sexta-feira, 29 de agosto de 2025

É preciso um olhar mais realista e pragmático

 

A propósito do imbróglio envolvendo a concessionária do serviço de transportes marítimos de passageiros e carga, CV Interilhas, e o Estado de Cabo Verde veio à baila a questão da “exclusividade” na operação desse serviço. Para uns, a concessão implica exclusividade para quem a obtém em concurso público. Para outros, suportando-se no artigo 91º da Constituição, não se pode, em nome da liberdade económica, impedir outros operadores no sector concessionado. A decisão do Tribunal Arbitral em condenar o Estado a pagamento de compensação indemnizatória, entre outras razões, por violação do contrato de concessão ao autorizar mais um operador na rota S.Vicente/Santo Antão serviu de gatilho para um assunto que parece ser objecto de muitos equívocos no país.

Aparentemente, reina em Cabo Verde a ideia de que todos os sectores de actividade estão abertos sem restrições para a iniciativa privada. Se há problema com os transportes aéreos domésticos, a solução é criar espaço para todos os operadores interessados. O mesmo devia acontecer com o transporte marítimo interilhas. No mesmo sentido, também em outros sectores não há que ter limites, como por exemplo nas rádios privadas e nas televisões privadas a transmitir em sinal aberto. É uma ideia que não tem respaldo na realidade considerando que em vários sectores existe controlo restritivo na entrada e no exercício da actividade económica como se vê, por exemplo, no caso dos bancos ou das farmácias em número e localização.

De facto, como estipula o artigo 91º da Constituição “a exploração das riquezas naturais e recursos económicos está subordinada ao interesse geral” e como tal há que assegurar a fiscalização e a regulação do mercado de forma a se criar as condições para ter consumidores satisfeitos e actividade económica rentável e sustentável. O mercado por si próprio não garante isso. Há o problema de escala, mas também da natureza da actividade em relação à qual imperfeições do mercado podem dificultar a sua realização por operadores privados ou falhas do mercado acabam por a inviabilizar. Esses e outros casos, designadamente de monopólio natural, muitas vezes exigem intervenção qualificada do Estado que deve assegurar bens e serviços públicos e que para isso tem que garantir sustentabilidade por via de subsídio e/ou concessão com exclusividade.

O normal num país arquipélago e de pequena população como Cabo Verde é que as empresas se debatam com sérios problemas de escala e que ninguém espere que o mercado seja a solução para tudo. Paradoxalmente essa realidade não parece pesar muito no enquadramento que se faz de vários problemas. Nem da parte do governo, das forças da oposição ou da sociedade civil se nota pensamento muito diferente, como se todos vivessem numa “bolha neoliberal”, no sentido vulgar do termo. O curioso é que no essencial essa crença se mantém mesmo com alternâncias na governação e com crescente insatisfação do público, designadamente no domínio dos transportes aéreos.

Um exemplo é o facto de, logo depois de, em Maio de 2017, se ter introduzido no mercado a Binter CV com 30% das acções detidas pelo Estado em troca da posição comercial da TACV nos voos domésticos, se ouvir dos governantes que o mercado estava aberto para outros operadores. Sem exclusividade efectiva e sem uma política tarifária adequada, não tardou muito para a Binter ir-se embora. Depois veio a Bestfly que também acabou por seguir o mesmo caminho, enquanto o discurso se mantinha e uma outra política mais realista para os transportes aéreos domésticos não era formulada e implementada.

Pelo sentimento que existe na sociedade em relação a essa matéria – que ainda parece acreditar numa solução pela via do mercado, não obstante as experiências recentes e as anteriores – não é de estranhar que, sem uma mudança de fundo na política de transportes, uma outra operadora venha sofrer das mesmas dificuldades. Uma política que assume que é preciso estabilizar a circulação entre as ilhas com segurança e frequência adequada e com tarifas ajustadas para facilitar a movimentação dos cabo-verdianos no território nacional. Algo que realmente contribua para um maior conhecimento do país, para unificar o mercado e desenvolver o turismo interno e para melhorar a distribuição de riqueza pelo todo nacional.

É evidente que esse desiderato, pelas suas implicações orçamentais e impacto na economia nacional, teria que merecer o consenso de todas as forças política, o que dificilmente acontecerá. É maior a tentação de aproveitar-se politicamente das dificuldades de quem está a governar em gerir os transportes aéreos do que em equacionar estrategicamente os problemas do sector numa outra perspectiva, ainda que mais vantajosa para o país. Prefere-se ficar pelos tacticismos eleitoralistas do que servir-se do exemplo dos outros arquipélagos da Macaronésia na resolução do problema para uma nova abordagem.

Os transportes marítimos que anteriormente não eram alvo da atenção dispensada aos transportes aéreos e não tinha o mesmo peso nas disputas políticas passou ao centro da atenção com a instituição do serviço público de carga e passageiro. Resultou de um processo posto em movimento num governo do PAICV e continuado no governo do MpD após 2016 que culminou numa concessão atribuída à CV Interilhas. Assim como os transportes aéreos sofriam dos mesmos problemas de escala. Claramente que a fracção da população do país que pode viajar horas seguidas pelo mar muitas vezes revolto que rodeia as ilhas não auguraria um volume de receitas apreciável e a possibilidade de ver esse número crescer estaria limitada pela pequenez da própria população. Por outro lado, a carga gerada pela estrutura produtiva do país, já de si limitada, é constrangida pela logística ainda deficiente de distribuição que a podia potenciar.

Instituído o serviço público é evidente que teria de ser subsidiado. E se aos subsídios não se acrescentasse a exclusividade de operações inevitavelmente a subvenção do Estado teria que aumentar em particular porque o mais lógico seria que os outros operadores autorizados convergissem nas rotas mais rentáveis. O clamor que se ouve hoje quanto aos valores a serem pagos não é acompanhado de um debate sobre o modelo adoptado para os transportes marítimos e sobre seus pressupostos económicos e financeiros que, considerando e escala das operações, seriam frágeis. Nega-se a exclusividade quando aparentemente tinha ficado implícita a partir do momento que, com aplauso geral, os armadores nacionais foram convidados a participar na concessionária e se estabeleceu que não seriam concedidas novas licenças para operar no sector.

Com todos estes elementos montados num determinado sentido e o discurso político focado num outro não duraria muito que tudo isso viesse a explodir num mar revolto de reivindicações. São indeminizações milionárias por parte da concessionária, sem que tenham sido feitos os investimentos previstos no caderno de encargos. São exigências de cumprimento por parte do público agora com as espectativas elevadas de horário e frequência de navios em todas as rotas. E são as manifestações de indignação nas redes sociais levadas ao paroxismo com ajuda algorítmica e movidas em boa parte por conveniência política. A verdade é que no fundo não se discute o modelo do serviço público e não se antevê o que poderá vir a acontecer se se efectivar o fim da concessão.

O governo, fiel ao seu discurso de sempre, procura anular o acórdão do Tribunal Arbitral sem uma saída obvia para o imbróglio. O país queda-se à espera de um olhar mais realista e pragmático para os seus problemas.  

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1239 de 27 de Agosto de 2025.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Crises enfrentam-se com boa liderança e atitude certa

 

Cabo Verde vive com a trágica perda de vidas humanas, de recursos e de propriedade verificada a 11 de Agosto em S. Vicente, um desses momentos de calamidade que ficam na memória das gentes das ilhas. Ao arquipélago não é estranho desastres naturais. Secas periódicas durante séculos provocaram fomes terríveis e marcaram a fisionomia, a cultura e a atitude deste povo. De tempo em tempo o desastre não resulta das secas, mas de chuvas em excesso revelando os extremos do clima a que o país está sujeito devido à sua localização geográfica. Os últimos acontecimentos são um lembrete que a tendência é para piorar tanto na frequência como na intensidade dos extremos.

Em geral, face às dificuldades nunca faltou o espírito de entreajuda e de solidariedade, como mais uma vez se constata na actual tragédia, nem se instalou nos cabo-verdianos um espírito fatalista ou conformista. A atitude sempre foi de procurar uma via para não sucumbir ao destino de “morrer de sede ou morrer afogado”. Se antes a saída resumia-se praticamente à emigração ou para os afortunados a possibilidade de estudar e conseguir um lugar na administração pública, no Cabo Verde democrático e ligado ao mundo, oportunidades outras podem ser potenciadas. O mesmo afecto ao país e o inconformismo perante a adversidade que animava essas escolhas deve agora suportar uma nova atitude que, focada no crescimento e no desenvolvimento inclusivo do país, sirva de base para a construção da resiliência necessária a choques externos, tanto os naturais como os criados pela conjuntura económica e política.

Cabo Verde não é um país fácil, nem é tarefa fácil levar uma nação a crescer e a desenvolver-se de forma sustentável. Pela história económica das nações vê-se que, no geral, não interessa se o país é grande ou pequeno, populoso ou não, rico ou não em recursos. As dificuldades são maiores nos países insulares onde, a outros constrangimentos, somam-se vulnerabilidades várias, designadamente de conectividade e dimensão do mercado. Não é à toa que as ilhas são vistas à partida como inviáveis e na generalidade são sustentadas por ajuda internacional massiva ou por subsídios substanciais das “metrópoles” continentais. Regozijar com pretensa viabilidade ainda nos escalões inferiores de desenvolvimento não passa de puro ilusionismo que qualquer choque externo põe completamente a nu.

Dois factores destacam-se por fazer a diferença em matéria de crescimento económico: a liderança do país e a atitude da sociedade expressa num esforço dirigido para aumentar o capital social (confiança e cultura cívica) e no empenho em proporcionar um salto qualitativo ao capital humano. São dois factores que se distinguem ainda por resultarem fundamentalmente de vontade e de processos internos de cada país. De facto, é uma escolha colectiva se se deixa apanhar em malhas ideológicas, perder em nostalgia ou refugiar na vitimização. Ou pelo contrário, se se orienta pelos factos, pelo conhecimento e pelo realismo quando confrontado com os problemas do país.

Também é escolha própria exigir da liderança o comprometimento efectivo com o bem-público, níveis elevados de competência para o exercício de funções e visão que integre realisticamente objectivos de curto, médio e longo prazo. Optar no sentido oposto por procurar favores, acesso e facilidades na relação com lideranças políticas nos diferentes níveis inevitavelmente conduz à degradação governativa. Reforça-se a dependência, põe-se em causa a fiscalização e o controlo democráticos e premeia-se a incompetência. A capacidade do país de responder aos problemas em geral e aos choques externos em particular diminui e fica mais difícil projectar o futuro. A tendência é para se cair num estilo de governação marcada pela “gestão corrente” em que reais alternativas parecem não existir mesmo quando há alternâncias no governo.

Quando assim é o quotidiano ou o costumeiro só é interrompido brutalmente em caso de calamidade, como foi agora o caso das chuvas torrenciais em S.Vicente ou da pandemia da covid-19 em 2020. E aí as insuficiências de gestão, as faltas de investimento e as más práticas em geral vêm à tona. Abre-se uma crise e no horizonte das possibilidades para a ultrapassar também aparecem oportunidades para sair do status quo e inovar para o futuro. O problema é se, ao conseguir gerir a crise com recursos especialmente mobilizados, que acabam por servir de paliativos para suavizar os seus priores sintomas, se perde a motivação para enfrentar e resolver as questões de fundo.

Em meio de uma crise aberta tende a reinar a lógica do curto prazo. Da parte da situação quer-se apresentar soluções de impacto imediato e passar a imagem de indispensável na resolução de crises. Da parte da oposição não se quer perder a oportunidade de apontar culpados e de explorar emoções provocadas por acontecimentos trágicos para desencadear ondas de indignação dirigidas ás autoridades. Como é evidente, os problemas que levaram à crise ou a exacerbaram não são enfrentados. Aliás, muitos deles vêm de longe, já sobreviveram a vários ciclos eleitorais e até a outras crises. Com o fim da emergência, ganham mais um tempo de vida.

O tipo de confronto político que existe em Cabo Verde não favorece o diálogo seguido de compromissos em questões muitas vezes fundamentais. Alternâncias na governação não produzem necessariamente soluções diferentes e estáveis como se pode constatar, por exemplo, no domínio dos transportes aéreos e marítimos, na política de habitação, na segurança, na reforma da administração pública e na educação. Pior ainda, acontece ao nível do poder local em que a prática da governação na base da “campanha permanente” tende a reforçar o caciquismo dos presidentes de câmara municipal (CM) e a dissuadir qualquer possibilidade de fiscalização ou escrutínio dos actos da CM pelos munícipes.

É evidente que, sem um esforço para o desenvolvimento de uma cultura cívica ao nível local, o caminho fica aberto para o incumprimento das posturas municipais, para o uso abusivo do espaço público e para o desrespeito pelas normas de construção e de ocupação do terreno. Os custos são evidentes nas incivilidades que se normaliza, no lixo que se acumula, na fisionomia cinzenta das cidades sem casas pintadas e nas habitações inadequadas e perigosamente assentadas. Aumentam ainda com epidemias provocadas por mosquitos e, na época das chuvas, com as enxurradas que invadem casas, arrastam pertences das pessoas e põem vidas em perigo. Por isso, quando o inesperado acontece, os quase 200 mm de chuva em poucas horas, é a tragédia que se assistiu em S.Vicente.

Uma das lições a tirar da devastação provocada na ilha é a necessidade de dar uma maior atenção à gestão dos municípios de forma a impactar positivamente a segurança e qualidade de vida dos munícipes. Os custos de não fazer isso com a devida urgência tendem a subir em espiral com as alterações climáticas e o aumento da frequência de fenómenos extremos. Há que também considerar a importância de se inventariar a capacidade logística a nível de cada ilha e do país para responder a emergências em qualquer ponto do território.

Globalmente Cabo Verde estará em melhores condições de enfrentar situações de desastre se souber conter o desgaste das suas instituições democráticas sob pressão populista proveniente dos vários quadrantes. Se em tempos normais é de maior importância ter uma liderança de excelência, em tempos de crise pode ser uma questão de sobrevivência. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1238 de 20 de Agosto de 2025.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Fazer das crises oportunidade para construir confiança e enfrentar desafios futuros

 

Nas primeiras horas de madrugada de segunda-feira, 11 de Agosto, a ilha de S. Vicente foi submetida a um desses fenómenos climáticos extremos que sempre em Cabo Verde se rezou para não acontecer. Um sistema de baixa pressão em trânsito pelas ilhas de S. Nicolau, S. Vicente e Santo Antão fez cair sobre a ilha de toneladas de água ceifando vidas. Morreram oito pessoas entre as quais quatro crianças, e houve devastações que atingiram casas, infraestruturas e veículos. A consternação geral da população pelo sofrimento das famílias afectadas, pelos bens perdidos e pelas dificuldades de acesso a bens essenciais não deixou de ser acompanhada de um sentimento que calamidades semelhantes estão a tornar-se mais frequentes e que há que se preparar para as enfrentar.

A posição geográfica de Cabo Verde, a sua condição de arquipélago, a sua orografia e a sua origem vulcânica tornam o país altamente vulnerável a desastres naturais. Neles estão incluídos secas, inundações, tempestades tropicais, deslizamento de terras e queda de rochedos, mas também extremos de calor, erupções vulcânicas, erosão marinha das costas e outras consequências da elevação do nível das águas do mar. As alterações climáticas, que tendem a acelerar com a elevação da temperatura média do planeta nem sempre de forma linear, estão a aumentar a probabilidade de situações extremas do clima se manifestarem. A aconteceu agora em S. Vicente, mas que já se vinha notando em anos anteriores em outras ilhas. O choque do que nessa ilha se passou deve ser um impulso para uma nova atitude a ser assumida, tanto pelas pessoas como pelas autoridades locais e nacionais, para fazer face a situações que, de raras e improváveis, estão cada vez mais a se tornarem frequentes e perigosas.

O Banco Mundial num relatório sobre o clima e desenvolvimento em Cabo Verde, de Janeiro de 2025, chamou a atenção para o facto de, perante a realidade das vulnerabilidades do país, as mudanças climáticas poderem resultar em prejuízos económicos e sociais substanciais, em particular no sector turístico. Na falta de acção para as contrariar, outros sectores poderão ser afectados, como é o caso da agricultura e pecuária e também as pescas, levando num horizonte de 2050 ou de 2040 a taxas no PIB de 3,1 a 3,6 % inferiores ao que em condições normais seriam expectáveis. A par disso, ainda segundo esse relatório do BM, os prejuízos poderão estender-se às infraestruturas e aumentar a necessidade de investimentos de longo prazo, de importação e de financiamento externo. Também poderão afectar negativamente o rendimento familiar e a luta contra a pobreza.

São razões suficientes para evitar que, ainda com a memória fresca da pandemia da covid-19, se trate a calamidade que se assistiu em S. Vicente como um déjà vu e, em consequência, depois de passado o choque e ultrapassada a comoção geral, esquecer tudo e voltar à velha rotina de sempre. De facto, é de se optar efectivamente por mudar a atitude e não se comportar como das outras vezes em que o país foi confrontado com problemas únicos ou com efeitos de políticas particularmente insatisfatórias ou mesmo nefastas. Impõe-se que assim seja porque as incertezas são maiores, com as novas tensões geopolíticas, e os imprevistos acontecem de forma cada vez mais impactante, com consequências que não devem ser varridas para debaixo do tapete.

Infelizmente, a tendência que se nota actualmente nas democracias é de aumento das incertezas em relação a tudo, com a contribuição entusiástica de indivíduos e de grupos, servindo-se do megafone das redes sociais, propiciado pelas plataformas tecnológicas. Procura-se pôr em causa normas e instituições, multiplicar identidades e desconstruir elos que mantém intacto o tecido social. Há quem queira substituir o pluralismo e a tolerância pela polarização deliberada da sociedade. Conseguido isso, é caminho andado para os extremos se retroalimentarem, para inviabilizar o debate democrático e permitir o populismo afirmar-se com a sua visão alternativa da realidade.

Nessa senda acaba-se mesmo por contestar os avanços reais realizados nos diferentes sectores da vida em sociedade, lançando dúvidas quanto aos dados estatísticos. É um facto que sempre se pode discutir o método seguido na obtenção dos dados, mas daí a construir uma autêntica teoria de conspiração, na qual outras instituições idóneas do país, os parceiros de desenvolvimento e as organizações internacionais estariam a ser enganados, vai uma grande distância. Tudo isso para contestar o crescimento económico que, não obstante o que é dito, não deixa de ser real, mesmo não sendo universalmente desejável e não impactando da mesma forma todos os sectores da economia e segmentos populacionais. Aliás, é fundamental que seja reconhecida uma base comum, insatisfatória como eventualmente possa ser na perspetiva das diferentes opiniões e dos diversos interesses, para se batalhar com políticas assertivas por um crescimento robusto e um desenvolvimento mais justo, inclusivo e sustentável.

Um dos resultados de se insistir nesse caminho de minar a coesão básica das sociedades democráticas é a fragilização que daí resulta face a quaisquer imprevistos, sejam eles produtos de alterações climáticas ou de causas naturais. Imprevistos que também podem derivar das novas práticas no comércio internacional e da guerra das tarifas, ou de mudanças na relação entre os Estados, que já não é mais na base do respeito mútuo de décadas atrás. Em voga agora estão os critérios “transacionáveis”, de vassalagem ou de lisonja do mais poderoso.

O mundo em fluxo de hoje exige das democracias um esforço dirigido para manter uma base de confiança e solidariedade sob pena de se sujeitarem a todo o tipo de pressões sem possibilidade de uma estratégia e vontade própria para as enfrentar. Mesmo perante imprevistos com base em factores naturais, a melhor forma de prevenção não deixa basicamente de passar pela via da consolidação da confiança nas comunidades: Ou seja, a adesão às normas de construção que aumentam as chances de sobrevivência em caso de tremores de terra e erupções vulcânicas, o respeito pela regras urbanísticas para evitar inundações e também a cidadania activa, que responsabiliza os autarcas pela manutenção do melhor ambiente sanitário do município e que apoia o combate à corrupção local.

Deixar-se apanhar despreparado pelos imprevistos e incertezas pode significar ceder espaço ao populismo para se apresentar como instrumento do restabelecimento da ordem e segurança na sociedade, deixando na sombra a proposta escondida de autoritarismo. Liberdade e segurança devem poder reforçar-se mutuamente no quadro da ordem democrática. Outrossim, crises criadas por causas naturais ou outras podem constituir oportunidades para provar e reforçar a importância da ordem democrática no processo de as enfrentar e resolver com ganhos para o stock de confiança e solidariedade na sociedade. Para isso liderança local e nacional têm que se pôr à altura do desafio. Desta calamidade deve poder emergir um S.Vicente revitalizado e mais confiante e um país mais solidário.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1237 de 13 de Agosto de 2025.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Não continuar a cometer os mesmos erros

 

Parafraseando a célebre frase de Georges Santayana pode-se dizer que “quem não aprende com os erros do passado está condenado a repeti-los”. Em Cabo Verde é cada vez mais clara a resistência em lembrar o passado e em aprender com os erros cometidos. Primeiro, porque o passado está amarrado a narrativas ideológicas institucionalmente reproduzidas que dificultam o desenvolvimento do espírito crítico por tornar inconveniente qualquer sinal de inconformismo com o que é ensinado e comunicado. Segundo, porque a defesa de um certo passado é a trave-mestra de um grande sector de opinião com grande expressão no debate político do país, condicionando efectivamente o presente e qualquer futuro que se pretenda criar.

O último debate sobre o estado da Nação foi mais uma demonstração de como as forças políticas não conseguem encontrar terreno comum para, com algum consenso sobre o ponto de partida, poderem construtivamente divergir quanto ao rumo do país, identificar os entraves ao progresso nos diferentes sectores e apresentar propostas alternativas. Ignoram-se os dados e uma avaliação honesta dos mesmos para não se entenderem quanto ao crescimento do país, em como responder às novas solicitações ao sistema de saúde, às crescentes expectativas sobre a educação e à persistente percepção negativa de segurança das populações e de que forma encarar a problemática da emigração e das migrações internas. Prefere-se ficar pelo jogo de comparar, numa perspetiva mais acusatória do que de retirar ensinamentos, obras e políticas de diferentes governos e na disputa de promessas com carácter claramente eleitoralistas e sem grande preocupação pelos custos e pela oportunidade.

Entretanto, à volta ganha força o populismo que quer fazer acreditar que é diferente das elites em confronto no parlamento e que até agora se fizeram representar nos sucessivos governos. Ainda beneficia da incapacidade de diálogo democrático que na casa parlamentar demostram para promover as suas propostas bombásticas, reagindo a qualquer reparo quanto à razoabilidade das mesmas e a serem factíveis com acusações de jogo das cartas marcadas. Com a denúncia do suposto logro em que os mais pobres são os prejudicados, o populismo justifica o seu caracter antielites e a sua recusa ao diálogo. Por aí, vê-se a convergência de forças anti diálogo democrático precisamente quando o país mais precisa elevar o seu crescimento e desenvolvimento para um outro patamar.

No impasse que se cria, não é só o populismo que floresce, também fica crescentemente difícil identificar e reconhecer erros, falhas ou imperfeições na definição e execução de políticas e proceder às devidas correcções. Aliás, nem o sistema político na sua globalidade beneficia como devia do feedback de posições contrárias, pois demasiadas vezes limitam-se a ser tacticismos com vista a ganhos políticos de curto prazo. O resultado é que o país acaba impossibilitado de reconhecer os erros no passado, de os procurar compreender e de os evitar no futuro.

No debate sobre o estado da Nação a problemática dos transportes marítimos e da empresa concessionária dos mesmos foi despoletada com a publicação nas redes sociais do acórdão do tribunal arbitral que deu razão à CVI e condenou o Estado a pagamentos num valor acima de 20 milhões de euros. Em causa estão questões como exclusividade nas rotas que o Estado não teria respeitado, a remuneração compensatória de 10% das receitas de operação que teria recusado a pagar e o excessivo custo dos afretamentos dos navios Chiquinho e Dona Tututa, um deles limitado a circular entre São Vicente e Santo Antão e outro com várias baixas para reparações que tornam complicado a programação da circulação entre as ilhas.

No meio de tudo isso reina alguma perplexidade em relação ao que aconteceu com o investimento em cinco barcos a ser feito pelo vencedor do concurso público. O mesmo acontece em relação à entrada de 10 armadores com 49% na empresa concessionária à subsequente diminuição do capital social da CVI de 300 mil para 50 mil contos, segundo os documentos vindos a público. Mais complicado ainda é o que resulta da justificação dada no voto de vencido do árbitro-vogal do Tribunal Arbitral a pedir ao tribunal que declarasse “a inexistência jurídica de todas as cláusulas negociadas após a aprovação da minuta do contrato de concessão pelo Conselho de Ministros”. Segundo o árbitro-vogal, resulta dos autos que o então Ministro dos Transportes “não tinha conhecimento das discrepâncias entre a minuta e o contrato de concessão” e que, por conseguinte, em relação a certas cláusulas do documento assinado estar-se-ia “perante o vício da falta de vontade negocial”.

O problema dos transportes marítimos como dos transportes aéreos e outros sectores importantes da economia de Cabo Verde tem a ver fundamentalmente com a natureza do país arquipelágico, de nove ilhas, população de um pouco mais de meio milhão de habitantes, fracos recursos naturais e distante 600 quilómetros do continente mais próximo. Problemas graves de escala limitam a possibilidade do mercado resolver os problemas. A insularidade impõe que se reproduzam nas nove ilhas portos, aeroportos e outras infraestruturas, designadamente, nos sectores de energia e água, de educação e saúde e de telecomunicações. Perante imperfeições e falhas de mercado o Estado tem que intervir numa realidade em que escasseiam recursos financeiros e o tempo dos financiamentos concessionais e das organizações multilaterais nem sempre se prestam para aproveitamento de oportunidades de negócios.

Parcerias público-privadas sempre podiam ser uma via para colmatar dificuldade de financiamento, de know how e de acesso a mercados com outra dimensão. O problema nessas operações, que pelas características do país são sempre arriscadas, é que o custo das mesmas acabe por ser suportado apenas pelo Estado. A probabilidade de isso acontecer diminuiria se houvesse uma maior consciência da realidade difícil do arquipélago , uma predisposição maior para aprender com a experiência e para capacitar o Estado de competência negocial e menos disponibilidade para ver o país num prisma essencialmente eleitoralista de curto prazo.

Infelizmente a tentação, também para conseguir ganhos políticos, sempre que algo não acontece de melhor forma, é de atribuir as falhas a actos de corrupção. Realmente podem existir, mas a verdade é que não se resolvem os problemas minimizando a contribuição de outros factores como má preparação nas negociações das parcerias, as dificuldades inerentes ao país, a quase impossibilidade de ultrapassar certos preconceitos herdados que opõem amantes da terra a vendedores da terra.

Risco de aproveitamento indevido vai sempre existir quando há interesses em jogo. Mas não há crescimento e desenvolvimento rápido e sustentável sem correr esse risco. A história dos 50 anos pós-independência demonstra isso quando aos primeiros quinze anos que terminaram em estagnação económica sucederam anos vibrantes dinamizados pela iniciativa privada, pela atracção de investimentos e pela liberalização da economia. Minimizam-se os riscos com o pensamento livre e sentido de responsabilidade de quem aprende com os erros do passado para que o país não continue a repeti-los. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1236 de 6 de Agosto de 2025.