O governo no debate do estado da Nação divagou por uma realidade compartilhada só por ele e a sua maioria parlamentar, alheio aos dados do desemprego e aos sinais de tensão social. Na sua intervenção inicial, o Sr. Primeiro-ministro voltou a colocar a dívida de Cabo Verde em 80,2% do PIB e a sugerir que o crescimento económico estaria em valores como 4%, 2% e 3%. Nenhuma referência fez ao risco de uma segunda recessão em menos de quatro anos.
Auto-satisfeito, o Primeiro-ministro considerou que atingir tais taxas é “obra nos tempos que correm”. Ignorou por completo a baixa de notação e o outlook negativo feita pelas agências internacionais de rating Fitch e S&P assim como a previsão, pelo FMI, do abaixamento do crescimento do rendimento per capita nos próximos anos. Aqui mais perto ignorou os dados e as estimativas do Banco de Cabo Verde designadamente quanto à dívida do governo central que é calculada em 95% do PIB e quanto ao crescimento do PIB que se antevê entre 0,5% e 1,5% negativo. A mesma atitude teve para com como as constatações de empresários, sindicalistas, igrejas e de outras organizações da sociedade civil e personalidades públicas. Foram simplesmente varridas numa onda de pretenso optimismo. Num saco roto caiu o aviso do Banco Central de que embora “a nível de liquidez o governo continue numa posição globalmente confortável, uma percepção de aumento de riscos de incumprimento do serviço da dívida poderá afectar o custo de financiamento interno e externo da economia e a sua competitividade”.
A fuga da realidade gera situações complicadas. Uma delas é o irrealismo das propostas de solução. O governo começou por propor 4 clusters (mar, aero-negócios, praça financeira e tecnologias de informação) e já vai em oito com os novos clusters (turismo, agro-negócios, indústrias criativas e energias renováveis) sem que ninguém vislumbre como torná-los operacionais. Aparentemente para a constituição dos clusters o governo constrói infraestruturas como portos, aeroportos, estradas, e barragens ou cria o NOSi e deixa-se o resto à imaginação ou à iniciativa dos outros. Atenção quase nula se dá aos mercados potenciais, nomeadamente externos, e a eventuais estratégias de acesso aos mesmos. Em relação ao emprego dá pistas que possíveis saídas poderão ser encontradas com o auto emprego, apelos ao empreendedorismo e esquemas de formação profissional que até agora estão por demonstrar que realmente aumentam a empregabilidade dos jovens e vão ao encontro das necessidades do mercado de trabalho. Inaugurações de centros de emprego e de formação profissional e anúncios de fundos de apoio substituem resultados concretos no debelar do desemprego com a criação de postos de trabalho sustentáveis.
Uma outra consequência do desencontro com o mundo real vê-se na virulência do discurso contra opositores. Má oposição, maledicência, catastrofistas, pessimistas e outros epítetos quase a negar a cabo-verdianidade dos críticos são alguns dos “mimos” com que foram brindados as interpelações dos deputados no Parlamento. Nos tempos de hoje em que as relações de produção e de comércio mudam ao nível global do planeta sob o impacto de inovações tecnológicas e de processos, posturas rígidas na governação só encobrem os problemas do presente e deixam mal preparados os países para o futuro. É uma pena verificar que a experiência de países e povos a sofrer com o futuro adiado porque não souberam adaptar-se às mudanças em tempo próprio não parece mover o governo para posições mais sensatas.
Recuo
Com a promulgação da lei da protecção social pelo Presidente da República, o governo concretiza as suas intenções de diminuir o montante transferido aos mais vulneráveis da nossa sociedade: os velhos com mais de 60 anos e crianças deficientes. Justifica a medida com a necessidade de abranger um maior número de vulneráveis.
A falta de razoabilidade de tal argumento já tinha levado o PR a vetar o decreto-lei inicial. De facto não se compreende depois de aumentar a pensão social, em 2006 e recentemente em 2010, o governo venha recuar no que já era obrigação do Estado sob pretexto da crise. O impacto nas pessoas não é o mesmo das promessas eleitorais do tipo 13ª mês ou aumento geral de salários que depois não se cumprem. A níveis baixos de rendimento os efeitos de recuo na pensão são comparativamente desproporcionais.
Mesmo em países obrigados a cortes gerais nas pensões, poupam-se os mais necessitados. Em Cabo Verde acontece o contrário. Por isso a tentativa de contornar as reservas do PR via Parlamento deveria merecer um segundo veto presidencial. Os legisladores na Assembleia Nacional teriam a oportunidade de conhecer as razões do presidente da república e mais tempo para ponderar uma questão séria como é a solidariedade que toda a comunidade nacional deve aos mais vulneráveis no seu seio.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 7 de Agosto de 2013
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