quarta-feira, 29 de outubro de 2014

As regras do jogo são para respeitar



JORNAL 674 DE 29 DE OUTUBRO DE 2014

António Monteiro, líder da UCID, no debate sobre a situação da justiça disse que já “chega de acusar o governo por nada ou pouco fazer para resolver os problemas da justiça”. De seguida desafiou o Parlamento a “agir e a estudar soluções”. Compreende-se a frustração dos cabo-verdianos e, em particular, dos seus representantes nos partidos na oposição perante a falta de resultados mais palpáveis no sector de justiça. Esperava-se muito das reformas consensualizadas no processo de revisão constitucional de 2010. Mas facto é que o Tribunal Constitucional e os tribunais de segunda instância ainda não foram instalados, está para ser organizada a inspecção judicial e a morosidade da justiça persiste. A quem atribuir responsabilidade pelo fracasso?
O líder da UCID provavelmente cansou-se de chamar à pedra o governo e pensou ter encontrado uma saída no apelo ao Parlamento para que encontre uma solução. O problema é saber se isso é factível no nosso sistema político de cariz marcadamente parlamentar. Nas democracias, através de eleições, maiorias constituem-se e governam. Meios, na forma de impostos, de património existente e de recursos humanos, são postos à disposição do governo para implementarem a sua visão e atingirem os objectivos preconizados. O orçamento do Estado espelha as opções do Governo, define as suas prioridades e programa as acções de modo a se obter os resultados pretendidos. Nem os deputados da maioria e muitos menos os das minorias parlamentares conseguem alterar significativamente a posição do governo. A disciplina de voto assegura a concordância dos primeiros e os outros não somam votos suficientes para bloquear. Por isso se as acções programadas e orçamentadas não derem frutos, é o governo quem deve assumir a responsabilidade por isso. Aliás, se houver sucesso ninguém duvida quem o vai exibir com grande estrondo. Pois é! As coisas funcionam nos dois sentidos.
A sugestão do presidente da UCID provavelmente teria alguma razão de ser num regime presidencialista. Como aí a continuidade do governo está sempre assegurada, porque eleito directamente, qualquer proposta do orçamento é discutida e negociada com os deputados até se chegar a um acordo final. Mas não é o caso de Cabo Verde e não há vantagem nenhuma em discutir soluções para os problemas actuais do país recorrendo a institutos, normas e procedimentos que são de sistemas políticos completamente diferentes.
Ultimamente vem-se tornando “moda” extrapolar virtudes do que existe e funciona em outros sistemas sem a devida ponderação no que respeita à sua adequação ao nosso sistema político e ao impacto que teria a sua adopção. Porque há críticas quanto à relação entre eleitores e eleitos no sistema de listas plurinominais apresentadas pelos partidos, extrapolam-se as virtudes dos sistemas uninominais. Questões como coesão partidária, estabilidade governativa e possibilidade de representação de pequenos partidos no Parlamento não são tidas em conta. Já se fala em primárias e se esquece que a América que celebrizou esse modelo de escolha de candidatos também funciona na base de “lobbies” que financiam campanhas individuais. Os eleitos têm relações ténues com os respectivos partidos e isso não deixa de afectar a coerência da acção partidária seja no governo, seja na oposição.
Semanas atrás várias personalidades políticas foram confrontadas com a possibilidade de eleições únicas em Cabo Verde. Mais uma vez nem a apresentação dos casos dos Estados Unidos e do Brasil como exemplo chamou atenção para a sua natureza de regimes presidencialistas. No sistema presidencialista se houver impedimentos no cumprimento do mandato, ou há o vice-presidente para substituir o presidente até o fim do mandato, ou fazem-se eleições intercalares (byelections), ou nomeiam-se senadores para terminar o mandato. No sistema parlamentar, o governo pode cair, o parlamento pode ser dissolvido, o presidente da república pode renunciar ou ficar impedido. Em qualquer dos casos realizam-se eleições que iniciam novo mandato ou uma nova legislatura. É evidente que nestas condições não é possível manter uma eleição única para todos os órgãos de poder político. A excepção são as eleições autárquicas. Realizam-se todas no mesmo dia.
Ninguém consegue aprender o jogo de xadrez insistindo em usar regras do jogo de damas”. O que é óbvio neste dito popular devia também sê-lo quando aplicado às democracias. Cultura democrática ganha-se no jogo democrático respeitando as regras existentes. Em Cabo Verde muita da crispação política, do conflito de competências entre os órgãos de soberania e entre outras instituições do Estado e também muito da desresponsabilização pelo que acontece no país deriva da atitude em tomar as regras e a lei como algo que só se aplica e se respeita quando for vantajoso para pessoas ou para alguma entidade em particular. A ausência de um árbitro dedicado, que neste caso deveria ser o Tribunal Constitucional, eterniza conflitos, deixa impune quem prevarica na violação das regras do jogo e deixa desprotegido minorias e cidadãos. Mais uma razão para se conseguir a instalação do Tribunal Constitucional o mais rápido possível.

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