segunda-feira, 31 de março de 2025

Evitar a captura dos partidos pelos populistas

 

​O maior partido da oposição vai a eleições neste domingo, 30 de Março. Entre os candidatos ao cargo de presidente do PAICV estão dois autarcas, um empresário e um deputado. Considerando a proximidade das legislativas previstas para o primeiro ou segundo trimestre de 2026, a eleição directa do presidente irá determinar quem o partido vai apresentar como seu candidato a primeiro-ministro. Daí o caracter crítico do embate deste domingo tanto para o futuro do Paicv como para o do país.

A luta entre os concorrentes é desigual. Por um lado, porque dois deles recentemente saíram vencedores em eleições autárquicas, tendo um deles renovado o mandato no município da capital. Nota-se isso nas sondagens vindas a público e na capacidade de mobilização de activistas. Também é desigual porque enquanto os restantes três candidatos se posicionam, como seria de esperar em eleições intrapartidárias, o candidato que também é presidente da Câmara da Praia tem a postura e o discurso de quem funciona com outras regras. A forma como se move mobilizando alguns milhares de novos militantes mais parece um assalto para a captura do partido do que uma competição normal para ganhar a presidência.

Aliás, já no dia da vitória autárquica na Praia a 1 de Dezembro, a sua mensagem principal foi que iria assumir o partido e apresentar-se como candidato a primeiro-ministro nas eleições de 2026. O país, algo estupefacto, apercebeu-se logo disso, assim como o próprio partido e o seu presidente, que com os resultados inéditos das eleições supostamente deveria estar a gozar o seu momento de glória e eventualmente a projectar-se para o futuro. A desistência em se recandidatar já se pressentia nesse dia e veio a confirmar-se pouco depois. A vitória surpreendente na Praia tinha servido para lançar o partido para outros caminhos e para uma outra liderança.

A carreira aparentemente excêntrica de um político iniciada nas últimas autárquicas recebia um impulso que o catapultava para a esfera nacional quase que automaticamente. As candidaturas que vieram atrás dão a impressão de ser um esforço de uma parte do partido em conter o que parece inevitável. De facto, a caminhada para chegar ao que existe hoje começou cedo e a surpreender ao mexer, pública e ruidosamente, com o que seria normal e expectável. Para o seu protagonista importava construir uma imagem anti-elites, feroz contra a corrupção e não subordinada à liderança tradicional do partido.

Nesse sentido, serviu-lhe bem acusar de corrupção vereadores do seu partido, posicionar-se contra o cumprimento do acordo prévio da CMP com o Clube de Ténis da Praia e recusar-se a aceitar a mediação do partido no conflito com a maioria do PAICV na Câmara da Praia. Afirmava-se acima de todos os órgãos do município, forçando a interpretação da Lei para passar o orçamento da CM e nada lhe acontecia. Toda a tentativa de responsabilização política e de fiscalização das contas e do funcionamento do município que é expectável num Estado de Direito democrático foi construída como sendo perseguição e bloqueio.

À imagem de irreverência soube juntar a de vítima do Estado e do poder judicial quando, na realidade tinha, o poder e os recursos da CM para construir uma base própria de apoio junto da população que o permitia, ao mesmo tempo, autonomizar-se em relação ao seu próprio partido e pressioná-lo de fora. Com a aura de impunidade perante todas as acusações e com o apoio do Paicv assegurado sem dever nada à sua liderança foi às eleições e renovou o mandato. Como seria de esperar, a seguir devia vir o controlo do próprio partido para o qual a entrada de elementos da sua base de apoio como novos militantes iria contribuir. Aparentemente, é o que vai acontecer ao partido no próximo domingo.

Vêm-se tornando frequentes nas sociedades democráticas os casos em que partidos tradicionais são capturados por políticos que primam por projectar uma imagem de outsiders, anti-partido e anti-elites. A autenticidade da sua imagem como populistas confirma-se com a sua disponibilidade em violar as regras, em pôr em causa as instituições e a mostrarem-se irreverentes face a práticas e figuras de autoridade geralmente aceites. A impunidade de que vão beneficiando, de confronto em confronto, cimenta a aura de invencibilidade e até de predestinados ou messiânicos. O exemplo paradigmático dessa figura é Donald Trump que, como presidente dos Estados Unidos, está à frente do país mais poderoso do mundo, cujos efeitos transformadores, no mau sentido das suas políticas, já se fazem sentir em todo o mundo com consequências que vão arrastar-se provavelmente por muitos anos.

O populista aproveita-se de situações em que há alguma quebra de confiança nas instituições e uma diminuição de esperança no futuro para encontrar o seu “povo”. Prontamente oferece-se para o liderar na luta contras as “elites”, que supostamente monopolizam todos os recursos, são insensíveis às necessidades das pessoas e já não têm soluções para o país, e no processo, excita paixões, reforça frustrações e fomenta ressentimentos. O populista apresenta as suas próprias soluções que geralmente são simplistas e por isso constituem mais apelos a emoções do que respostas compreensivas a situações complexas. Trump chama-lhes common sense, mas na prática são políticas incoerentes que põem em causa a ordem política e socioeconómica sem resolver as questões de fundo e sem salvaguarde da liberdade, da dignidade e da autonomia das pessoas.

Em Cabo Verde ensaia-se criar um “povo” a partir da realidade da desigualdade social existente no país. Em vez de forçar os partidos a agir e a sociedade civil a exigir mais das reformas que devem ser feitas para que país tenha mais crescimento, mais emprego e mais oportunidade, há quem queira uma espécie de luta de classes entre uma suposta elite e os “excluídos” do sistema. Para os populistas tudo se resolveria tirando de uns para dar aos outros numa espécie de Robin dos Bosques. As armas preferidas nessa luta são o medo do futuro e o ressentimento em relação ao presente.

Como se pode imaginar, ir por esse caminho só levaria ao empobrecimento geral numa sociedade carente de ordem ao nível político-institucional e socio-económico. Uma especial responsabilidade deve ser assacada aos partidos que têm obrigação de oferecer políticas inovadoras e ousadas capazes de ir além do mais do mesmo e da gestão corrente. Partidos que mostrem vontade tanto na procura de eficiência como na prática de solidariedade e que ao construir resiliência para lidar com adversidades apostem no conhecimento e valorizem a iniciativa e a criatividade.

Evitar que na actual conjuntura partidos sejam objecto de captura por forças populistas não é tarefa fácil. A não renovação das lideranças, a falta de imaginação e a ambição desmedida têm minado os partidos impedindo-os de desempenhar o papel que lhes é reservado. Isso pode levar as pessoas a um estado de desesperança e a pensar que qualquer outra solução que não a convencional é boa. Restaurar a confiança nas instituições e o sentido de pertença apostando na solidariedade é fundamental para impedir que Cabo Verde enfrente os tempos incertos e potencialmente difíceis que vêm aí com partidos capturados por populistas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1217 de 26 de Março de 2025.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Populismo contra crescimento económico perpetua a pobreza

 

No dia a dia da política e já em preparação das eleições em 2026 nota-se cada vez mais no discurso partidário o uso de expressões como “levar a panela ao lume”, “diminuir nas taxas e aumentar na panela” e outras similares. Acontece nos confrontos no parlamento e noutras arenas entre o governo e a oposição, nas lutas para a liderança do Paicv com a tónica no anti-elitismo e certamente que vai ser o tema central das legislativas. É a tentação populista que, depois de simplificar a realidade económica e social do país, oferece como solução para a desigualdade social existente tirar de alguns, mais ricos, para oferecer aos muitos, mais pobres.

O problema com essa solução que parece evidente e justa é que se situa num quadro de soma zero em que se adiciona a uns o que se subtrai a outros. O foco assim não está, como alguém disse, em criar riqueza para que, aumentando a altura do tecto nos recursos do país, mais facilmente se elevar os que estão no piso mais baixo. A tendência, pelo contrário, é para não se concentrar no crescimento económico e na criação de empregos, mas sim na redistribuição, o que já se devia saber que não funciona. É um filme que o país já viu e já viveu noutros tempos. Como não tem recursos próprios e não cria riqueza suficiente para sobreviver tem que recorrer à ajuda externa. E da experiência conhecida, sobreviver à custa da generosidade internacional nunca realmente fez diminuir a desigualdade social e só levou à estagnação económica.

Só o facto de a fórmula populista estar a ganhar terreno no discurso político já se fazem sentir os seus efeitos perversos. Por um lado, disputam-se os dados do crescimento económico, sugerindo que poderá não estar a acontecer, e no processo não se inibe de pôr em causa as instituições que produzem e analisam os dados estatísticos do país. Contesta-se o modelo de crescimento não pela avaliação construtiva da sua eficácia e apresentando alternativas para designadamente melhorar a produtividade e a competitividade do país. Prefere-se ficar por suscitar reacções emocionais de quase paranóia, por exemplo, de que os recursos do país estão a ser desviados ou roubados por estrangeiros e que no acesso a oportunidades são privilegiados.

Por outro lado, ao pôr foco na redistribuição de rendimentos, sem ter presente os recursos existentes e a capacidade de produção de riqueza do país, numa pretensa luta para levar a panela ao lume, corre-se o risco de fomentar o ressentimento social e a inveja, diminuir a confiança interpessoal e desencadear uma corrida sem regras para chegar a recursos, os reais e os imaginários. Na prática, o que se consegue é a perda da paz social, menos disponibilidade para a cooperação cívica, profissional e política e, em sentido oposto do pretendido, o agravamento da desigualdade devido à diferente capacidade de reivindicação salarial, em particular, perante o Estado.

Curiosamente, neste particular, já há quem esteja a antecipar o impacto da suposta inflação, que virá do aumento dos salários dos professores e no futuro próximo do dos profissionais de saúde e talvez de outros funcionários do Estado, sobre a capacidade dos mais pobres em levar a panela ao lume. Não que realmente haja uma preocupação pelo bem-estar das pessoas e pelo rendimento que poderão ter e que não se quer ver diminuída pela inflação. O que se antecipa, na verdade, é mais uma causa para agitação política na luta pelo poder nas eleições próximas.

Como se assiste hoje na América, a inflação, que em 2024 foi uma das bandeiras populistas para votar Donald Trump, agora realmente disparou. Mas o seu governo não mostra nenhuma sensibilidade pelo aumento vertiginoso dos preços provocado em boa parte pela guerra comercial que por razões de afirmação do poder resolveu desencadear. Isso é típico dos populistas. Fazem das dificuldades económicas, muitas vezes de contornos complexos, causas para combate político apresentando soluções simplistas. Quando conseguem ganhar só lhes interessa é ampliar o poder mesmo à custa de tornar mais profundos os problemas que tinham encontrado e de que se serviram para mobilizar as pessoas para a vitória.

Ajudam os eleitores e a sociedade a cair no canto de sereia dos populistas os partidos políticos que, na prática, desistiram de procurar formas de promover um crescimento robusto, capaz de criar empregos, gerar prosperidade e fazê-la chegar a todos. Em vez disso, deixa-se a política degradar e não ser a via para se encontrar soluções e, em caso de falhanço, para produzir alternativas de políticas. O discurso político em vez de iluminar os problemas do país em toda a sua complexidade serve demasiadas vezes para uma espécie de infantilização da sociedade em que a correspondência com os factos deixa de existir, não há preocupação com a verdade e a realidade é substituída por narrativas que fundamentalmente apelam para as emoções e suscitam paixões.

Uma consequência de ser apanhado nesse torvelinho é a de se deixar de dar a importância devida aos resultados das políticas. Perante qualquer projecto parece importar mais o anúncio, a proclamação repetidas vezes do valor do financiamento, o espectáculo da primeira pedra e das inaugurações com os supostos beneficiados a servir de uma espécie de figurantes a repetir a sua gratidão pelo sonho realizado. Exclui-se geralmente na avaliação o impacto no rendimento actual e futuro das pessoas, na sua propensão para investir, alargar a produção e atingir mercados.

No outro dia, por exemplo, o primeiro-ministro esteve em S. Miguel e segundo o post do governo no Facebook reuniu-se “com agricultores para avaliar os impactos desta política de mobilização de água”. Ficou-se a saber que a rega gota-gota tem dado resultados concretos garantindo disponibilidade de água e que o governo comparticipa com 50% do custo dos materiais. Não se acrescentou mais informação de como a vida dos agricultores e as suas perspectivas de futuro melhoraram.

Várias vezes o mesmo acontece na entrega de meios, em anúncios de financiamentos e inaugurações de instalações. Fica-se com a impressão que falta realismo e pragmatismo no sentido que as políticas devem ser conduzidas de modo a impactar directamente as pessoas. Sem essa percepção não estranha que mais cedo ou mais tarde sejam atraídas pelo discurso fácil do populista que quer aumentar o número de vezes com que a panela vai ao lume.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1216 de 19 de Março de 2025.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Precisa-se hoje da ousadia da sociedade civil que ditou a Declaração Política de 14 de Março

 

​Trinta e cinco anos atrás o mundo estava a mudar rapidamente. A sensação de uma aceleração brusca na vida política tanto no interior dos Estados como nas relações inter-Estados ao nível global era similar ao que acontece hoje. A diferença é que nos primórdios da década de noventa as mudanças traziam esperança e uma perspectiva de prosperidade generalizada.

Agora o sentimento é de que se deve esperar tempos difíceis enquanto o mundo procura equilibrar-se num sistema de poder multipolar e as nações poderosas confrontam-se para assegurar zonas de influência, com prejuízo para a solidariedade internacional e para a dinâmica de crescimento mundial. 

Em Cabo Verde a pressão nos últimos anos da década de oitenta de um mundo em mudança, em que regimes totalitários e autoritários caiam em todos os continentes com destaque para a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989, levou à abertura política de 19 de Fevereiro de 1990. O gesto do regime era realmente uma tentativa de fuga em frente de um partido com quinze anos de poder ditatorial que queria adaptar-se aos novos tempos, mas conservando a sua hegemonia. Suportado por sondagens realizadas pouco antes, que lhe dava ampla aceitação popular, o seu plano estratégico só previa eleições pluripartidárias em 1995, criando, entretanto, no âmbito da abertura, a possibilidade de grupos de cidadãos concorrerem nas eleições em Dezembro de 1990. 

O surgimento menos de um mês depois da declaração política de 14 de Março a constituir um Movimento para a Democracia com reivindicações muito claras de mudança de regime e da instituição de uma democracia liberal alterou-lhe completamente os planos. Percebeu-se que afinal o regime de partido único não gozava de suporte alargado e que na sociedade havia uma vontade de liberdade e de autonomia para escolher governantes. O efeito da declaração do MpD não se limitou ao exterior do partido. Também provocou movimentos no seu interior, levando a novos desenvolvimentos que puseram em causa todo o plano inicial da abertura. 

Rapidamente o então presidente da república recuperou a iniciativa política e mostrou-se favorável à eleição do PR por sufrágio directo e universal e disponibilizou-se para deixar o cargo de secretário-geral do PAICV para ser candidato suprapartidário nas eleições presidenciais de 1990-91. Com o calendário previsto e as condições para as eleições completamente alterados, o PAICV teve que se ajustar rapidamente, procurando renovar a sua direcção e a sua imagem pública. Nas ruas e em todas as ilhas, porém, a movimentação popular engrossava e quase imediatamente encontrou o seu líder no conceituado jurista e figura pública Carlos Wahnon Veiga que se tinha colocado à frente do MpD como seu coordenador provisório. 

Com a declaração política de 14 de Março, a abertura política ganhou uma outra natureza e dinâmica e deixava de ser uma tentativa de fuga em frente para manter o PAICV no poder. Pela primeira vez a acção política no arquipélago passou a ser feita no sentido da promoção dos ideais de liberdade, pluralismo e justiça e com vista a uma cidadania plena e a uma prosperidade compartilhada e não com o objectivo de manter um único partido indefinidamente no poder. Diferentemente do que foi a actividade política em anos passados, a mobilização das populações desenrolou-se sem coacção ou intimidação das pessoas. 

Ciente do espaço de liberdade já conquistado pela rapidez dos acontecimentos nesse extraordinário ano de 1990, os cidadãos puderam reunir e manifestar e, à sua escolha, assistir aos eventos políticos promovidos por grupos políticos e proto-partidos emergentes. A independência ou soberania, que na sua essência significa tanto autodeterminação e autonomia em relação a governos estrangeiros como fundamentalmente a possibilidade de democraticamente os membros da comunidade política criarem as suas próprias leis e escolher os seus governantes, finalmente acontecia. Quando nas eleições de 13 de Janeiro mais de dois terços votaram, o sentido maioritário do voto não era o de simples preferência de um partido sobre outro numa nova legislatura, mas de rejeição profunda de um regime político ditatorial. 

O mandato recebido foi histórico no seu alcance e abrangência. Tratava-se primeiro de construir uma democracia liberal e constitucional e consolidar as suas instituições. Para isso caminhou-se seguramente para a adopção da Constituição de 1992 e a criação do poder local democrático, de forças armadas subordinadas ao poder democraticamente legitimado e de garantias para a existência de imprensa livre e de poder judicial independente. O outro mandato tinha a ver com a necessidade de ultrapassar a estagnação económica dos finais dos anos oitenta, à semelhança do que acontecia com outras economias estatizadas. Reformas profundas nos domínios da política monetária, financeira, fiscal deviam ser acompanhadas de liberalização da economia e de privatizações para se criar uma economia de mercado e aumentar o potencial de crescimento. 

Trinta e cinco anos depois de se ter iniciado a caminhada para a adopção dos princípios civilizacionais de respeito pela dignidade humana e se ter feito a aposta na modernidade com vista à construção de prosperidade na liberdade e na paz, sinais complicados sugerem alguma tendência para se reverter o processo. É verdade que tudo indica que o país não está a crescer suficientemente, que a produtividade é baixa e que não é suficientemente competitivo. Mas o mais preocupante é o que as sondagens indiciam da perda tendencial de confiança nas instituições, nos actores políticos e no futuro do país. Algo em que são os próprios os principais responsáveis na luta vã para tirar dividendos pela via de culpar os outros e de se entregarem a tacticismos infantis que segundo António Guerreiro do jornal Público faz “da vida política uma competição de recreio ou um cenário de desenho animado pueril e regressivo”. 

O que parece faltar é a ousadia para se interrogar sobre os constrangimentos que impedem que o país cresça mais, crie mais empregos e melhore os salários existentes. Diferentemente do que aconteceu há trinta e cinco anos, quando um regime monolítico abriu uma fresta e rapidamente da sociedade civil surgiu uma declaração política e pessoas dispostas a explorar as novas possibilidades, Cabo Verde parece um país de autocensurados. Já há muito que regularmente se trazia à baila a questão da autocensura na comunicação social. Recentemente no programa de Carlos Santos na RCV fez-se referência a economistas que se autocensuram e não aceitam comentar o estado da economia. É de se perguntar se é um caso isolado ou se abrange outras classes profissionais, o que seria um sinal do fraco retorno do enorme investimento feito ao longo dos anos no capital humano do país. 

Sem essa vitalidade crítica na sociedade civil e no interior dos partidos para visionar, questionar e para propor fica difícil o país encontrar um caminho para sair dos bloqueios actuais. Com o mundo a mudar rapidamente no sentido de maiores incertezas, a tentação geral, infelizmente, não tem sido o de procurar soluções criativas que promovam a cooperação e a confiança entre pessoas. Vai-se pela aposta no discurso anti-elites, alimenta-se o ressentimento e a inveja e apresenta-se, como solução para os problemas das pessoas, a redistribuição de rendimentos. Esquece-se que fórmulas similares já foram aplicadas em Cabo Verde nos primeiros anos de independência. Hostilidade a elites, apelos a luta de classes, e acusações de exploração só fizeram o país perder oportunidades e chegar a 1990 com uma economia estagnada e rendimento per capita de 817,4 dólares. 

A grande questão não é porque há pobreza no mundo, mas sim como se cria riqueza que pode tirar as populações da miséria e permitir-lhes uma vida livre e próspera com autonomia. Para isso é preciso ousar como se fez em 1990 em todos os cantos do país para que Cabo Verde fosse hoje um país da liberdade e da democracia.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1215 de 12 de Março de 2025.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Fazer a melhor escolha para a nova era que se avizinha

 

Há três anos atrás, a 24 de Fevereiro, a invasão da Ucrânia pela Rússia provocou sobressaltos em todo o mundo. Aparentemente estar-se-ia a voltar aos tempos de resolução violenta dos conflitos, do desrespeito pela integridade territorial dos Estados e de anexação de países inteiros para saciar apetites imperialistas. A resistência heróica do povo ucraniano que se seguiu à invasão trouxe alento que não seria assim.

O apoio militar imediato que a Ucrânia recebeu dos Estados Unidos e da Europa foi crucial para conter a incursão russa e para reforçar a importância de se garantir o respeito pela integridade dos Estados soberanos, independentemente da sua dimensão, localização ou peso económico. No mesmo sentido foi a posição tomada na Assembleia Geral das Nações Unidas, com 145 votos a favor num total de 190, de apoiar a Ucrânia e exigir a retirada das tropas russas. O sentimento geral era que, apesar dos sinais a apontarem para o aparecimento de um mundo multipolar, a ordem liberal construída depois da segunda guerra mundial manter-se-ia.

A realidade actual veio provar que isso não estava para acontecer. Se dúvida houvesse foi dissipada no encontro entre Trump e Zelensky na Casa Branca em que ao presidente da Ucrânia se quis impor um acordo de fim da guerra, sem a sua participação nas negociações e sem garantia de segurança. Ainda se lhe exigia que mostrasse gratidão disponibilizando recursos ricos do seu país a empresas americanas. Antes, uma resolução da Assembleia Geral da ONU de condenação da invasão russa tinha passado com o voto contra dos Estados Unidos e só com 93 dos votos a favor, num total de 174.

De facto, o tratamento indigno dado ao presidente Zelensky, incluindo o de lhe chamar ditador, e o voto dos EUA contra a condenação da agressão russa indiciam que os princípios e valores que nortearam o mundo nos últimos 80 anos deixaram de ser seguidos. Aparentemente já não se pode confiar que países grandes ou pequenos sejam igualmente merecedores de respeito, nem que, sem seu consentimento, tenham mudanças territoriais ou que os países possam livremente escolher os seus governantes e relacionar-se ou fazer comércio em igual termos que os outros. Se não houver qualquer inversão desse comportamento, provavelmente será o fim da uma era nas relações internacionais iniciada por Roosevelt e Churchill, em 1941-2, na Carta Atlântica e que abriu caminho para a criação da ONU e de outras organizações multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, a OMS e a Organização Mundial do Comércio.

Infelizmente não se vê muito espaço para optimismo nesse sentido. Há um mês atrás, a 4 de Fevereiro, o presidente Donald Trump emitiu uma ordem executiva decretando a retirada dos Estados Unidos de organizações como a UNESCO e a UNHRC. Também deu o prazo de 180 dias para a revisão da presença e financiamento do país em todas as organizações intergovernamentais internacionais. Certos observadores não excluem a possibilidade de saída do FMI e do Banco Mundial. Aliás, o Projecto 2025 associado à candidatura de Trump explicitamente reduz o FMI e o BM à condição de intermediários caros que interceptam o financiamento americano antes de chegar aos projectos no estrangeiro.

O esventramento da USAID nas últimas semanas é sinal claro que essas políticas de diminuição da sua participação na ajuda internacional e nas organizações multilaterais são para continuar. Problemático também é que é provável que essa atitude não fique só pela América e que seja imitada na Europa. No Reino Unido uma boa parte da ajuda externa vai ser reconduzida para a defesa nacional e tudo leva a crer que outros países europeus vão se sentir pressionados a fazer algo similar, considerando a necessidade de apoiar a Ucrânia e de responder à ameaça russa, particularmente quando não há garantia absoluta do apoio americano em caso de guerra.

O enfraquecimento do princípio da solidariedade mútua entre os aliados expresso no artigo 5º da NATO é mais um elemento que anuncia que se está no fim de uma era e no início de uma outra mais caótica, mais propensa a conflitos e fundamentalmente mais desigual na relação entre os Estados. No mundo multipolar que se desenha aparentemente dominado pelos Estados Unidos, pela China e pela Rússia já livre da guerra e das sanções internacionais por obra e graça de Trump, não vão faltar tensões complicadas. São esferas de influência a consolidar, podem ser novas potências nucleares a surgir para evitar o destino da Ucrânia e também novas cadeias de valor e de abastecimento a serem forjadas. Paralelamente a isto tudo há que lidar com as grandes manchas de pobreza e subdesenvolvimento que não deixaram de pressionar o resto do mundo, ora limitado na sua intervenção por deficiências das organizações multilaterais e ausência de uma solidariedade universal consolidada e focada nos mais carentes.

Há quem diga que a União Europeia mais o Reino Unido, se souberem ultrapassar as rivalidades no seu esforço para garantir a segurança do continente e o estatuto de superpotência económica, poderão fazer a diferença na nova era e manter a esperança que o mundo não é apenas para os mais fortes, os mais ricos e os mais sem escrúpulos. Não será uma tarefa fácil porque é perceptível que uma vaga iliberal, potencialmente maioritária, como já provou ser nos EUA e cresce a olhos vistos noutras democracias, poderá torpedear a UE ao aliciar alguns países a criar individualmente relações especiais com os centros multipolares. E para a ascensão dessa vaga maioritária mais migrações e mais pedidos de ajuda vindos do Sul serão um incentivo perfeito, criando um círculo vicioso que só pode contribuir para mais caos internacional.

Naturalmente que nessas circunstancias os países mais pequenos e mais expostos a choques externos sejam eles climáticos, económicos, sanitários ou resultantes de guerras são os mais afectados. Na lei da selva que tende a prevalecer e na nova era de relações “transaccionais” é cada vez mais forte a pressão para ceder a exigências dos mais fortes. Como a Ucrânia constatou, essa pressão não é acompanhada de qualquer acréscimo de confiança ou de garantia de segurança.

Mais uma razão para que ao nível de cada país haja um maior esforço de conhecimento da nova realidade internacional marcada por tensões entre as grandes potências e pela diminuição catastrófica da ajuda externa. Infelizmente, em vários casos, ao nível local, forças similares aos que alimentam o processo de desagregação da ordem liberal no mundo trabalham na perspectiva de lucrarem politicamente com o caos institucional, relacional e pessoal que é gerado sempre que não se consegue conciliar recursos, expectativas e a realidade do mundo envolvente.

Em Cabo Verde, também acontece e são nesses momentos pré-eleitorais e eleitorais que são mais perceptíveis assim como também as opções para as evitar. Nada está predestinado. Na encruzilhada perigosa em que o mundo se encontra neste momento é fundamental um olhar especialmente atento para todos os lados para se fazer a melhor escolha. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1214 de 5 de Março de 2025.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Não há ganhadores na corrida ao fundo do poço

 Não tem diminuído a tentação dos actores políticos em se engajarem numa competição predatória entre si a qual pode ser retratada como uma “corrida ao fundo do poço” da confiança nas instituições. Pelo contrário, prossegue-se na corrida apesar dos seus óbvios efeitos erosivos e ignorando os seus próprios apelos para uma maior contenção. Na fúria da corrida, nem se presta atenção ao que se passa no resto do mundo onde já são vários os exemplos de reacção de maiorias eleitorais à procura de soluções autocráticas para inflectir atitudes e políticas em sectores sensíveis. Muito menos se nota que algumas vezes não se trata de simples correcções, mas sim de autênticos terramotos, como se tem assistido nos Estados Unidos da América.

Indiferente a isso, em Cabo Verde continua-se na política a correr para o fundo do poço acreditando uns e outros que poderão beneficiar da intranquilidade social ou do descrédito das instituições em detrimento dos outros. Recentemente apanhado nesse jogo foi o presidente da república, de acordo com seu post de sábado na sua página pessoal no Facebook. No seu texto refere-se a activistas que usam algumas das suas intervenções para o pôr “a apoiar este ou aquele candidato a Presidente do PAICV ou para, indecentemente, atacar-me”. Também reitera que não tem qualquer actividade partidária e que não faz sentido “colar-me a este ou aquele candidato como pretexto para soezes ataques à minha pessoa”.

O facto de nunca antes terem sido dirigidas a um PR acusações de tal gravidade ao ponto de ele se sentir obrigado a vir publicamente negar intromissão na escolha do candidato a presidente de um partido político denota o quanto mudou na percepção das pessoas a relação entre os órgãos de soberana, o papel de cada um dos órgãos no sistema político e as suas interacções com o sistema de partidos. Originariamente, no sistema constitucional cabo-verdiano, o presidente da república não sendo, segundo os constitucionalistas, co-governante a par do Governo, nem co-legislador a par da Assembleia Nacional, fica numa posição privilegiada para exercer o poder moderador e a função de garante do regular funcionamento das instituições. Também ao não fazer parte do executivo, nem ser chefe da oposição, e muito menos expressão de interesses partidários, sindicais ou de classe, e ainda de não responder perante ninguém, isso concede-lhe uma autoridade e uma representatividade impar que o põe acima de todas as suspeitas de interferências partidárias.

Acusações como as que o PR referiu no seu texto no Facebook nunca deveriam ter sido formuladas. Não aconteceu antes nos trinta anos de democracia. Daí que a questão que se coloca é saber que alterações houve no relacionalmente e no funcionamento do sistema de governo que as poderão ter propiciado.

Em Portugal, com um sistema constitucional bastante próximo do de Cabo Verde, a aproximação das eleições presidenciais tem desencadeado o debate sobre o papel do presidente da república no sistema político. O debate encontra a sua razão de ser no especial desafio que tem sido o exercício do cargo pelo actual presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Na percepção de muitos, o seu estilo distingue-se do dos anteriores presidentes e nem sempre pela positiva. Para o constitucionalista Vital Moreira o seu desempenho “arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial”.

Na perspectiva deste constitucionalista, o presidente entre outras coisas deve exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial; nunca esquecer que não lhe compete a função de governar e não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição; não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência e defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial. No mesmo sentido vai o ex-presidente da Assembleia da República, Santos Silva, que num artigo no jornal Expresso sobre a função presidencial aconselha que o Presidente não tem de se substituir à oposição, nem avaliá-la, nem intrometer-se nos debates parlamentares, nem interferir directa ou indirectamente na vida dos partidos, nem funcionar como comentador omnipresente dos actos dos outros.

Curiosamente o estilo no exercício do mandato que em maior ou menor grau os dois últimos presidentes de Cabo Verde resolveram adoptar aproxima-se do seguido pelo presidente português. Sendo, porém, os governos em Cabo Verde de maioria absoluta, são maiores as probabilidades de gerar tensões entre os órgãos de soberania. Essas tensões acabam fundamentalmente por depender da disponibilidade ou não do primeiro-ministro em aceitar interferências na esfera da governação do país. De qualquer forma, a possibilidade de abuso de poder surge sempre que os outros órgãos de soberania não assumem na plenitude as suas competências.

Abre-se também a porta para interferências complicadas quando, como aconteceu nas cerimónias de cumprimentos de Ano Novo, se ouve representantes do poder judicial a pedir ao PR para exercer a sua influência nos partidos sobre propostas de lei em debate no parlamento. Ou então, quando são recebidos em audiência sindicatos em processo negocial com o governo e há petições para influenciar as negociações ou mesmo para vetar diplomas legislativos. O risco é maior quando o PR se torna activista de causas e abre debates sobre políticas públicas para os quais não tem meios para implementar e mobiliza forças que depois confrontam quem governa. Com todas essas oportunidades de intervenção, fica difícil o exercício do poder moderador, por definição um poder neutro, que segundo Vital Moreira deve estar acima da dialéctica Governo-Oposição.

Uma das consequências de não ser percebido como neutro é tornar-se alvo de ataques pessoais e de acusações de interferência não só em questões da esfera governativa como também partidárias. É o que, segundo o post do PR no Facebook, está a acontecer actualmente por causa das eleições internas para presidente do PAICV. Ninguém precisa de mais uma acha na fogueira daqueles que aproveitando das falhas ou insuficiências na actuação da presidência da república, no governo, no parlamento e na justiça procuram descredibilizar as instituições democráticas. Há uma responsabilidade a assumir por todos os titulares de cargos públicos para que isso não aconteça. Não se deve cair na ilusão de que haverá um ganhador na “corrida ao fundo do poço”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1213 de 26 de Fevereiro de 2025.