segunda-feira, 26 de maio de 2025

Aviso: Populismo pode levar à tirania

 

As eleições em três países europeus no último fim-de-semana, 18 de Maio, vieram confirmar a caminhada ascendente da extrema- direita na Europa. Em Portugal, os avanços são evidentes com o partido Chega a posicionar-se para o segundo lugar no espectro político partidário e a demonstrar-se atractivo para antigos eleitores de partidos de esquerda, incluindo o partido socialista. Na Polónia e na Roménia são tão evidentes os ganhos conseguidos que é uma questão de tempo para os candidatos da extrema-direita obterem uma vitória nas disputas presidenciais. Vê-se o mesmo padrão em várias outras democracias que também enfrentam crises sociopolíticas de representação exacerbadas pela polarização da sociedade, o enfraquecimento dos partidos do centro político, as políticas identitárias e os problemas de imigração.

Nota-se que cada vez mais os votos dos eleitores parecem dirigir-se para forças políticas extremas, abandonando a preferência de classe ou ideológica de há muito estabelecida. Aparentemente, o fenómeno explica-se pela forma como o medo, o ressentimento e a incerteza em relação ao futuro tendem a prevalecer sobre o que seriam escolhas racionais ou expectáveis das pessoas com base no interesse sócio-económico, na aproximação política e no sentido de pertença a comunidades específicas. Quando é assim, há rompimento com os partidos tradicionais do centro, seja da esquerda, ou seja da direita.

O ganho maior com a convergência dos votos tem ido para a direita radical ou para a extrema-direita dando fôlego a forças políticas pré-existentes, ou promovendo novos partidos. No caso americano, trata-se de um partido tradicional, capturado por um candidato, e depois presidente, e devidamente saneado das suas elites partidárias anteriores, que se torna no grande atractor desse sentimento de desesperança, de ressentimento e até de exigência de compensação por males reais ou imaginados e mesmo vingança. Os primeiros cem dias do governo de Donald Trump têm demonstrado até que ponto se pode ir quando essas forças chegam ao poder.

Cabo Verde não está imune a essas dinâmicas que afectam outras democracias. Aqui também manifestam-se sinais de crise das democracias designadamente no fosso que parece existir entre as expectativas das pessoas e as condições reais de realização das suas aspirações ou o ritmo em que as oportunidades são criadas. Também são sinais a percepção de maior desigualdade social e o que aparentemente mostra ser a incapacidade da classe política, em particular dos partidos do arco de poder em apresentar projectos alternativos de políticas que podiam abrir um futuro mais promissor. Face a isso, seria só uma questão de tempo para, a exemplo do que vem passando em outras democracias, o descontentamento de vários sectores do eleitorado ser mobilizado por forças populistas.

A situação política especial em que o município da Praia se encontrou depois das eleições de 2020 criou o cenário ideal para isso. A instabilidade logo no início do mandato devido à disputa entre o presidente da câmara e os vereadores do seu partido destruiu a maioria na câmara municipal que o PAICV tinha ganho nas eleições. O funcionamento dos órgãos municipais passou a fazer-se a partir daí fora da normalidade legal e institucional já estabelecida por trinta anos do municipalismo democrático. Com um discurso de dupla vitimização por parte do governo e das “elites”, incluindo sectores do PAICV, o presidente da Câmara Municipal justificava a sua actuação no município.

A partir daí era possível cavar uma trajectória própria com distanciamento em relação ao partido e uma aura de impunidade em relação ao Estado. Com o poder e os recursos do município haveria uma base através da qual os entretanto identificados como “excluídos do sistema” podiam dar uma resposta assertiva às elites e à classe política. O motor do populismo era assim posto a funcionar. Diferentemente do que se passou em outras paragens, acontecia nas margens e com a cobertura de um partido que se identifica com a esquerda.

Vieram as eleições autárquicas de 2024 e a grande vitória já foi do presidente da câmara municipal e não do partido como na eleição anterior. Abriu-se a porta para a captura do partido e o reconhecimento do facto levou ao ainda líder a escusar um novo mandato. Mas como já aconteceu com outros partidos que se viram na mesma situação, as reacções não tardaram e vieram na forma de três candidaturas. Por experiência, porém, sabe-se que dificilmente se consegue impedir o processo.

De facto, com exemplos dos populistas a explorar a seu favor a condição de vítima das elites, dificilmente essas tentativas de dirigentes do partido terão sucesso. Particularmente quando não são tomadas posições políticas e se fica por questões que podem ser apresentadas como sendo de natureza procedimental e como tal “de secretaria”. É o caso das quotas que levou à interrupção do processo eleitoral e que para a candidatura visada serviu como mais uma demonstração da sua condição de vítima das elites.

A experiência recente das democracias com o populismo de direita ou de esquerda demonstra que não é fácil conter o seu ímpeto. Ao se apresentarem como campeões dos “excluídos do sistema”, por um lado, tendem a canalizar todo o descontentamento com o regime vigente político e a produzir uma mensagem política que se revela transversal atingindo vários segmentos da população. Partes significativas do eleitorado de partidos tradicionais tidos como fixos podem surpreender com a transferência de votos para os populistas, a exemplo do que se passou em Portugal.

Por outro lado, com a extrema polarização procuram criar uma realidade alternativa em que factos e dados institucionais são tidos como a verdade das elites e por isso efectivamente bloqueados ou descartados. Sem uma base comum de discussão, não fica espaço para o diálogo, para a política e para compromissos em relação ao futuro. A esfera pública reduz-se na cacofonia que é criada com a apresentação de soluções simples para situações complexas e na impossibilidade de as provar como viáveis ou inatingíveis por falta de debate. 

Os vários casos de conquista do poder e das rédeas de governação por populistas demonstram a incompetência e muitas vezes o efeito destrutivo da acção governativa. Preocupante é que mesmo nesses casos de demonstrada incapacidade não é evidente que haja grande erosão da sua base de apoio. Razão mais do que suficiente para se evitar que forças populistas se tornem dominantes na sociedade. Para isso é fundamental insistir no cumprimento das normas e procedimentos democráticos, assegurar que as competências dos vários órgãos são exercidas e que os checks and balance do sistema funcionam de forma a manter a confiança nas instituições e garantir o espírito de solidariedade na comunidade.

Atacando o sistema democrático, alimentando o cinismo em relação a tudo, esvaziando a esperança no futuro, cria-se espaço para tirania futura. E para os que já se esqueceram o que significa tirania, os tiranos na actualidade relembram o que milénios atrás Platão escreveu no seu livro “A República”: “o tirano não tolera os críticos, nem sequer aqueles, precisamente, que o ajudaram a subir para o carro do Estado e que, entretanto, se mostraram os seus mais fiéis validos. A uns e outros ele elimina sucessivamente, sobretudo aqueles que o ajudaram a elevá-lo àquela posição e que têm poder para falar livremente, diante dele e uns com os outros, até que, por fim, não sobram a seu lado senão os medíocres, os ineptos e os aduladores”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1225 de 21 de Maio de 2025.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Ninguém ganha com a transmissão directa das sessões do parlamento

 

Na semana passada a Rádio Pública comunicou à Assembleia Nacional que não continuaria a “transmitir as sessões parlamentares nos moldes habituais”. Aparentemente em unanimidade os deputados condenaram a decisão e houve quem questionasse se a RCV estaria a incumprir com as suas obrigações na prestação do serviço público. A direcção da RCV justificou a sua decisão com a necessidade de maior eficácia na cobertura e de optimização da utilização dos tempos da rádio no quadro de uma programação mais diversificada.

Os argumentos avançados posteriormente em vários canais ressuscitaram as questões de sempre quanto à censura e à independência editorial dos serviços públicos de comunicação social, não obstante dias antes os Repórteres sem Fronteiras terem em mais um relatório apontado a autocensura dos jornalistas como o maior problema dos médias em Cabo Verde. Esse facto devia ser um convite para se encarar o assunto numa outra perspectiva que provavelmente iria demonstrar que com o fim das transmissões dos trabalhos parlamentares há mais ganhos do que perdas para o parlamento, para os deputados, para a rádio, para o público e para a democracia.

O costume da rádio transmitir sessões de trabalho vem dos tempos da Assembleia Nacional Popular que, como uma instituição de um regime de partido único, era uma assembleia monopartidária. Fazia naturalmente parte do sistema de propaganda do próprio regime e em geral não permitia intermediação jornalística na radiofusão dos trabalhos dos deputados. Com o advento da democracia, o costume manteve-se, mas agora num ambiente pluripartidário marcado pelo exercício do contraditório e naturalmente pelo surgimento do discurso político crispado entre as partes.

Daí foi um passo para, perante qualquer tentativa da rádio de alterar o formato da transmissão dos trabalhos, se ouvir reclamações de censura ou de tratamento privilegiado. Esse impedimento manteve-se mesmo quando se tornou evidente que a excessiva exposição do parlamento com a radiofusão de todos os seus trabalhos não era benéfica para a imagem do parlamento, para a produtividade dos trabalhos parlamentares e para a própria democracia ainda nos seus primórdios e com uma cultura institucional incipiente.

Na generalidade das democracias representativas, o parlamento nos seus primeiros passos procurou rodear-se de um certo recato para que a função de representação fosse exercida efectivamente e não se reduzisse ao papel de transmissor de recados ou de porta voz de interesses particulares. Afinal, há proibição do mandato imperativo. Só há relativamente pouco tempo que os parlamentos se abriram para transmissões directas, mas através de canais próprios da rádio e da televisão e recentemente pela via do streaming.

É verdade que as sessões dos parlamentos democráticos são públicas e como tal têm que ser acessíveis para quem as queiram seguir ou procure ter o registo dos trabalhos nos diferentes formatos. Para garantir isso no parlamento cabo-verdiano, há vários anos que se vem investindo em canais audiovisuais próprios. Actualmente também pode-se seguir os trabalhos parlamentares via internet e redes sociais. Consequentemente, há muito que deixou de fazer sentido monopolizar a rádio pública durante horas a fio a transmitir as sessões em nome da publicidade dos trabalhos parlamentares. Nem é eficaz, considerando que em democracia é difícil manter audiências cativas porque os ouvintes têm escolha de rádios e de conteúdos.

A insistência em continuar as transmissões teve e vai continuar a ter consequências ao nível da percepção pública do parlamento, da forma como os deputados e os grupos parlamentares vão desempenhar o seu papel como legisladores e fiscalizadores do governo e da produtividade e eficácia que se pode esperar dos trabalhos parlamentares. Em relação à imagem da instituição é visível a degradação aos olhos do público, em parte por conta da tendência geral das democracias em avaliar negativamente o parlamento, mas numa parte significativa devido à crispação política que a transmissão em directo na rádio enfatiza e personaliza. Numa espécie de feedback positivo a reacção do publico a seguir em directo os trabalhos acaba por exacerbar os ânimos e a afectar negativamente a produtividade dos mesmos, tanto em matéria de tempo consumido, como do nível do discurso político e da possibilidade de se chegar a compromissos na efectivação do interesse geral.

Um outro efeito da excessiva exposição dos deputados via rádio é a opção por uma postura mais performativa e individual que, com prejuízo para os trabalhos, acaba por afectar a coesão, a estratégia e a capacidade negocial do grupo parlamentar no diálogo com os adversários políticos. Ao longo do tempo tende a multiplicar-se o número de deputados a intervir sem uma preocupação de grupo, mas com o objectivo de atingir o eleitorado do seu círculo eleitoral como se as eleições fossem uninominais e não por listas plurinominais propostas pelos partidos. Daí a insistência em assoberbar o parlamento e em confrontar adversários e o governo com questões próprias das câmaras municipais.

Só que isso prejudica a democracia. Ao pôr em causa princípios como lealdade institucional que, no caso, tem na sua base o respeito pelas competências dos órgãos eleitos e a autonomia do poder local, pode-se estar a dar espaço e legitimidade para o surgimento de contrapoderes em vez de se ter um sistema político equilibrado com os seus checks and balances. Há que conter a tentação de usar tácticas políticas, a lembrar passados revolucionários, de criação de poderes paralelos para esvaziar os legítimos, diminuir a transparência no exercício no poder e retirar a possibilidade de diálogo que leva à paz social. Candidatos ao papel de contrapoder, posicionando-se acima do sistema democrático, parece que não faltam.

O imbróglio com a RCV suscita uma outra questão que tem a ver com o posicionamento hegemónico da rádio pública no espaço mediático do país. Aliás, é devido a essa posição que é atacada por uns e outros e que vê uma sua decisão unanimemente contestada pelos deputados. Mas é uma situação anómala que, se até agora não foi alterada, não parece que vá acontecer num futuro próximo, independentemente de que partido governa. Por essa razão, uma especial responsabilidade devia recair sobre a direcção da rádio e os jornalistas no sentido de com isenção assegurar a expressão e o confronto das ideias das diversas correntes de opinião.

Podia-se já com a nova cobertura do parlamento investir numa equipa jornalística conhecedora dos procedimentos, da história e das matérias em discussão para fazer a intermediação certa com o público e elevar a outro nível a informação sobre os trabalhos no plenário da Assembleia Nacional No outro pomo de discórdia pública, que é o comentário na rádio e na televisão, devia-se investir na contratação de comentadores capazes de exprimir opiniões diversas que garantissem o pluralismo de ideias e evitasse a nota monocórdia em questões importantes que várias vezes tende a prevalecer. Há um problema com os recursos, mas sabe-se que são sempre escassos e por isso deve-se estabelecer prioridades. Para órgãos que tem obrigação de mostrar pluralismo interno, o investimento em assegurar isso a todo o momento devia ser prioritário.

Da minicrise que resultou da decisão em alterar a cobertura do parlamento pela rádio pública pode ter surgido a oportunidade de, por um lado, levar a Assembleia Nacional a evoluir da condição de um “parlamento de plenário” para um parlamento onde o grosso do trabalho é feito nas comissões especializadas, como acontece em todos os parlamentos maduros. Para a RTC pode ser o momento para alocar recursos de forma a cumprir com a sua missão constitucionalmente estabelecida de contribuir para o dialogo plural, informativo e esclarecedor com foco no interesse público. Se assim for o país saíra a ganhar desta disputa.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1224 de 14 de Maio de 2025.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Libertar-se da autocensura

 

Pelo 3 de Maio, Dia da Liberdade de Imprensa, a ONG Repórteres Sem Fronteiras publica o ranking dos países com base na avaliação das condições para o exercício livre dos órgãos de comunicação social e da actividade jornalística. Cabo Verde ficou na posição 30 do ranking, uma melhoria de 11 lugares em relação ao ano anterior. Visto pelos indicadores, percebe-se que o que negativamente pesa mais é a dependência económica. Destaca-se o facto de 70% dos jornalistas estarem nos órgãos públicos que sobrevivem à custa de subsídios do Estado, usufruindo de melhores salários e estabilidade, e o facto de os média privados enfrentarem um crescimento limitado por um mercado publicitário restrito.

Quanto aos outros indicadores, em particular o do quadro jurídico para o exercício das funções e o da segurança para os jornalistas, constatam-se melhorias significativas. O que parece que não muda após sucessivos relatórios dos RSF é a questão da autocensura que, segundo o documento, “tornou-se um hábito no país”. Como explicação atribui-se Cabo Verde uma “cultura de sigilo” e acusa-se o Estado de “restringir o acesso a informações de interesse público”. Para a compreensão do fenómeno da autocensura talvez seja importante notar que não se limita aos jornalistas.

É mais amplo como recentemente se constatou num programa radiofónico da RCV em que se procurou justificar a dificuldade em conseguir comentário económico com a autocensura dos economistas. Provavelmente existirá em vários outros sectores indicando não tanto uma cultura de sigilo, mas uma atitude de conformismo com narrativas bem enraizadas e de crença em verdades convenientes. Para isso contribuíra certamente o excessivo peso dos órgãos públicos de comunicação social e a fragilidade dos média privados. Com o pluralismo na esfera pública limitado por essas distorções, dificilmente se consegue desenvolver o pensamento crítico, a coragem para apresentar ideias novas e a ousadia de ser diferente.

Não era para ser assim. A Constituição obriga a que haja um serviço público da rádio e da televisão, mas estipula que o Estado deve garantir a isenção dos órgãos e que deve ser assegurado a expressão e o confronto de ideias das diferentes correntes de opinião. Ou seja, que é fundamental existir pluralidade interna nesses órgãos e que para isso há que garantir a liberdade dos jornalistas perante o poder político e o económico. Mesmo a nomeação e a demissão dos directores de Informação e de Programação devem ser precedidas de parecer favorável da autoridade reguladora (ARC) eleita por dois terços dos deputados da Nação.

A persistência da autocensura num tal quadro deriva provavelmente dos problemas de origem dos órgãos públicos de radiodifusão e da cultura institucional subsequente. No processo de independência foram eliminadas as rádios privadas e de seguida transformadas em órgãos de propaganda política. Ao longo dos primeiros quinzes anos tudo se fez para, nas palavras de um alto dirigente, não se ter “especialistas de informação” (jornalistas), mas sim “militantes que coordenam o trabalho de levar a cada cidadão o conhecimento” do progresso do país.

Com o advento da democracia, não se mudou realmente para uma cultura de isenção e de dar expressão ao pluralismo de ideias. E a verdade é que, sem assunção completa desses valores e num quadro democrático de normal tensão entre o governo e a imprensa, a independência em relação aos poderes político e económico garantida aos jornalistas deixava espaço para simpatias políticas em relação a um partido ou para vitimização perante outro, sob a capa de autocensura. As malhas ideológicas em tensão com os novos valores e princípios constitucionais da Segunda República, que continuaram a entremear as instituições, contribuíram para que o mesmo fenómeno de simpatia ou autocensura, conforme o caso, se propagasse para outros sectores, em particular os que lidavam com o conhecimento, a informação e a cultura.

A exagerada desproporcionalidade de cobertura dos média públicos em relação aos privados criada pelas tomadas das rádios há cinquenta anos nunca foi alterada significativamente. Parece que todos os governos na vigência do regime democrático se sentiram confortáveis com a situação ou se viram impotentes para a alterar, apesar de todos os partidos a criticarem quando na oposição. Em consequência, a expressão e o confronto de ideias no país não acontecem ao nível que se seria de desejar em democracia.

No público há os constrangimentos, já referidos, no pluralismo interno exigido aos órgãos. Nos média privados, a autocensura pode ser uma forma de lidar com um mercado publicitário tornado exíguo pela posição hegemónica do Estado. O problema é que, quando todos se alinham para sobreviver, diminui-se o pluralismo externo na base de órgãos editorialmente diversos que devia produzir o confronto de ideias.

Os sectores da cultura e da educação e as universidades que podiam compensar as deficiências na dinamização das ideias têm-nas provavelmente aumentadas. Sob a influencia de políticas identitárias e de correntes de pensamento polarizadoras da sociedade que alimentam o ressentimento e a vitimização não se cria espaço para o pluralismo e o debate de ideias. Pelo contrário, encadeiam-se incentivos como bolsas para estudo e investigação, edição de obras, facilidades de carreira e de contratação para criar activistas e passar ideias iliberais.

Nos Estados Unidos a percepção de que se está a fechar ao confronto de ideias com abordagens similares já serviu de pretexto para uma forte reacção do governo Trump contra certas universidades. O mesmo dá sinais de acontecer noutras partes do mundo. Em Cabo Verde ainda se fica pelo conformismo e pelo reforço da autocensura.

Entretanto, as consequências negativas vão-se acumulando. Um exemplo disso é o facto de no dia da língua portuguesa, que é a língua oficial, a língua escrita do país e da literatura cabo-verdiana e a língua do ensino, sem reacções de protesto não se dar trégua ao confronto do crioulo com o português e com a problemática da sua oficialização. Parece que não importa os estragos visíveis que essa atitude provoca diminuindo a disponibilidade das crianças e jovens em aprender a escrever, em ler livros e manuais escolares e em ser cidadãos plenos, porque capazes de se comunicarem plenamente na língua oficial e potenciarem todo o conhecimento acumulado do país. Sem preocupação com o impacto real do activismo de motivação ideológica na vida das pessoas parece que o pretendido é análogo ao que se consegue do bullying: conformar atitudes, criar falta de confiança e autocensurar-se.

Recentemente viu-se gente que se autoglorifica como africano ou como donos da independência a chamar os cabo-verdianos de racistas e a tomar por saudosistas quem celebrar o 25 de Abril sem a devida autorização. Por aí vê-se que o bullying no presente parece um instrumento de preferência para quem, como diz George Orwell, tudo faz para controlar o passado para poder controlar o futuro. Há, porém, que quebrar essa relação de vassalagem para que os relatórios dos RSF deixem de apontar a autocensura como um hábito e se acabe com a cultura de verdades convenientes em Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1223 de 07 de Maio de 2025.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Cabo Verde, a história imposta

 A propósito da rejeição de entrada de alguns estrangeiros oriundos da Nigéria pelos Serviços de Imigração e Fronteiras assistiu-se nas últimas semanas a mais uma avalanche de acusações rotulando Cabo Verde de país racista e os cabo-verdianos de racistas. Intervenções de titulares de órgãos de soberania e posicionamentos de partidos políticos serviram de pivot para as sucessivas vagas de ataque que se verificaram a partir de órgãos de comunicação social e das redes sociais. Aconteceu antes e irá acontecer no futuro ao mínimo pretexto, porque faz parte do cardápio dos que se servem de políticas identitárias e das paixões e ressentimentos por elas suscitadas para obter ganhos políticos.

É curioso que ninguém acusa de racista outros países da CEDEAO com um registo de rejeição de entradas superior ao de Cabo Verde ou com uma história de expulsão de nacionais da comunidade aos milhares e mesmo milhões, caso da Nigéria, da Costa do Marfim ou do Senegal. Normalmente o rótulo de racista vai para os países europeus e o Ocidente, em geral em relação aos quais reivindicações de mais ajuda e de reparações surtem efeito. Árabes e asiáticos parece que estão excluídos deste jogo.

Aplicá-lo a Cabo Verde, que não tem o passado colonial e de segregação racial desses países que poderiam justificar a existência ainda de atitudes racistas e manifestações de racismo estrutural, não faz qualquer sentido. Só se compreende se a realidade humana de Cabo Verde que, de uma determinada perspectiva, podia chamar-se de pós-racial é um elemento de perturbação para certas ideologias fixadas na raça e na luta racial. E para devolver o país a uma normalidade desejada é preciso desconstrui-la e racializá-la.

As consequências do extremar de posições em matérias de políticas identitárias em todo o mundo são hoje visíveis para todos. De facto, a afirmação de identidades distintas, em disputa permanente e incapazes de chegar a compromissos, tem contribuído para a polarização das sociedades, para o aumento na hostilidade aos imigrantes e para a ascensão de políticos e políticas radicais. Nos Estados Unidos da América foi um dos principais factores por trás da eleição de Donald Trump. Na Europa, o reforço em parte da posição da extrema-direita alimenta-se desse radicalismo que põe em causa valores universais. Daí a guinada brusca para o iliberalismo e a compressão dos direitos fundamentais, o enfraquecimento do Estado de Direito e a contestação da independência dos tribunais e o surgimento de oligarquias económico-financeiras próximas do poder político.

Não se deve esperar diferente em Cabo Verde se se continuar a prática de, sempre que a oportunidade se oferece, se recorrer à táctica de acusar o país e o povo de racista, de forçar uma escolha entre Europa e África, e de esgravatar o passado à procura de cumplicidades com o poder colonial. Corre-se o risco de enfraquecer a consciência da nação, de quebrar a unidade do país com ressentimentos forjados e de minar a democracia liberal com a perda de confiança de que os órgãos de soberania são representativos de todos. Em causa pode ficar o que distingue e constitui vantagem para o país que é o de ser uno, diverso, mas sem tensões raciais e com uma democracia estável.

Infelizmente, a tentação de se prosseguir com políticas identitárias potencialmente divisivas sem preocupação com as consequências é quase incontornável. Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974 e no processo de retirada das colónias, as ilhas de Cabo Verde foram praticamente entregues pelas autoridades portuguesas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que da Guiné, a cerca de 1000 quilómetros de distância, conduzia uma guerra de guerrilha e clamava pela independência do arquipélago. Aconteceu algo similar com as restantes colónias, mesmo com São Tomé e Príncipe em relação à qual não havia movimento armado a exigir a independência. Identificando-se como partido africano e promotor de uma unidade política com a Guiné-Bissau, o PAIGC logo no texto da proclamação da independência determinou “um destino africano” para Cabo Verde, sem que houvesse consulta popular num ambiente livre e plural. Aliás, assim como nas outras colónias e em nome do princípio de NÃO AO REFERENDO, não houve exercício do direito à autodeterminação.

Para um povo, que por mais de um século e em todas as ilhas já se reconhecia como cabo-verdiano, mesmo dentro do império português, com a sua língua, cultura, música e literatura, a imposição de uma identidade genérica (a África tem mais de 900 etnias e línguas) no quadro de uma ideologia pan-africanista em detrimento da sua não podia deixar de ser traumatizante. Também teria que provocar divisão no país entre, por um lado, os que aderiram ao novo regime, que logo se revelou totalitário e, portanto, agressivo e intolerante, e os outros. A tentação de considerar os resistentes à sua ideologia como saudosistas, europeístas ou luso-tropicalistas e pró-claridosos persiste até hoje, mesmo depois da “unidade Guiné e Cabo Verde” ter-se revelado um embuste para legitimar a implantação durante quinze anos de uma ditadura dos “melhores filhos do povo”.

Para criar fundamentação teórica para o destino africano recorreram aos escritos de António Carreira que, segundo o depoimento de Carlos Reis, ministro da Educação entre 1975/1980, para o livro de João Lopes Filho sobre esse autor, “a obra de António Carreira é aquela que mais fez para a produção e sistematização de elementos teóricos para uma possível unidade entre Guiné e Cabo Verde”. O historiador António Correia e Silva no mesmo livro diz que: “Em vez da história da cultura, das ideias e das atitudes (…) predomina em Carreira a história económica, mais concretamente a do tráfico de escravos”. Compreende-se assim por que, de acordo com Correia e Silva, a sua obra é “talvez a mais marcante para a conformação da moderna historiografia cabo-verdiana”. Ao fazer da “escravatura” e do “escravo” as chaves para se decifrar a história de cinco séculos de Cabo Verde, ficavam justificados a imposição do destino africano e o papel dos “libertadores”.

A postura cultivada de libertadores, porém, cede rapidamente para a de conquistadores, sempre que por qualquer razão acham que o país não lhes presta suficiente vassalagem. Aconteceu há poucos dias na sequência do início das comemorações dos 50 anos de independência. Acham que a celebração deve ser sobre o processo de independência e os seus dirigentes, processo esse que, como se sabe, impediu aos cabo-verdianos o exercício do direito à autodeterminação e impôs ao país uma ditadura de quinze anos na qual foram os principais protagonistas. Mas é evidente que em democracia, quando se celebra o dia do país, são os princípios e valores em que a comunidade nacional se revê que são fortalecidos, em particular o facto de a independência significar antes de tudo autodeterminação para escolher livremente os governantes, fazer as leis a serem acatadas por todos e decidir o rumo do país em eleições periódicas.

A comemoração da independência com esse sentido favorece a união e a solidariedade e renova a confiança no futuro. Mas se é luta política permanente que se pretende para conquistar o poder, vão continuar aí as questões identitárias, vai-se fustigar o país com acusações de racismo e até invocar a figura de Amílcar Cabral, sem preocupação com as consequências. A assunção de responsabilidade nunca foi um traço forte de quem procura o poder a todo o custo.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1222 de 30 de Abril de 2025.