pioneiro, não parece que melhorou a prestação nos cargos eleitos nem tão-pouco enriqueceu a vida interna dos partidos.

Infelizmente, as vias preferidas, tanto pelos partidos políticos como por certos titulares de órgãos de soberania na conquista e manutenção do poder, não têm contribuído para a diminuição da politização das forças sociais, referida por Huntington, que retira eficácia à política. Pelo contrário, a tentação é potenciá-las, mesmo com prejuízo para os envolvidos e aumentando a conflitualidade social. Neste momento de necessidade e de viragem no mundo, seria benvinda uma outra atitude que pusesse em primeiro lugar o bem-comum. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1210 de 5 de Fevereiro de 2025.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Ter claro a natureza e o papel das FA é fundamental para a estabilidade democrática

 

Os dados do estudo publicados pela Afrosondagem em Dezembro último apontavam as Forças Armadas como a instituição de maior confiança dos cabo-verdianos, apesar do nível ter baixado de 74%, em 2022, para 56%, em 2024, em linha com a queda geral de confiança nas instituições da república.  Entre as razões encontradas para o descrédito da população estão a excessiva polarização político-partidária e as tensões entre órgãos de soberania devidas a acções e omissões no exercício das suas competências.

As Forças Armadas (FA), talvez pela sua natureza apartidária, parecem estar menos sujeitas, mas não imunes a essa erosão de confiança. Evitar que fossem afectadas pelo ambiente político crispado existente, que tende a aprofundar-se no ciclo eleitoral já iniciado, devia ser a prioridade de todos. Infelizmente, não é o que se constata com a pretensão do presidente da república em incluir as Forças Armadas na agenda da chamada Semana da República entre 13 e 20 de Janeiro a qual, ano após ano, tem-se revelado como uma semana da discórdia. Uma semana reconhecidamente de desconforto institucional e de manifestações de divisões e mágoas antigas que vêm à superfície a reboque do esforço de exaltação de figuras que foram o rosto da ditadura durante quinze anos.

Realmente não se vê que propósito poderia servir a inclusão das Forças Armadas em celebrações que sempre se revelaram divisivas. Aliás, durante anos manteve-se sempre o 15 de Janeiro, Dia das Forças Armadas, fora das contendas da Semana da República. Recentemente, na lógica cada vez mais adoptada por certos actores políticos de reforçar ou reiterar atitudes com claros efeitos negativos no sistema político, percebe-se que a insistência em fazer diferente é para ter mais um momento de exaltação das figuras reconhecidamente partidárias que teriam formado o núcleo fundador das Forças Armadas.

O problema é como reconciliar a evocação dessas figuras com o que caracteriza as FA como forças armadas republicanas. De acordo com a Constituição de 1992, as FA estão ao serviço da nação, são rigorosamente apartidárias e mantêm estrita imparcialidade e neutralidade políticas. Quer dizer que não são instrumento de nenhum partido ou órgão de soberania, subordinam-se aos órgãos de soberania nos termos da Constituição e da lei e não podem aproveitar da sua função para qualquer intervenção política. E enquanto componente militar da defesa nacional cumprem os seus objectivos com respeito pela ordem constitucional e pelo Estado de Direito democrático. Não se vê como se pode compatibilizar esses princípios e valores das FA com um suposto passado em que teria existência antes da independência, seria o braço armado do partido único e teria intervenção repressiva do povo em defesa da ditadura do partido único.

Mas é o que o PR tentou fazer no seu discurso na cerimónia de condecoração das FA quando diz que as forças armadas devem ser republicanas como “têm sido até este momento, desde a independência”. Na prática, acaba por alimentar a confusão sobre a natureza das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e das FA. As FARP eram uma força supranacional com comando geral na Guiné e um ramo cabo-verdiano e estavam definidas no texto da proclamação da independência de Cabo Verde como “braço armado do PAIGC”. Na Constituição de 1980, artigo 18º nº 3, as FARP são definidas como uma instituição da Unidade dos povos da Guiné e de Cabo Verde. O dia comemorativo das FARP era, como é ainda na Guiné-Bissau, o de 16 de Novembro, dia da sua criação, em 1964, na sequência do congresso de Cassacá do PAIGC. A data só deixou de ser comemorado em Cabo Verde, em 1988, quando se adoptou o dia 15 de Janeiro (decreto nº5/ 88) para celebrar o juramento do “núcleo fundador”, em 1967, em Cuba.

Um outro elemento da confusão da natureza entre FARP e as FA é o de as ligar à putativa luta armada pela independência de Cabo Verde. Mas como diz Agnelo Dantas, um dos do grupo de Cuba treinado durante dois anos e meio para desembarque em Cabo Verde, “não tínhamos uma ideia real do que se passava em Cabo Verde de modo a podermos avaliar se as necessárias condições objectivas e subjectivas [para a luta] pudessem estar já criadas” (Jornal Voz di Povo, 16/1/88). No livro ”Biografia da Luta” da autoria de Rosário da Luz, Manecas Santos, também do grupo, fala do “reconhecimento da impossibilidade de desencadear uma luta armada no arquipélago com sucesso”, o que teria levado Amílcar Cabral a cancelar a aventura.

Só depois da morte do líder fundador do partido e na sequência do II congresso do PAIGC, realizado em 1973, e sem o seu contraditório, é que se iria criar uma Comissão Nacional de Cabo Verde (CNCV) para dinamizar a acção política nas ilhas. Ainda de acordo com Manecas Santos no referido livro, ele que era um dos combatentes mais proeminentes na estrutura militar do partido, não foi convidado para a integrar. A CNCV, segundo ele, foi estabelecida fundamentalmente para coordenar a distribuição do poder no futuro Estado de Cabo Verde. A questão que clama por uma resposta é por que insistir em ligar as forças armadas de uma democracia à uma jogada de poder que implicou a criação de um ramo do braço armado do PAIGC (FARP) no país depois da independência, tendo no topo comandantes criados por decreto-lei 8/75, 18/80 assinados pelos próprios.

O cientista político Samuel Huntington nos seus livros ”O Soldado e o Estado” e “Ordem Política em Sociedades em Mudança” chama a atenção para a problemática central das relações entre o poder civil e os militares na estabilidade das democracias. Dependendo do caminho seguido na institucionalização da democracia e em relação às forças armadas, não poucas vezes tendem a ficar resquícios de um papel político interventivo anterior que faz os militares resistirem ao completo regresso aos quartéis, ou os mantêm sensíveis a apelos para alguma interferência no processo político. Ultrapassar ideias pretorianas a favor de certos actores políticos ou de tutela sobre o regime democrático é fundamental para a estabilidade das democracias. Portugal levou seis anos (Revisão Constitucional de 1982) para se libertar do Conselho da Revolução enquanto órgão de soberania e de ter as forças armadas e não o Estado a garantir a independência nacional e o regular funcionamento das instituições (artigo 273º da CRP original). A Turquia só muito recentemente se viu livre da tutela dos militares. Vários países em África foram há poucos meses alvos de golpes militares e é facto notório que boa parte da instabilidade política na Guiné-Bissau vem da cultura de intervenção política das FARP, outrora braço armado do partido.

Em Cabo Verde, claramente que não devia servir a ninguém a evocação de tradições militares que não têm base na realidade vivida na Pátria cabo-verdiana ou de memórias de um papel institucional em directo conflito com o princípio de subordinação da organização militar ao poder civil constitucionalmente legitimado. Hoje não se tem a mesma situação de 1975 quando a designação do presidente da república como comandante supremo das FARP era a única referência às forças armadas na Lei de Organização Política do Estado (LOPE). Na Constituição de 92 são competentes em matéria de defesa nacional os vários órgãos de soberania, o Presidente da República, enquanto comandante supremo das FA e presidente do Conselho Superior da Defesa Nacional, a Assembleia Nacional, cabendo ao Governo a condução da política de defesa e a função de órgão superior da administração militar. Não há que criar equívocos a esse respeito.

Como diz o constitucionalista Vital Moreira “num Estado de direito constitucional não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República”. Assim evita-se em boa medida a perda de confiança nas instituições que todos parecem lamentar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1209 de 29 de Janeiro de 2025.