segunda-feira, 29 de maio de 2017

O perigo da crença em almoços grátis

Um sem número de vezes já se ouviu falar em discursos oficiais da necessidade de passar de uma economia de reciclagem da ajuda externa para uma economia baseada na iniciativa privada que dê garantia de sustentabilidade futura. A repetição continuada dessa mensagem e a urgência todas vezes nela posta sugerem que não é tarefa fácil fazer essa transição. E compreende-se porque, como se sabe do adágio popular, “não há almoços grátis”. Assim como indivíduos e grupos podem habituar-se à dependência dos outros e dificilmente conseguem recuperar a sua autonomia e libertar-se definitivamente da pobreza também com maioria de razão o mesmo acontece com países e economias nacionais. Os custos do almoço que se pensou grátis acabam por constituir um travão extraordinário a quaisquer esforços no sentido de escapar da armadilha do apoio de fora.
Elucidativo do quadro de dependência do país e das enormes dificuldades em se libertar dela é o que se passou nos últimos dias com a TACV. O governo, em comunicado datado de 23 de Maio, veio dizer que entregava os voos domésticos à Binter e que tinha planos de reestruturação e privatização para o segmento internacional da TACV e para o negócio de Manutenção e Engenharia. Acrescentou que ao longo do primeiro ano de governação desenvolveu esforços no sentido de minimizar a situação financeira mas que ficou inevitável avançar noutro sentido. Do texto do comunicado fica-se a saber que teriam concorrido para essa “inevitabilidade” os parceiros internacionais (GAO, BAD, Banco Mundial, etc.) ao condicionarem apoios orçamentais ao país se não deixasse de injectar dinheiro na TACV. Em consequência de tal pressão ficaram pelo caminho os objectivos de regularizar e reforçar o serviço dos transportes domésticos num ambiente de concorrência que presidiram ao licenciamento da Binter pois que, outra vez, o país encontra-se na situação de ter uma única companhia aérea a operar internamente com a diferença de agora ser uma empresa privada. A tentar ir além de um monopólio público abriu-se caminho para um monopólio privado.
 Do caso, claramente se retira que a liberdade dos governos em gerir o país e até em geri-lo mal  como aconteceu durante décadas no caso da TACV não é real. Não há almoços grátis. Os parceiros internacionais até podem ser complacentes como foram anos a fio em que o país pesadamente se endividava e em simultâneo a economia teimava em manter-se estagnada. Faziam alguns reparos enquanto vinham milhões para Casa para Todos, enterravam-se milhões nos TACV, no Fast Ferry e na ELECTRA, ou perdiam-se milhões no Novo Banco, mas no essencial mantinham a ajuda. Por razões que nem sempre são claras nem transparentes chega um dia em que de todos os quadrantes vem a pressão para reestruturações forçadas, quase sempres dolorosas e poucas vezes efectivas na perspectiva do desenvolvimento mas suficientes para retomar a ajuda externa nas mesmas ou em novas modalidades.
O problema é que voltando-se ao aparente equilíbrio rapidamente os governos agarram-se às promessas de ajuda fácil e outra vez engajam-se na construção de clusters, hubs e economias coloridas de há muito prometidas mas que na prática têm servido para aumentar a dívida do país. Os ganhos políticos imediatos que retiram dos anúncios dos milhões que irão ser investidos não poucas vezes obscurecem o facto que tais linhas de crédito foram criadas para subsidiar  exportações e financiar a internacionalização das empresas dos países que as disponibilizam. A diferença entre o prometido no início da construção de barragens, estradas, portos e aeroportos e o que realmente se verifica em termos de rendimento e perspectiva de futuro não justificam os constrangimentos nas escolhas que soberanamente o país deveria fazer - caso da TACV - mas que a dívida e a dependência crescentes não permitem. Entretanto, questões essenciais como a unificação do mercado interno e transportes marítimos ficam por resolver e não se vislumbra uma estratégia para atrair investimento externo capaz de criar rapidamente empregos e aumentar as exportações. Mesmo no turismo, apesar do discurso oficial de suporte ao sector, tarda-se em ver acções consequentes e encadeadas para melhorar o ambiente de negócios e  em desenvolver uma estratégia para alargar a sua base para além de sol e praia e também para impactar mais a economia nacional com o arrastamento de múltiplas actividade nos sectores de produção, transportes e serviços.
A crença em almoços grátis, de facto, desarma tanto as pessoas como os governos. Deixa-se de se preocupar com os resultados e fixa-se nos fluxos externos sejam eles em forma de doações, empréstimos ditos concessionais, financiamentos de estudos, workshops, ateliers, socializações etc. Ninguém parece importar-se que com isso vai aumentando a desigualdade social, ilhas perdem população, a centralização aumenta e os governos parecem todos condenados a fazer o mesmo sem muita hipótese de ir além dos sonhos futuros tantas vezes repetidas não obstante as nuances. E não é porque houve avanços no país com toda essa infusão de apoio externo que se justifica o modelo. Tais avanços mostram-se verdadeiramente diminutos quando se compara com os obtidos em realidades similares, realidades insulares como Cabo Verde, que fizeram a opção de, mesmo aproveitando a ajuda externa, ir consistentemente para além da ajuda e construir uma economia diversificada voltada para o mercado externo. Muito mais se poderia ter feito e estar-se-ia a fazer se não mais acreditássemos em almoços grátis.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 808 de 24 de Maio de 2017.

Sem comentários:

Enviar um comentário