quarta-feira, 9 de julho de 2014

5 de Julho – Extravagância e desunião




Expresso das ilhas, edição 658 de 9 de Julho de 2014
Editorial

A comemoração da independência todos os anos no dia 5 de Julho deve ser um momento alto da afirmação da unidade da comunidade política nacional  à volta de um sistema de princípios e valores onde sobressaem o respeito pela dignidade humana, o direito à liberdade e à vida e o desejo de paz e justiça. O acto central das comemorações acontece na Assembleia Nacional com a mensagem à Nação do presidente da república e intervenções dos representantes dos partidos políticos e do presidente do parlamento. Os outros órgãos de soberania, o governo e os tribunais conjuntamente com altos dignatários nacionais e estrangeiros e outros convidados assistem mas não participam.
Por alguma razão só têm protagonismo nas comemorações centrais o presidente da república e o parlamento. São os órgãos que representam a nação. A Assembleia Nacional representa a nação na no seu pluralismo e diversidade de interesses e o Presidente suprapartidário incarna a unidade da nação. Tensões surgem, quase que inevitavelmente, se o governo exceder em protagonismos.
Geram-se controvérsias diversas e o dia que por excelência devia ser de demonstração de unidade passa como um dia normal de disputa política acesa. Governos, embora legitimados para perseguir o interesse público, não deixam de o fazer com base nas suas convicções filosóficas próprias e de recorrer a políticas nem sempre partilhadas por todos.
O presidente da república no seu discurso de 5 de Julho disse que a “independência nacional não se discute nem se questiona”. De facto, a nossa existência como comunidade política nacional não é matéria que posse ser posta em causa, nem hoje nem amanhã.
A Constituição é clara quando define como tarefa primeira do Estado  defender a sua integridade territorial  e como  dever patriótico dos cidadãos participar nessa defesa. Mas a defesa da independência não significa a defesa dos governos que se sucederam ao longo dos anos. E a defesa da independência não está separada da defesa da liberdade, do pluralismo, do multipartidarismo, do direito de escolha dos governantes por sufrágio universal directo, da independência dos tribunais e da comunicação social livre. As próprias forças armadas são mandatadas para defender a independência e a ordem constitucional vigente.
Andou mal o governo neste 39º aniversário da independência ao trazer para as comemorações o reconhecimento que escolheu fazer ao governo do regime de partido único. Primeiro, governos não dão medalhas a outros governos. Actos similares quando acontecem são recebidos pelos cidadãos com cepticismo e uma boa dose cinismo quanto às reais motivações. Segundo, não podia, em boa-fé, pretender com esse acto unir os caboverdianos. A memória do regime ainda está fresca e sente-se que os seus protagonistas não se contentam com nada na procura de justificações para as suas tomadas de posição. Hoje é-lhes reconhecido um papel ou lhes é dado um privilégio, amanhã exigem algo mais. A factura a pagar parece não ter fim.
A unidade nacional consegue-se com a aceitação das diferenças, a escolha livre dos governantes e a possibilidade de construir alternativas de governação, mas tudo no quadro de valores e respeitando os procedimentos existentes na Constituição. Não é forçando a nação a confrontar-se em jeito de gratidão com um regime que é o oposto do regime actual de liberdade, paz e justiça e depois vir a terreno acusar os outros de contribuírem para a crispação política e de serem contra a independência nacional.
Ninguém é contra a independência nacional, mas todos devem ser avessos a regimes políticos opressivos contrários ao nosso sistema constitucional. Em particular, os que exercem funções públicas e de soberania deviam cumprir com o devido rigor o juramento solene que fizeram na tomada de posse das suas funções de defender a Constituição da República.
Cabo Verde celebra o 39º aniversário da sua independência num momento crítico da sua existência. Terminada a transição para país de rendimento médio, poucas possibilidades terá de manter o seu ritmo de desenvolvimento com base na ajuda externa seja em donativos ou empréstimos concessionais. O modelo de ajuda esgotou-se. A taxa média de crescimento de 1.2% nos últimos anos, o desemprego elevadíssimo, a cada vez mais excessiva dívida pública sugerem que os recursos da ajuda público ao desenvolvimento não foram bem utilizados. Agora que se é obrigado a substitui-los por capitais privados nacionais e estrangeiros, constata-se que  nem o Estado tem mais margem para se endividar nem o país fez o suficiente para se tornar  competitivo e mais engajado em sectores como o turismo em que as potencialidades  são reais.
Países como as Maurícias e Seychelles tiveram os seus momentos difíceis. Conseguiram ultrapassá-los criando uma vontade política nacional focalizada em fazer ganhar o país em matéria de exportações de bens e serviços e na prestação de serviços em sectores como o turismo e finanças. Em Cabo Verde fica-se com a impressão que ainda não se aprendeu a cooperar nos diferentes sectores respeitando a diferença. Privilegiam-se tácticas que tendem a passar uma imagem de irrelevância e de falta de poder às forças da oposição. Normalmente face a isso ressentimentos diversos proliferem e diminuem ainda mais as possibilidades de entendimentos, acordos e consensos.
Apelos “à energia positiva” e “alto astral” não são respostas válidas à frustração, resignação e mesmo desespero que muitos sentem perante promessas não cumpridas e expectativas que não se confirmam. Até parece que se está a culpar a vítima e a dizer-lhe que tudo depende dele quando a realidade é muito diferente. Está provado que discursos e actos populistas pela simplificação da realidade, exploração de sentimentalismos e o exacerbar de paixões identitárias prejudicam extraordinariamente o debate público. Há que os evitar. Neste momento crítico, em que se procuram soluções de crescimento e emprego, não se devia estar a aumentar o distanciamento entre os partidos, a procurar infantilizar a opinião pública e tornar mais difíceis os compromissos.

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