terça-feira, 4 de março de 2014

Provocações no Parlamento



A sessão da Assembleia Nacional do mês Fevereiro terminou no meio de recriminações mútuas entre o partido do governo, o PAICV, e maior partido da oposição, o MpD, quanto à forma como os trabalhos parlamentares são conduzidos. À semelhança do que aconteceu em outras situações, o ambiente de tensão acabou por degenerar em incidentes com forte impacto negativo na opinião pública. A frequência com que estes incidentes vêm acontecendo interpela a todos. De facto, é de se perguntar quem poderá estar a beneficiar com a perda de credibilidade do centro do pluralismo no sistema político e da sede da fiscalização contraditória da acção do governo. Também deve-se perguntar se os incidentes resultam espontaneamente do exacerbar das tensões ou serão provocados com o objectivo de causar o maior estrago possível na imagem pública do Parlamento e dos deputados.

Curiosamente nota-se o grande esforço da comunicação política do governo e da sua maioria em culpar os deputados da oposição pelos incidentes. Aponta-se o dedo precisamente aos que aparentemente menos ganham com a perda de prestígio do único palco institucional que têm para se fazerem ouvir, para questionar o governo e para se apresentarem como alternativa de governação. Se a postura dos partidos da oposição em relação às iniciativas do governo se caracterizasse por um sistemático obstrucionismo, talvez a acusação até fizesse sentido. Mas a realidade é outra como se pode facilmente constatar. A generalidade das leis é votada sem voto contra e muitas vezes por unanimidade. Na mesma sessão plenária de Fevereiro, onde se verificaram os incidentes, nem uma única proposta do governo teve votos contra do partido da oposição, o MpD. Nas sessões anteriores, com excepção da lei do orçamento e uma outra lei aconteceu o mesmo. Mesmo leis requerendo maioria de dois terços dos votos passam muitas vezes sem qualquer dificuldade. Pergunta-se então onde está o problema?

Ânimos na Assembleia Nacional, em geral, agitam-se quando se trata da fiscalização dos actos da actividade do governo. E as razões são visíveis para todos. No debate, o governo mostra-se muitas vezes relutante em responder às interpelações da oposição. A maioria que o suporta faz uma espécie de barreira com questionamentos tendencialmente desviantes do tema em debate. Os deputados da oposição pressionados pelo relógio porque têm menos de um terço do tempo total reagem ao silêncio do governo e às pressões dos colegas da maioria. A tensão sobe em espiral e fica criado ambiente propício para actos provocatórios causadores de incidentes graves.

Um alvo favorito das provocações é o Dr. Carlos Veiga, como se viu na semana passada. Assim é porque se insiste em discussões intermináveis no Parlamento sobre a década de noventa. Tais discussões iniciadas na maior parte dos casos pelo governo e a sua maioria têm o condão de desviar completamente o foco do debate. Os sujeitos parlamentares, em vez de se incidirem sobre as questões presentes e futuras do país, entretêm-se a mirar num passado que nunca é o mesmo todas as vezes que se vai visitá-lo com os olhos do presente. Esse exercício estéril tem a agravante de quase sempre desembocar em provocações dirigidas ao Dr. Carlos Veiga pelo seu protagonismo enquanto primeiro-ministro nas grandes transformações políticas e económicas dos anos noventa. E daí nunca sai coisa boa, como se constatou há dias.


A estabilidade do sistema democrático depende em muito do respeito pelos direitos dos indivíduos e das minorias e do pleno exercício pelas instituições das suas competências próprias. Na ausência disso, corre-se o risco do sistema degenerar facilmente numa tirania da maioria. O governo é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional. Não pode fugir ao questionamento dos deputados e ao seu dever de prestação de contas. Quem quer que seja que obstaculiza esse dever básico de os governos se justificarem com resultados a implementação do seu programa e o cumprimento de promessas eleitorais não pode arrogar-se em defensor das instituições da democracia.

O Parlamento como órgão plural e centro do contraditório é fundamental para a democracia. Ao seu presidente, embora originariamente deputado da maioria, exige-se que dirija os trabalhos com isenção e imparcialidade, mas com especial preocupação pela realização plena dos direitos das minorias parlamentares constantes do regimento designadamente os de interpelação e de perguntas ao governo e o de instauração de inquéritos parlamentares. Também deve saber gerir bem a relação entre o governo e o parlamento. O governo é sujeito parlamentar mas não é membro da Assembleia Nacional e tem o dever de prestar contas. O presidente deve procurar conduzir as reuniões plenárias de modo a que a formalidade dos procedimentos e o respeito e a deferência mútuas entre os sujeitos parlamentares garantam maior eficácia aos trabalhos. Não deve deixar qualquer espaço para provocações que, aproveitando-se da tensão normal dos debates, crie incidentes graves. A boa imagem e a eficácia da actividade parlamentar dependem em grande medida da confiança que todos depositarem na capacidade do presidente em assegurar-se que a AN é o órgão legislativo por excelência e o principal fiscalizador da acção do Governo.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Março de 2014

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