sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Melhorar a qualidade do ensino, a prioridade das prioridades

 

Nesta segunda semana do mês de Setembro arrancou o ano lectivo de 2025/2026 com pronunciamentos muito focados na qualidade do ensino. O ministro da educação anunciou para o ano de 2026 o exercício PISA para avaliar como os alunos cabo-verdianos se comparam com os dos países desenvolvidos nas áreas de leitura, matemática e ciências. Com a mesma preocupação com a qualidade acrescentou que se vai avançar com o barómetro nacional das escolas para avaliar o desempenho das escolas nos diferentes concelhos e relembrou que a educação “constitui igualmente um compromisso colectivo”. Por sua vez, o presidente da república veio chamar à atenção para os desafios dos tempos modernos que impõem uma” arrojada aposta na sofisticação, na excelência e na eficiência”, de todo o sistema educativo.

Para um país com as características de Cabo Verde em termos territoriais, de população e de localização, a aposta forte na qualificação do seu capital humano a partir do momento em que se tornou independente devia ter sido a prioridade das prioridades. O facto de só neste ano se estar a criar condições para se avaliar a qualidade do ensino em termos comparados, internacionalmente e nos diferentes pontos do país, diz o quanto foi posta em segundo plano em relação aos outros objectivos, designadamente de massificação do ensino. Depois do que aconteceu com o ensino básico e secundário em que se descurou a qualidade, a mais recente demonstração dessa opção é o que se assistiu no ensino universitário. Em menos de dez anos já contava com cerca de uma dezena de universidades. É evidente que com tal proliferação de estabelecimentos num país de 550 mil habitantes não se vai ter a “sofisticação e a excelência” que desde de há muito os tempos modernos estavam a pedir.

O ministro da educação ao apelar para um compromisso colectivo com uma educação de qualidade está a mostrar a importância do envolvimento de todos ( sociedade, famílias, professores e alunos), para além da responsabilidade do Estado na disponibilização de meios como escolas, manuais e professores, em torná-la uma realidade. De facto, sem uma sociedade comprometida com o conhecimento e com a busca da verdade e empenhada no desenvolvimento da ciência e tecnologia não há investimento em meios físicos e humanos que resulte em qualidade do ensino.

Professores e alunos não vão interessar-se suficientemente se o ambiente é adverso à procura de excelência nos domínios do conhecimento e não é meritocrático porque as carreiras submetem-se a outros critérios que não os de excelência. A própria escola não consegue propiciar um ensino eficaz se a profissão de professor não goza de suficiente reconhecimento social e não transmite a autoridade que permite captar a atenção e o interesse do aluno e manter ordeira uma sala de aula. No fim do dia, as famílias acabam por se resignar com os diplomas que os filhos trazem na expectativa que o acesso ao emprego siga outras lógicas.

Por outro lado, o país no seu todo pode até vir destacar-se em número de alfabetizados, de pessoas com ensino básico e secundário completo e de licenciados e doutorados, mas terá insuficiências em termos de pensamento crítico não estando firmemente comprometido com o conhecimento e com a verdade. Pior ainda, se o livre pensamento for tolhido por narrativas ideológicas, tendencialmente exclusivas e conflituantes com os princípios constitucionais, impostas por órgãos estatais. E a verdade é que com deficiente capacidade de análise objectiva e de questionamento e fundamentação das ideias fica difícil promover na sociedade a criatividade e a inovação e uma cidadania crítica e participativa.

É interessante notar nas biografias de muitos professores no novo livro da doutora Adriana Carvalho sobre 31 personalidades da educação do século XX a extraordinária dedicação ao ensino, o respeito e a amizade dos alunos e o reconhecimento de que gozavam junto das pessoas. Mesmo pobre, analfabeta ou pouco escolarizada, a sociedade mostrava valorizar o conhecimento e os seus agentes. Em tal ambiente vários professores desdobraram-se em intervenções diversas de carácter cultural, literária, jornalística e a favor de causas cívicas, em particular nos anos anteriores à independência. Mesmo no quadro político autocrático do Estado Novo de Salazar pareciam agir como livres pensadores, criando revistas, escrevendo poesia, contos e romances, publicando artigos e participando em saraus e outros eventos culturais.

Quebrou-se esse comprometimento com o conhecimento quando com a independência e a ditadura do partido único se associou a ideologia à educação. Ao condicionar a iniciativa privada e ao fechar o país ao investimento directo estrangeiro e ao turismo, o regime mostrou que a massificação do ensino não tinha como principal objectivo o desenvolvimento do capital humano, na perspectiva do aproveitamento das oportunidades que o mundo oferecia. A prioridade era a construção do “homem novo” como suporte do regime num quadro do pensamento único e da unicidade do poder. A expansão para o ensino secundário só viria a verificar-se nos anos noventa, a acompanhar a abertura económica e a dinamização da indústria e dos serviços e com impacto directo na produtividade e competitividade do país.

Infelizmente, não obstante os avanços verificados na educação nos anos posteriores, a qualidade do ensino continuou a não ser a prioridade principal. Aparentemente a sociedade democrática do pós-13 de Janeiro não recuperou o comprometimento com o conhecimento de outrora nem adoptou completamente os critérios meritocráticos de valorização da excelência. Em consequência, não se resgatou a figura do professor, continuaram as tentativas de os instrumentalizar politicamente e das escolas, dos liceus e posteriormente das universidades não se se sentiu o impacto cultural, intelectual, cívico e político que seria de esperar numa democracia jovem e vibrante. Muito menos se assistiu à corrida para o top dos rankings na qualidade do ensino verificada em países como a Estónia, um pequeno país que só no início dos anos noventa se libertou dos comunistas.

Nos últimos anos vem-se assistindo a mais uma incursão ideológica nas escolas através da introdução do crioulo como língua do sistema de ensino. Mais uma vez, ao invés de se focar a atenção da sociedade no objectivo prioritário da melhoria da qualidade de ensino optou-se pela introdução de guerras culturais e identitárias. Para além das divisões provocadas, retomando os epítetos de lusotropicalistas ou macaronésios para os críticos do ALUPEC, criou-se um ambiente de hostilidade contra a língua portuguesa que só podia ser prejudicial para os alunos em geral, considerando que é a língua oficial do sistema de ensino. Para os promotores e activistas parecia não interessar os estragos que podiam causar.

Quando o governo cedeu às investidas e abriu experimentalmente um curso da língua cabo-verdiana com um manual dedicado, não se resistiu à tentação de apresentar um facto consumado de uma língua cabo-verdiana padronizada que talvez com pequenos ajustes poderia ser adoptada para todo o sistema de ensino. Revelou-se um passo longe demais que tornou anteriores correligionários em inimigos declarados da chamada língua pandialectal, agora considerada um subterfúgio contra a variedade linguística de Santiago. A pedido, o Ministério Público emitiu um parecer, que provavelmente terá relembrado que é do parlamento a competência para estabelecer a ortografia de línguas oficiais, e na sequência, ontem, dia 16 de Setembro, o ministério de educação suspendeu o manual e a disciplina de língua cabo-verdiana.

Infelizmente, não vai ser desta que toda a atenção vai se focar na melhoria da qualidade do ensino sem as distrações ideológicas de costume. O presidente da república na sua comunicação no início do ano lectivo já veio dizer que a língua cabo-verdiana é a “ferramenta que já mostrou ser tão necessária para o sucesso das outras disciplinas” e que o seu ensino é de “supra relevância para o sistema educativo e para o futuro do país”. Caso para concluir uma vez mais que, para certas causas, a luta continua, sem olhar os estragos feitos à vista de todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Riscos aumentam para a democracia

 

A 15 de Setembro celebra-se o Dia Internacional da Democracia, 28 anos depois da União Interparlamentar (UIP) ter adoptado a Declaração Universal da Democracia e 18 anos depois da efeméride internacional ter sido instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Neste ano de 2025 a comemoração da data reveste-se de especial importância porque a democracia está claramente sitiada e, eventualmente, a bater a retirada. Vai longe a euforia dos fins dos anos oitenta e de grande parte da década de noventa em que a vitória da democracia e o reconhecimento universal dos direitos humanos pareciam imparáveis.

Em 2025 dois eventos internacionais a assinalar o dia com temas de “Um mundo virado de cabeça para baixo: democracia e inclusão numa era de insegurança” e “Democracia em risco: como podemos reavivá-la” dão conta do estado actual da democracia. Em boa parte deste século e particularmente depois da crise financeira de 2007/2008 ficou evidente que a democracia tinha entrando numa crise múltipla. Tornaram-se notórios os sinais de uma crise de representação, de uma crise dos partidos políticos e de uma crise de confiança nas instituições. Sinais de fracturas profundas nas sociedades democráticas começaram a manifestar-se no discurso anti-elites, no ressentimento derivado da percepção do agravamento das desigualdades sociais e no medo incutido pela crescente imigração, aparentemente sem controlo.

A par disso, a potenciar sentimentos de desesperança, a reforçar a solidão e a alimentar a ilusão de realidades alternativas, assistiu-se a emergência das plataformas digitais e das redes sociais que criaram a possibilidade de inundar toda a gente de informação sem qualquer tipo de intermediação e de validação, ao mesmo tempo que tornava as pessoas vulneráveis a manipulações diversas. Com os algoritmos construídos pelas plataformas para suportar o negócio e disponibilizar gratuitamente o acesso às redes sociais, bolhas mediáticas podiam ser criadas e exploradas por forças políticas emergentes, abrindo o caminho ao populismo, à contestação dos partidos e da democracia liberal e à erosão de confiança nas instituições. E é precisamente o que a partir da segunda década deste século tem vindo a acontecer, em simultâneo com a implosão dos partidos do centro democrático e o crescimento de forças extremistas, especialmente da extrema-direita.

Um outro desenvolvimento que tem contribuído para a erosão da democracia resulta do exacerbar do individualismo que, conjuntamente com o extremar das lutas identitárias e um processo continuo de vitimização, acaba por pôr em causa de várias formas (discriminação, cancelamento) os princípios liberais de liberdade e de igualdade. Uma outra consequência é a diluição do sentido de pertença que para além do impacto individual ao nível da saúde mental ainda pode contribuir para enfraquecer a fraternité/solidariedade essencial para a coesão do colectivo nacional. Daí é um passo para o surgimento, em reacção, do populismo nacionalista e anti-elites, por regra personificado por líderes narcisistas. Percebe-se a conexão no apelo a causas nostálgicas de passados gloriosos, no exercício autocrático de poder e na exigência de devoção que ajuda os seguidores a evitar o niilismo e os convida a ser parte de uma massa em crescendo e ganhadora.

A conjugação desses factores em vários países democráticos já levou a mudanças significativas no espectro político com a ascensão de forças mais à direita e a deslocação de políticas para posições iliberais. Nota-se a tendência para a compressão dos direitos fundamentais em particular da liberdade de expressão e de imprensa, para o enfraquecimento do princípio de separação dos poderes e para o recrudescer dos ataques ao poder judicial. Nos Estados Unidos, a mais velha das democracias e líder da ordem liberal e democrática que saiu da segunda guerra mundial, a afirmação, a uma velocidade estonteante, de uma presidência imperial desequilibrou o sistema de “checks and balance”.

A diminuição do papel do Congresso tem sido acompanhada da contestação sistemática do poder judicial nos limites de uma crise constitucional, por enquanto evitada pelo quase total alinhamento do supremo tribunal com as pretensões do presidente. Em simultâneo, procedeu-se à progressiva militarização da segurança pública, ao enfraquecimento do estado regulador, do estado administrativo e do estado social, a ataques às universidades e às instituições de saúde pública e a intimidação dos órgãos de comunicação social. Para com o presidente a relação aparentemente instituída é uma mistura de lisonja, demonstração de vassalagem e algum poder de encaixe para eventuais humilhações aplicável a todos, desde os gigantes do mundo dos negócios e das tecnologias até aos Chefes de Estado e de governo dos outros países. Não é à toa que muitos observadores consideram a deriva autocrática que a América vem protagonizando nos últimos nove meses como o acontecimento globalmente mais marcante desde a queda do comunismo e do fim do império soviético em 1989-90.

O exemplo que vem daí não deixará de ter efeito no resto do mundo e em particular nas democracias. Haverá tentativas de imitação, algumas de rejeição e outras ainda de acomodamento. A verdade é que a democracia globalmente ficará enfraquecida e já não se pode contar com uma vontade colectiva como a que deu origem à instituição do Dia Internacional da Democracia para incentivar a consolidação da democracia no mundo. E é uma grande perda para o progresso da humanidade porque, entre outras razões, como dizia o filósofo americanoReinhold Niebuhr, “a capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária”.

É neste ambiente mundial de recessão, se não de regressão democrática, que Cabo Verde dentro de oito meses vai realizar eleições legislativas. Também aqui no país os efeitos da erosão democrática são claramente sentidos tanto na sociedade como nas instituições e nos partidos políticos. Conter e pelo menos não a agravar devia ser uma preocupação central dos dois partidos do arco da governação e também de toda a sociedade. Será difícil não cair na tentação de continuar a fazer o mais do mesmo e a manter-se o excesso de protagonismo dos políticos, a se servir das redes sociais para canalizar sem filtro ou contexto todas as indignações, a ter os média a amplificar as redes sociais e a ver reivindicações laborais e corporativas desembocar em greves e paralisações.

O embate eleitoral que se anuncia será dos mais complicados para o país, tanto pela actual conjuntura política internacional penosa para as democracias como pela situação em que se encontram os dois grandes partidos. O partido no governo estará a terminar dez anos de mandato com o desgaste normal de governação exacerbado por crises e choques externos e a ser responsabilizado por disfuncionalidades em sectores importantes como os transportes. E o facto de, na sequência da derrota nas autárquicas não se ter aberto a um debate interno e com a sociedade vai-lhe custar na apresentação de soluções inovadoras.

Quanto ao maior partido da oposição ainda sob o efeito da luta pela liderança interna, que configurou uma verdadeira operação de captura da organização, não há sinais de uma visão nova dos problemas do país. Para além do discurso populista que já se viu que pode ganhar eleições, mas não garante governação competente, não se vislumbra senão a conquista do poder como motivação principal. Infelizmente, para o país que precisa acelerar o seu crescimento e desenvolvimento, essas perspetivas não auguram maior dinâmica económica. Há que, no entanto, garantir democracia necessária para impedir que prevaleça a injustiça

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1241 de 10 de Setembro de 2025.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Potenciar o sentimento profundo de pertença

 

Nos tempos actuais e nas democracias em geral, a esfera pública, a comunicação social e as redes sociais parecem estar na iminência de serem engolidas por uma onda de polarização e divisão, de serem minadas por frustrações e ressentimentos e de ficarem perdidas em denúncias e suspeições. Nessas circunstâncias ganha a maior importância as pontuais manifestações colectivas de solidariedade e esperança no futuro que eventualmente aconteçam.  Têm o poder de contenção dos extremos e de incentivar a convergência nos objectivos comuns da colectividade. A reacção rápida e engajada da Nação e das suas comunidades emigradas à catástrofe de 11 de Agosto que abalou S.Vicente foi um sinal claro de que em Cabo Verde está bem vivo esse sentido do colectivo nacional na sua expressão de fraternidade e de crença no seu futuro.

Pode-se considerar isso como um indicador forte da resiliência face às adversidades. De facto, recentemente durante a pandemia da Covid-19 esse sentido de pertença tinha-se revelado com toda a sua pujança e outra vez face a um desastre maior voltou a manifestar-se de forma inequívoca. É de notar que aparentemente a pandemia, ao ser uma oportunidade para mostrar solidariedade, acabou por reforçar os laços entre o país e as suas comunidades no estrangeiro, avaliando pelo aumento progressivo das remessas dos emigrantes nos anos seguintes. Isso pode significar que o aumento do afecto e da confiança e da consciência da Nação já se apresenta como um significativo amortecedor a eventuais choques externos naturais ou outros que importa conservar e aprofundar.

Outrossim, o país pode e deve potenciá-lo para manter a sociedade mais coesa e mais motivada e focada no crescimento e no desenvolvimento particularmente quando, a exemplo de outras democracias, Cabo Verde está sujeita a forças políticas e sociais fracturantes e divisivas. Na falta de um respaldo suportado no cultivo de um sentido de pertença ao colectivo nacional, corre-se o risco de, ao se enfraquecerem as instituições e a ordem democrática, se abrir caminho para soluções autoritárias e restrições graves dos direitos fundamentais. Já está a acontecer noutros países democráticos, em alguns já com um grande avanço em direcção a regimes autoritários como são os casos dos Estados Unidos e da Hungria e outros como Itália, Polónia, França, Alemanha e Portugal, com equilíbrios precários, mas com tendência para o crescimento de forças iliberais,

Aliás, as forças extremistas crescem muitas vezes em reacção ao que consideram excessivo individualismo, políticas identitárias e ameaças do multiculturalismo. O ambiente actual, dominado pelas redes sociais que amplifica a expressão individual e o posicionamento identitário e promove cosmopolitismo, também permite com recurso a algoritmos sofisticados mobilizar paixões e explorar medos e ressentimentos com base no nacionalismo. Ou seja, as plataformas digitais ajudam a promover o narcisismo ao mesmo tempo que disponibilizam os meios para a criação de bolhas de opinião onde turbas furiosas, motivadas muitas vezes por sentimentos antisistémicos e antidemocráticos, cancelam ideias, criam fake news e forjam realidades alternativas. Já há quem vislumbre um mundo em que quem domina as plataformas de facto governa e deixa para a maioria da população o entretenimento e a satisfação disponibilizada pela realidade virtual.

Em Cabo Verde também as redes sociais estão disponíveis e fenómenos que fazem lembrar o que se passa em outros países já acontecem. Já se notam manifestações de narcisismo pessoal e político com efeito nas instituições. O protagonismo pessoal tende a sobrepor-se, enfraquecendo a função e a imagem institucional. Os checks and balance do sistema político são enfraquecidos com a aceleração da menorização do papel dos órgãos colegiais (parlamento, governo, câmaras municipais) e o crescente protagonismo do presidente da república, do primeiro-ministro, dos presidentes das câmaras municipais. Bolhas de opinião são criadas com a ajuda dos algoritmos das plataformas que não poucas vezes criam uma ilusão de influência que a realidade não corrobora. Sentimentos anti-sistémicos em conflito com o pluralismo e a democracia encontram expressão e nova vida nas políticas identitárias e na criação de fake news e de realidades alternativas.

Não há em Cabo Verde questões fracturantes como a imigração, o racismo e a xenofobia e conflitos religiosos que podiam ser explorados por forças políticas, a exemplo do que se passa na Europa com a extrema-direita. Não deixam, porém, de subsistir, em novas encarnações, as velhas noções cabralistas divisivas que punham em diferentes categorias população, povo e Partido com os seus melhores filhos. Justificam os epítetos pejorativos de vendedores da terra, de anti-patriotas e de luso-tropicalistas ou macaronésios aplicados aos adversários. Estão por trás da polémica à volta do monumento à Liberdade e Democracia nos 35 anos da II República, assim como, em 2018, foram contra a proposta da câmara municipal de relocalizar a estátua de Amílcar Cabral na rotunda do Homem de Pedra.

Ao manter viva uma ideologia e uma narrativa histórica datada, alimentam-se divisões à volta do crioulo e da identidade cabo-verdiana, e dá-se conforto a sentimentos anti-sistémicos na procura de justificação da ditadura do partido único. Uma última encarnação do fenómeno desse tipo de divisionismo vê-se na postura antielitista do actual presidente do PAICV, Francisco Carvalho. Assumindo-se como líder dos “abandonados” pelas elites que governaram o país durante décadas, conseguiu capturar a liderança desse partido não obstante a feroz resistência dos seus dirigentes históricos. Posicionando-se agora como candidato a primeiro-ministro, o mais provável é que continue na mesma linha populista e antielitista que nega o impacto do crescimento económico na população e contende que os benefícios do país vão apenas para uma minoria.

O tipo de confronto político marcado por divisões bloqueadoras de tipo de diálogo entre partes em praticamente todas as matérias em disputa obriga a um tacticismo político que limita o alcance das políticas e da governação. O resultado é que em Cabo Verde provavelmente mais do que em qualquer momento anterior nos últimos meses tem-se a impressão de se estar a viver em permanente sobressalto. Há acontecimentos que realmente causam alarme como foram as chuvas torrenciais e as enxurradas que resultaram em mortes e perdas materiais avultadas. Há outros menos usuais e de menor impacto com destaque para as greves sucessivas ou anúncios de greve e os problemas constantes nos transportes aéreos e marítimos que contribuem para alimentar um desassossego difuso na sociedade. Sem o respaldo de uma consciência colectiva solidária e confiante, o confronto político permanente, a actuação dos mídia, cada vez mais influenciada pelas redes sociais, e a conectividade permanente, garantida pelas plataformas digitais, só agravam a situação.

Urge reequilibrar o país para que esteja realmente na posição de, com diálogo aberto e democrático, encontrar solução para os seus problemas. Para isso é preciso potenciar o sentimento profundo de pertença que o cabo-verdiano canaliza como solidariedade e crença no futuro sempre que Cabo Verde enfrenta uma crise. Para mobilizar esse capital que está na base da resiliência do país há que, porém, ultrapassar definitivamente as divisões impostas pela história para voltar a ser a nação que se forjou no limite, sobrevivendo a fomes, ao isolamento e ao abandono. Uma nação que não se define como vítima de ninguém e sempre acreditou que nas ilhas ou em qualquer lugar para onde emigrou o futuro está ao alcance das suas mãos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1240 de 3 de Setembro de 2025.