sexta-feira, 24 de março de 2017

Blame game, ou o jogo da culpa

O Novo Banco tem sido nas últimas duas semanas o foco da atenção geral do país. A resolução do Banco a sancionar a transferência dos activos para a Caixa Económica e a liquidação da parte restante, na perspectiva de ainda arranjar recursos que permitam indemnizar os trabalhadores e de minimizar perdas, desencadeou um debate público intenso na comunicação social e nas redes sociais. Muito da troca cruzada de palavras na esfera pública tem-se centrado na procura de culpados. Menos do que se deveria esperar, visa elucidar os termos em que se verificou o descalabro com vista a se evitar repeti-los no futuro. A participação de políticos no debate tende a derivar para mero  arremesso de acusações mútuas, não assumindo ninguém a responsabilidade pelo trajecto de mais de cinco anos do Novo Banco. Entretanto, aumenta-se o stock de cinismo nacional quanto à política, reforçando a ideia de que “todos têm natureza idêntica e agem da mesma forma”. 
Interessante que o jogo da culpa inicia com a afirmação imediata de uma realidade alternativa em que as razões para a criação do Novo Banco existiam em 2010 e mantêm-se até hoje. O ex-primeiro-ministro num post do Facebook veio reiterar que tomaria a mesma decisão de sete anos atrás de criar o Novo Banco. Insiste que há razões para a existência do banco, mesmo perante a realidade do falhanço da instituição ser conhecida desde o início da actividade e confirmada ao longo dos anos em episódios de perda de rácio de solvabilidade e de recapitalizações sucessivas. Na prática quer-se iludir o problema original da falta de fundamentos sólidos para a sua criação, algo sinalizado por consultores e outros intervenientes no processo, ressaltando a suposta bondade dos propósitos: financiar micro e pequenas empresas. 
Vê-se o sucesso na construção dessa realidade alternativa quando se consegue que o foco da atenção do público se mova para outros actores que supostamente teriam desviado do plano original do banco e arruinado o projecto, entre eles os gestores, os accionistas e entidades de supervisão. Com alguma imaginação pode-se incluir os clientes incumpridores e um novo governo que herdou o pré-anunciado desastre. A partir daí é fácil entrar num jogo em que cada um atira culpa do insucesso do banco ao outro enquanto os principais responsáveis passam ao largo. 
Neste quadro vem à tona problemas  não anteriormente visíveis ou se identificados quem devia agir tinha os passos tolhidos. Fala-se agora da estrutura exagerada de custos no Novo Banco, dos créditos concedidos a entidades com exposição noutros bancos, e de falta de planos de reestruturação do banco mesmo quando falhava nos testes de stress e era obrigado à recapitalização para repor rácios de solvabilidade. Ninguém com responsabilidade parecia agir decisivamente para ultrapassar definitivamente o problema mas agora culpam-se uns aos outros. Faz-se por esquecer que só  intervenção do governo anterior a vários níveis com instruções directas nuns casos, com influenciação indirecta noutros casos e ainda como força dissuasora em relação a eventuais intervenções de reposição de certos equilíbrios permitiu que uma situação como a do Novo Banco pudesse persistir durante todos estes anos. Concomitantemente quer-se ignorar a evidência que a criação do banco desde o princípio seguiu propósitos políticos eleitoralistas e que a sua manutenção serviu interesses políticos. 
Perante o desfecho inevitável do Novo Banco a partir do momento em que iniciou um novo governo aparecem agora dúvidas se se devia ter sido salvo. Compreende-se que os trabalhadores despedidos, sentindo-se prejudicados, procurem ser recebidos pelo presidente da república, pelo presidente da assembleia nacional e pela presidente do partido de oposição. Já não é tão claro que tipo de intervenção esperariam dessas entidades perante o que é decisão de uma autoridade de supervisão independente, o BCV, e a opção do novo governo em não perseguir os objectivos políticos que o outro governo tinha com o Novo Banco. O problema para todos, para a paz social e para o funcionamento normal das instituições é se a moda pega e se as audiências do género são garantidas não só aos trabalhadores de “colarinho branco” mas a todos os outros que numa circunstância ou outra se vejam em situação de desemprego ou de simples confronto laboral. 
Devia ser evidente que o país está numa encruzilhada e que terá que mover-se decisivamente para além de certas práticas e de certa atitude que dificilmente continuarão a ter respaldo nestes tempos de mudanças inesperadas e imprevisíveis na forma como se organiza a economia mundial e as relações entre as nações. O caso do Novo Banco devia ser um dos muitos alertas para a urgência das mudanças a serem realizadas. Não devia ser mais um pretexto para mais um jogo da culpa que acaba por deixar todos exaustos, mais pobres e menos conhecedores dos problemas do país e dos caminhos a serem percorridos para os ultrapassar. Há que não se deixar apanhar por práticas que alimentam uma cultura de cinismo em relação à política e aos políticos. Como se vê noutras paragens, é por aí que se promove a ascensão de líderes populistas que no processo de implantação da sua autoridade sacrificam não poucas vezes a liberdade e a prosperidade do seu povo. 
               Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 22 de Março de 2017

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